sexta-feira, 26 de julho de 2024

A Criação

por

Wayne Grudem




• Por que, como e quando Deus criou o universo?


1.         EXPLICAÇÃO E BASE BÍBLICA

Como Deus criou o mundo? Será que ele criou cada espécie diferente de planta e animal de modo direto, ou fez uso de uma espécie de processo evolutivo, guiando o desenvolvimento das coisas vivas a partir das mais simples para as mais complexas? E quanto tempo Deus levou para produzir a criação? Será que ela foi completada no espaço de seis dias de 24 horas, ou Deus serviu-se de milhares ou talvez milhões de anos? Qual é a idade da terra e qual é a idade da raça humana?

Já enfrentamos essas perguntas quando tratamos da doutrina da criação. Diferentemente da maior parte do material anterior deste livro, este capítulo trata de diversas questões sobre as quais os cristãos evangélicos têm diferentes perspectivas, algumas vezes sustentando-as de maneira muito forte.

Este capítulo é organizado para tratar dos aspectos da criação que são mais claramente ensinados na Escritura e sobre os quais a maioria dos evangélicos concordaria (criação do nada, criação especial de Adão e Eva e a bondade do universo), movendo-se para outros aspectos da criação a respeito dos quais os evangélicos têm discordâncias (se Deus usou o processo evolucionário para realizar boa parte da criação, e qual a idade da terra e da raça humana).

Podemos definir a doutrina da criação da seguinte maneira: Deus criou o universo inteiro do nada; ele era originariamente muito bom; e ele o criou para glorificar a si próprio.


A.        Deus criou o universo do nada


1. Evidência bíblica para a criação do nada.

A Bíblia claramente requer que creiamos que Deus criou o universo do nada. (Algumas vezes a expressão latina ex nihilo ,”do nada”, é usada; diz-se então que a Bíblia ensina a criação ex nihilo ). Isso significa que, antes de Deus ter começado a criar o universo, nada mais existia exceto o próprio Deus.

Essa é a inferência de Gênesis 1.1 que diz: “No princípio Deus criou os céus e a terra”.A frase “os céus e a terra” inclui a totalidade do universo, O salmo 33 também nos diz: “Mediante a palavra do SENHOR foram feitos os céus, e os corpos celestes, pelo sopro de sua boca [...] Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo surgiu” (Sl 33.6,9). No NT encontramos uma afirmação de caráter universal no começo do evangelho de João: “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito” (Jo 1.3). A expressão “todas as coisas” é mais bem entendida como referindo-se à totalidade do universo (cf.At 17.24; Hb 11.3). Paulo é totalmente explícito em Colossenses 1 quando especifica todas as partes do universo, tanto as visíveis como as invisíveis: “pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos ou soberanias, poderes ou autoridades; todas as coisas foram criadas por ele e para ele” (Cl 1.16).

Hebreus 11.3 diz: “Pela fé entendemos que o universo foi formado pela palavra de Deus, de modo que aquilo que se vê não foi feito do que é visível”. Essa tradução reflete de modo exato o texto grego. Embora o texto não ensine realmente a doutrina da criação ex nihilo , ele chega próximo de fazer isso, visto que diz que Deus não criou o universo de nada que é visível. A idéia um tanto estranha de que o universo poderia ter sido criado de alguma coisa que era invisível provavelmente não estivesse na mente do autor. Ele está contestando a idéia de a criação ter vindo de alguma matéria preexistente, e para esse propósito o versículo é inteiramente claro.

Porque Deus criou a totalidade do universo do nada, nenhuma matéria no universo é eterna. Tudo o que vemos as montanhas, os oceanos, as estrelas, a própria terra — veio à existência quando Deus os criou. Isso nos lembra que Deus governa todo o universo e que nada na criação deve ser adorado a não ser Deus. Contudo , se negássemos a criação ex nihilo , teríamos de dizer que algum tipo de matéria já existia e que ela, como Deus, é eterna. Essa idéia desafiaria a independência e a soberania de Deus, bem como o fato de que a adoração é devida a ele somente. Se a matéria existisse separada de Deus, então que direito inerente teria Deus de governá-la e usá-la para a sua glória? E que confiança poderíamos ter de que cada aspecto do universo cumpre de modo supremo os propósitos divinos, se algumas partes dele não foram criadas por Deus?

O lado positivo de que Deus criou o universo ex nihilo é que esse universo tem significado e propósito. Deus, em sua sabedoria, criou-o para alguma coisa. Devemos tentar entender esse propósito e usar a criação de modo que ela se encaixe nesse propósito, a saber, o de trazer glória ao próprio Deus.' Além disso, sempre que a criação nos traga satisfação (cf. 1 Tm 6.17), devemos agradecer a Deus, que criou todas as coisas.


2. A criação direta de Adão e Eva.

A Bíblia também ensina que Deus criou Adão e Eva de modo especial e pessoal. “Então o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2.7). Após isso, Deus criou Eva do corpo de Adão: “Então O SENHOR Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne. Com a costela que havia tirado do homem, o SENHOR Deus fez uma mulher e a levou até ele” (Gn 2.2 1,22). Ao que parece Deus deixou Adão saber o que tinha acontecido, pois Adão diz: ”... Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada” (Gn 2.23).

Como veremos adiante, os cristãos diferem sobre o grau em que os desenvolvimentos evolutivos se deram após a criação, talvez (de acordo com alguns) conduzindo ao desenvolvimento de organismos mais e mais complexos. Embora haja diferenças sinceras sobre essa matéria entre os cristãos com respeito aos reinos animal e vegetal, os textos bíblicos são tão explícitos que seria muito difícil para alguns defender a completa veracidade das Escrituras e, ainda assim, sustentar que os seres humanos são o resultado de um longo processo evolutivo. Quando a Escritura diz que o Senhor “formou o homem do pó da terra” (Gn 2.7), isso não parece significar que ele tenha utilizado um processo que levou milhões de anos e tenha empregado o acaso no desenvolvimento de milhares de organismos crescentemente complexos. E ainda mais impossível de conciliar com o pensamento evolucionista é o fato de que essa narrativa claramente retrata Eva como não possuindo mãe; ela foi criada diretamente da costela de Adão enquanto este dormia (Gn 2.21). Mas em uma base puramente evolutiva, isso não seria possível, pois mesmo o primeiro “ser humano” fêmea teria descendido de alguma criatura parecida com o ser humano, mas que ainda era animal. O NT reafirma a historicidade da criação especial de Eva vinda de Adão, quando Paulo diz: “Pois o homem não se originou da mulher, mas a mulher do homem; além disso, o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem” (1 Co 11.8,9).

A criação especial de Adão e Eva mostra que, embora possamos ser iguais a animais em muitos aspectos de nosso corpo físico, mesmo assim somos muito diferentes dos animais. Fomos criados “à imagem de Deus”, o ponto mais alto da criação de Deus, mais parecidos com Deus que com qualquer outra criatura, designados para governar o restante da criação. Mesmo a brevidade da narrativa da criação de Gênesis (comparada com a história dos seres humanos no restante da Bíblia) coloca uma ênfase maravilhosa sobre a importância do homem em relação ao restante do universo. Ela, assim, resiste às tendências modernas de ver o homem como destituído de significado em comparação com a imensidão do universo.


3. A obra do Filho e do Espírito Santo na criação.

Deus Pai foi o agente primário no ato iniciador da criação. Mas o Filho e o Espírito Santo foram também ativos. O Filho é muitas vezes descrito como aquele “por intermédio” de quem a criação se deu. “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele,nada do que existe teria sido feito” (Jo l.3). Paulo diz que “há um só Senhor, Jesus Cristo,por meio de quem vieram todas as coisas e por meio de quem vivemos” ( lCo 8.6) e ”nele foram criadas todas as coisas” (Cl 1.16). Essas passagens fornecem o quadro sólido do Filho como agente ativo na execução dos planos e diretrizes do Pai.

O Espírito Santo estava também em operação na criação. Ele é geralmente descrito como completando, preenchendo e dando vida à criação de Deus. Em Gênesis 1.2,”... o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”, indicando uma função preservadora, sustentadora e orientadora. Jó diz: “O Espírito de Deus me fez; o sopro do Todo-poderoso me dá vida” (Jô 33.4). É importante perceber que em várias passagens do AT a mesma palavra hebraica (rûach) pode significar, em contextos diferentes, ”espírito”, “sopro” ou “vento”. Mas em muitos casos não há grande diferença de significado, pois, se alguém decidisse traduzir alguns termos como o “sopro de Deus” ou mesmo o “vento de Deus”, ainda pareceria um modo figurado de referir-se à atividade do Espírito Santo na criação. Assim o salmista, falando da grande variedade de criaturas na terra e no mar, diz: “Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face da terra” (Sl 104.30, RA); observe também, sobre a obra do Espírito Santo, (Jó 26.13; Is 40.13; lCo 2.10).

 

B.        A criação é distinta de Deus e, todavia, sempre dependente dele.

O ensino da Escritura a respeito da relação entre Deus e a criação é singular entre as religiões do mundo. A Bíblia ensina que Deus é distinto de sua criação. Ele não é parte dela, pois foi ele quem a fez e a governa. O termo freqüentemente usado para dizer que Deus é muito maior que sua criação é a palavra transcendente. De maneira muito simples, isso significa que Deus está muito “acima” da criação no sentido em que é maior que a criação e independente dela.

Deus está também muito envolvido com a criação, pois ela é continuamente dependente dele para existir e funcionar. O termo técnico usado para falar do envolvimento de Deus com a criação é o termo imanente, que significa “permanecer em” a criação. O Deus da Bíblia não é uma divindade abstrata removida da criação e sem interesse nela. A Bíblia é a história do envolvimento de Deus com sua criação e particularmente com os seres humanos criados. Jó afirma que mesmo os animais e as plantas dependem de Deus : “Em sua mão está a vida de cada criatura e o fôlego de toda a humanidade” (Jó 12.10). No NT, Paulo afirma que Deus “dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas” e que “nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.25,28). De fato, em Cristo “tudo subsiste” (Cl 1.17), e ele está continuamente “sustentando todas as coisas por sua palavra poderosa” (Hb 1.3). Tanto a transcendência como a imanência de Deus são afirmadas em um simples versículo quando Paulo fala de “um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos” (Ef 4.6).

O fato de que a criação é distinta de Deus e no entanto é sempre dependente de Deus e de que Deus está muito acima da criação e mesmo assim envolvido com ela (em resumo, que Deus é tanto transcendente como imanente) .

Isso é claramente distinto do materialismo, que é a filosofia mais comum dos descrentes hoje em dia e que nega igualmente a existência de Deus. O materialismo diria que o universo material é tudo o que há.

Os cristãos de hoje que colocam o esforço quase total de suas vidas no objetivo de ganhar dinheiro e adquirir mais posses tornam-se materialistas “práticos” em suas atividades, ja que suas vidas não seriam muito diferentes se eles realmente não cressem em Deus.

A narrativa escriturística da relação entre Deus e sua criação é também distinta do panteísmo . A palavra grega pan significa “tudo” ou “cada”, e panteísmo é a idéia de que tudo, o universo total, é Deus ou é parte de Deus.

O panteísmo nega diversos aspectos essenciais do caráter de Deus. Se o universo inteiro é Deus, então Deus não possui personalidade distinta. Deus não é mais imutável, porque, como o universo muda, Deus também muda. Além disso, Deus não mais é santo, porque o mal no universo também é parte de Deus. Outra dificuldade é que em última análise a maioria dos sistemas panteístas ( como o budismo e muitas outras religiões orientais) acabam negando a importância da personalidade humana individual: como tudo é Deus, a meta do indivíduo seria mesclar-se com o universo e tornar-se mais e mais unido a ele, perdendo assim a sua especificidade individual. Se o próprio Deus não possui identidade pessoal distinta e separada do universo, certamente não devemos nos esforçar para possuí-la também. Assim, o panteísmo destrói não somente a identidade pessoal de Deus, mas também, de modo definitivo, a dos seres humanos.

A narrativa bíblica também destrói o dualismo . Essa é a idéia de que tanto Deus como o universo material existem eternamente lado a lado. Assim, há duas forças supremas no universo, Deus e a matéria.

O problema com o dualismo é que ele indica o conflito eterno entre Deus e os aspectos maus do universo material. Deus triunfará de modo definitivo sobre o mal no universo? Não podemos estar certos, porque tanto Deus como o mal certamente existem eternamente lado a lado. Essa filosofia negaria tanto o senhorio supremo de Deus sobre a criação como também o fato de que a criação veio a existir por causa da vontade de Deus, que ela deve ser usada unicamente para seus propósitos e que ela existe para glorificá-lo. Essa perspectiva também negaria que tudo no universo foi criado inerentemente bom (Gn 1.31) e encorajaria pessoas a ver a realidade material como má em si mesma, em contraste com a genuína narrativa bíblica da criação que Deus fez para ser muito boa e que ele governa para os seus propósitos.

Um exemplo de dualismo na cultura moderna é a trilogia Guerra nas estrelas, que postula a existência da “força” universal que tem tanto o lado bom como o mau. Não há o conceito do Deus transcendente e santo que governa tudo e certamente triunfará sobre tudo. Quando os não-cris­tãos hoje começam a ficar conscientes da realidade espiritual no universo, eles muitas vezes se tornam dualistas, reconhecendo apenas que há aspectos bons e maus no mundo sobrenatural ou espiritual. O movimento Nova Era é na maior parte dualista. Naturalmente Satanás está se deliciando por haver pessoas pensando que existe uma força má no universo que talvez seja igual ao próprio Deus.

A visão cristã da criação é também distinta da perspectiva do deísmo . O deísmo é a visão de que Deus não está agora diretamente envolvido com a criação.

deísmo geralmente sustenta que Deus criou o universo e é muito maior que ele (Deus é “transcendente”). Alguns deístas também concordam que Deus tem padrões morais e por fim vai considerar as pessoas responsáveis no dia do juízo. Mas eles negam o envolvimento atual de Deus com o mundo, não dando assim espaço algum para sua imanência na ordem criada. Ao contrário, Deus é visto como o relojoeiro divino que deu corda no relógio da criação no início, mas depois o deixou funcionar por si próprio.

Ao mesmo tempo em que o deísmo afirma a transcendência de Deus, ele nega quase toda a história da Bíblia, que é a história do envolvimento ativo de Deus no mundo. Muitos cristãos nominais ou “mornos” são de fato deístas práticos, já que vivem longe da oração genuína, adoração, temor de Deus ou confiança contínua em Deus para que este cuide das necessidades que surgem.

 

C.        Deus criou o universo para mostrar a sua glória

Está claro que Deus criou seu povo para a sua glória, porque ele fala de seus filhos e filhas como aqueles “a quem criei para a minha glória, a quem formei e fiz” (Is 43.7). Mas não são somente os seres humanos que Deus criou com esse propósito. Toda a criação foi feita para mostrar a glória de Deus. Mesmo a criação inanimada, as estrelas, o sol, a luz e o céu testificam da grandeza de Deus: “Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos” (Sl 19.1,2). O cântico da adoração celestial em Apocalipse 4 conecta a criação de todas as coisas por Deus com o fato de que ele é digno de receber a glória que elas lhe conferem: “Tu, Senhor e Deus nosso, és digno de receber a glória, a honra e o poder, porque criaste todas as coisas, e por tua vontade elas existem e foram criadas” (Ap 4.11).

O que a criação mostra a respeito de Deus? Primeiramente ela mostra seu grande poder e sabedoria, muito acima de qualquer coisa que poderia ser imaginada por qualquer criatura.

“Mas foi Deus quem fez a terra como seu poder, firmou o mundo com a sua sabedoria e estendeu os céus com o seu entendimento” (Jr 10.12). O simples olhar para o sol ou para as estrelas nos       convence do infinito poder de Deus. E mesmo a breve inspeção de qualquer folha de árvore, ou da maravilha da mão humana, ou de qualquer célula viva nos convence da grande sabedoria de Deus. Quem poderia fazer tudo isso? Quem poderia fazer isso do nada? Quem poderia sustentar tudo isso dia após dia por anos sem fim? Tal poder infinito e capacidade complexa estão completamente além de nossa compreensão. Quando meditamos nisso, damos glória a Deus.

Quando afirmamos que Deus criou o universo para mostrar a sua glória, é importante que percebamos que ele não precisava criá-lo. Não devemos pensar que Deus precisava de mais glória do que ele tinha dentro da Trindade por toda a eternidade ou que ele estava de alguma forma incompleto sem a glória que haveria de receber do universo criado. Isso seria negar a independência de Deus e sugerir que Deus precisava do universo a fim de ser plenamente Deus. Ao contrário, devemos afirmar que a criação do universo foi um ato de Deus totalmente livre. Não era um ato necessário, mas foi algo que Deus escolheu fazer .”Tu, Senhor [...], criaste todas as coisas, e por tua vontade elas existem e foram criadas” (Ap 4.11). Deus quis criar o universo para demonstrar sua excelência. A criação mostra sua grande sabedoria e poder, bem como, de modo supremo, todos os seus outros atributos. Parece então que Deus criou o universo para se deleitar na criação, pois, como a criação mostra os vários aspectos do caráter de Deus, ele tem prazer nela.

Isso explica por que temos prazer espontâneo em todas as espécies de atividades criadoras que temos. As pessoas com habilidades artísticas, musicais ou literárias têm prazer em criar coisas e vê-las, ouvi-las ou ponderar sobre a obra criada. E um dos aspectos encantadores da humanidade — em contraste com o restante da criação — é a nossa capacidade de criar coisas novas. Isso também explica por que temos prazer em outras espécies de atividade “criativas”: muitas pessoas apreciam cozinhar, decorar a casa, jardinagem, trabalhar com madeira ou outros materiais, produzir invenções científicas ou inventar novas soluções para problemas de produção industrial. Mesmo as crianças gostam de colorir quadros ou construir casas de bloquinhos de plástico. Em todas essas atividades, refletimos em escala menor a atividade criadora de Deus, por isso devemos ter prazer nela e agradecer a Deus por ela.

Em todas essas atividades, refletimos em escala menor a atividade criadora de Deus, por isso devemos ter prazer nela e agradecer a Deus por ela.


D.        O universo que Deus criou era “muito bom”

Esse ponto é a seqüência do ponto anterior. Se Deus criou o universo para mostrar a sua glória, então devemos esperar que o universo cumpra o propósito para o qual ele o criou. De fato, quando Deus terminou a sua obra de criação, ele teve prazer nela. No final de cada estágio da criação, Deus viu que o que ele havia feito era bom (Gn 1.4,10,12,18,21,25). Então, no final dos seis dias da criação, “...Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom” (Gn 1.3 1). Deus teve prazer na criação que ele havia feito exatamente como havia proposto fazer.

Mesmo havendo pecado no mundo agora, a criação material é ainda boa à vista de Deus e deveria ser vista como “boa” por nós também. Esse conhecimento vai nos livrar de um ascetismo falso que vê o uso e o prazer da criação material como errado. Paulo diz que “... tudo o que Deus criou é bom, e nada deve ser rejeitado, se for recebido com ação de graças, pois é santificado pela palavra de Deus e pela oração” (lTm 4.4,5).

Embora a ordem criada possa ser usada de modo pecaminoso e egoísta, desviando nossas afeições de Deus, não devemos deixar o perigo do abuso da criação de Deus privar-nos de desfrutá-la de modo positivo, com gratidão e alegria, para o bem do seu Reino. Logo após Paulo ter advertido contra o desejo de ser rico e do “amor ao dinheiro” (cf. lTm 6.9,10), ele afirma que é o próprio Deus “que de tudo nos provê ricamente, para a nossa satisfação” (lTm 6.17). Esse fato incentiva os cristãos a encorajar o desenvolvimento industrial e tecnológico apropriado (juntamente com a preocupação ambiental), e a usar de modo alegre e agradecido todos os produtos da exuberante terra que Deus criou — com a imensa variedade de comidas, roupa, habitação, assim como dos produtos modernos como automóveis, aviões, câmeras, telefones e computadores.Todas essas coisas podem ser superestimadas e usadas indevidamente, mas em si mesmas não são más; representam o desenvolvimento da boa criação de Deus e devem ser vistas como belos dons de Deus.

 

E. O relacionamento entre a Escritura e as descobertas da ciência moderna.

Em várias ocasiões na história, vemos os cristãos discordando das opiniões consagradas pela ciência contemporânea. Na grande maioria dos casos, a fé cristã sincera e a forte confiança na Bíblia conduziram cientistas à descoberta de novos fatos a respeito do universo de Deus, e essas descobertas têm mudado a opinião científica em toda a história subseqüente . A vida de Isaac Newton, Galileu Galilei, Johannes Kepler, Blaise Pascal, Robert Boyle, Michael Faraday, James Clerk Maxwell e muitos outros são exemplos disso.

Por outro lado, houve momentos em que a opinião científica aceita entrou em conflito com o entendimento que as pessoas têm do que a Bíblia diz. Por exemplo, quando o astrônomo italiano Calileu (1564-1642) começou a ensinar que a terra não era o centro do universo, mas que a terra e os outros planetas giravam em torno do sol (seguindo assim as teorias do astrônomo polonês Copérnico [1472-1543]),ele foi criticado,e seus escritos acabaram sendo condenados pela Igreja Católica Romana. Isso aconteceu porque muitas pessoas pensavam que a Bíblia ensinava que o sol girava em torno da terra. Na verdade a Bíblia não ensina isso de forma nenhuma, mas foi a astronomia de Copérnico que levou as pesso­as a pesquisar novamente a Bíblia para ver se ela realmente ensinava o que eles pensavam que ela ensinava. As descrições que a Bíblia apresenta do sol se levantando e do sol se pondo (Ec 1.5) simplesmente pintam eventos da perspectiva do observador humano e, dessa perspectiva, elas fornecem uma descrição precisa. A lição de Galileu, que foi forçado a retratar-se em seu ensino e que teve de viver preso em sua casa nos últimos poucos anos de sua vida, deveria fazer-nos lembrar que a cuidadosa observação do mundo natural pode levar-nos de volta à Escritura, para reexaminar se ela realmente ensina o que pensamos que ela ensina. Às vezes, no exame mais preciso do texto, podemos perceber que a nossa interpretação anterior estava incorreta.

Na seção seguinte, veremos alguns princípios pelos quais o relacionamento entre a criação e os descobertos da ciência moderna podem ser abordados.


1. 
Quando todos os fatos são entendidos corretamente, não haverá “nenhum conflito final” entre a Escritura e a ciência natural.

A frase “nenhum conflito final” é retirada de um livro muito útil de Francis Schaeffer, No final conflict [Nenhum conflito final]. Com respeito às questões relacionadas à criação do universo, Schaeffer aponta diversas áreas nas quais, em seu modo de ver, há lugar para desacordo entre cristãos que acreditam na veracidade total das Escrituras. Entre essas áreas ele inclui a possibilidade de que Deus tenha criado um universo “crescido”, a possibilidade de um intervalo entre Gênesis 1.1 e 1.2 ou entre 1.2 e 1.3, a possibilidade de um longo dia em Gênesis 1 e a possibilidade de que o Dilúvio tenha afetado dados geológicos. Schaeffer deixa claro que não está dizendo que qualquer dessas posições seja sua, mas apenas que elas são teoricamente possíveis. O ponto mais importante de Scheaffer é que tanto em nosso entendimento do mundo natural como em nossa compreensão da Escritura, o conhecimento que possuímos não é perfeito. Mas podemos abordar tanto o estudo científico como o bíblico com a confiança de que, quando todos os fatos estiverem corretamente entendidos e quando tivermos entendido a Escritura corretamente, nossas descobertas nunca entrarão em conflito uma com a outra; não haverá “nenhum conflito final”. Isto porque Deus, que fala na Escritura, conhece todos os fatos, e nunca falou de modo que contradissesse qualquer fato verdadeiro no universo.


2. 
Algumas teorias a respeito da criação parecem claramente em desacordo com os ensinos da Escritura.

Nesta seção examinaremos três tipos de explicação da origem do universo que parecem claramente contrários à Escritura.

a. Teorias seculares.

Em nome da idéia de totalidade, mencionamos aqui somente de maneira breve que quaisquer teorias puramente seculares da origem do universo seriam inaceitáveis para os que crêem na Escritura. Uma teoria “secular” é qualquer teoria da origem do universo que não contempla o Deus infinito-pessoal como responsável por criar o universo com propósito inteligente. Assim, a teoria do big-bang (em sua versão secular, na qual Deus fica excluído) ou quaisquer teorias que sustentam que a matéria sempre existiu seriam contrárias ao ensino da Escritura de que Deus criou o universo do nada, e que ele o fez para a sua glória. (Quando a evolução darwiniana é interpretada no sentido totalmente materialista, como muitas vezes é, deveria pertencer a essa categoria também).

b. Evolucionismo teísta.

Desde a publicação do livro de Darwin, A origem das espécies por meio de seleção natural (1859), alguns cristãos têm sustentado que os organismos vivos apareceram pelo processo da evolução que Darwin propôs, mas que Deus guiou esse processo de forma que o resultado foi exatamente o que ele queria que fosse. Esse pensamento é chamado evolucionismo teísta porque advoga a crença em Deus (daí o nome teísta) e também na evolução. Muitos que sustentam esse evolucionismo teísta proporiam que Deus interveio no processo em alguns pontos cruciais, normalmente 1) na criação da matéria no início, 2) na criação da forma mais simples de vida e 3) na criação do homem. Mas com a exceção possível desses pontos de intervenção, os evolucionistas teístas sustentam que a evolução seguiu os processos agora descobertos pelos cientistas e que esse foi o método que Deus decidiu usar ao permitir que todas as outras formas de vida da terra se desenvolvessem. Eles crêem que a mutação casual das coisas vivas levou à evolução das formas mais elevadas de vida porque os que possuíam uma “vantagem de adaptação” (uma mutação que os permitia ser mais bem adaptados para sobreviver em seu ambiente) viviam, enquanto os outros não.

Um exame dos dados da Escritura revela que a evolução teísta é contrária à narrativa bíblica da criação. O ensino claro da Escritura de que há plenitude de propósito na obra da criação de Deus parece incompatível com a casualidade exigida pela teoria da evolução. Quando a Escritura registra que Deus disse: “Produza a terra seres vivos de acordo com as suas espécies: rebanhos domésticos, animais selvagens e os demais seres vivos da terra, cada um de acordo com a sua espécie” (Gn 1.24), ela descreve Deus fazendo coisas intencionalmente e com um propósito para cada coisa que faz. Mas isso é o oposto das mutações permitidas que acontecem totalmente ao acaso, sem propósito algum nos milhões de mutações que teriam de acontecer, sob a teoria evolutiva, antes que novas espécies pudessem emergir.

A diferença fundamental entre a visão bíblica da criação e o evolucionismo teísta repousa aqui : a força motriz que produz mudança e o desenvolvimento de novas espécies em todos os esquemas evolutivos é a casualidade, ou o acaso. Sem a mutação casual dos organismos, não temos evolução no sentido científico moderno de forma alguma. A mutação ao acaso é a força subjacente que produzo desenvolvimento eventual das formas mais simples para as formas mais complexas de vida. Mas a força motriz no desenvolvimento de novos organismos segundo a Escritura é o desígnio inteligente de Deus .”Deus fez os animais selvagens de acordo com as suas espécies, os rebanhos domésticos de acordo com as suas espécies, e os demais seres vivos da terra de acordo com as suas espécies. E Deus viu que ficou bom” (Gn 1.25). Essas afirmações parecem não se harmonizar com a idéia de Deus criando, dirigindo ou observando milhões de mutações casuais, nenhuma delas sendo “tão boa” quanto ele planejara, nenhuma delas realmente sendo a espécie de plantas ou animais que ele queria que houvesse na terra. A visão da evolução teísta tem de abranger eventos ocorridos mais ou menos assim: “E Deus disse: Produza a terra criaturas vivas de acordo com as suas espécies. E após 387 492 871 tentativas, Deus finalmente fez um rato que funcionou”.

Essa pode parecer uma explicação estranha, mas é exatamente o que o evolucionismo teísta deve postular para cada uma das centenas de milhares de diferentes espécies de plantas e animais sobre a terra: elas todas teriam se desenvolvido por meio de um processo de mutação casual durante milhões de anos, aumentando gradualmente em complexidade à medida que a vasta maioria das mutações eram prejudiciais, mas as mutações ocasionais tornavam-se vantajosas para a criatura.

O evolucionista teísta pode objetar que Deus interveio no processo e guiou-o em muitos pontos na direção planejada por ele. Mas, uma vez que se admita isso, há propósito e desígnio inteligente no processo — não temos mais qualquer evolução, porque não há mais mutação casual (nos pontos da interação divina há a produção de resultados).

A evolução teísta também parece incompatível com a descrição que a Bíblia dá da palavra criadora produzindo uma resposta imediata. Quando a Bíblia fala a respeito da palavra criadora de Deus, ela enfatiza o poder dessa palavra e sua capacidade de realizar o propósito divino. “Mediante a palavra do SENHOR foram feitos os céus, e os corpos celestes, pelo sopro de sua boca. [...] Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo surgiu” (S1 33.6,9).

Essa espécie de afirmação parece que contraria a idéia de que Deus falou e, após milhões de anos e milhões de mutações casuais nas coisas vivas, seu poder produziu o resultado que ele exigiu. Antes, tão logo após Deus ter dito “Cubra-se a terra de vegetação”, a frase imediata nos garante: ”E assim foi” (Gn 1.1 1).

O atual papel ativo de Deus em criar ou formar cada coisa viva que agora vem à existência também é difícil de conciliar com o tipo de advertência “não se meta” da evolução que é proposto pelo evolucionismo teísta. Davi foi capaz de confessar: “Tu criaste o íntimo do meu ser e me teceste no ventre de minha mãe” (S1 139.13). E Deus disse a Moisés: “Quem deu boca ao homem? Quem o fez surdo ou mudo? Quem lhe concede vista ou o torna cego? Não sou eu, o SENHOR?” (Ex 4.11). Deus faz o pasto crescer (SI 104.14; Mt 6.30) e alimenta as aves do céu (Mt 6.26) e as outras criaturas da floresta (Sl 104.21,27-30). Se Deus está tão envolvido produzindo o crescimento e o desenvolvimento de cada etapa de todo ser vivo até agora, parece de acordo com a Escritura dizer que essas formas de vida foram originariamente produzidas pelo processo evolutivo dirigido pela mutação casual e não pela criação direta e plena de propósito de Deus?

Definitivamente, a criação especial de Adão, bem como de Eva a partir de Adão, é uma razão forte para romper com o evolucionismo teísta. Esses evolucionistas teístas que defendem a criação especial de Adão e Eva por causa das afirmações de Gênesis 1 e 2 realmente rompem com a teoria evolucionista no ponto mais importante no que diz respeito aos seres humanos. Mas se, com base na Escritura, insistimos na intervenção especial de Deus na questão da criação de Adão e Eva, o que impediria ou permitiria que Deus interviesse, de modo similar, na criação dos organismos vivos?

Devemos perceber que a criação especial de Adão e Eva, conforme o registro da Escritura, demonstra que eles eram muito diferentes das criaturas que os evolucionistas descreveram como os primeiros seres humanos, criaturas primitivas, com pouquíssimas habilidades, que descenderiam de criaturas não humanas altamente desenvolvidas, sendo apenas um pouco superiores a elas. A Escritura descreve o primeiro homem e a primeira mulher, Adão e Eva, como possuidores de capacidades altamente desenvolvidas: lingüísticas, morais e espirituais, desde o momento em que foram criados. Eles podiam falar um com o outro. Podiam até falar com Deus. Eram muito diferentes daqueles seres humanos primitivos mais parecidos com animais, descendentes de criaturas não humanas parecidas com macacos, da teoria evolucionista.

Parece mais apropriado concluir com as palavras do geólogo Davis A. Young: “A posição do evolucionismo teísta como expressa por alguns de seus proponentes não é uma posição coerente com o cristianismo. Não é uma posição verdadeiramente bíblica, porque ela é baseada em parte em princípios que são importados para o cristianismo” . Segundo Louis Berkhof, ”é realmente uma vergonha dizer que Deus é chamado, a intervalos periódicos, a socorrer a natureza, remediando os abismos vazios que bocejam aos pés dela. A doutrina da criação não é isso, nem tampouco uma coerente teoria da evolução”.

c. Notas sobre a teoria darwiniana da evolução.

1) Desafios atuais à evolução. A palavra evolução pode ser usada de diferentes modos. As vezes ela é usada para referir-se à “micro-evolução” — pequenos desenvolvimentos dentro de uma espécie, de modo que vemos moscas ou mosquitos tornando-se imunes a inseticidas, ou seres humanos ficando mais altos, ou cores diferentes e variedades de rosas se desenvolvendo. Exemplos inumeráveis de tal micro-evolução são evidentes hoje, e ninguém nega que eles existem. Mas esse não é o sentido em que a palavra evolução é geralmente usada quando as teorias da criação e evolução são discutidas.

O termo evolução é usado com mais freqüência para referir-se à macro-evolução — a saber, a “teoria da evolução geral”, ou a concepção de que “as substâncias sem vida deram surgimento ao primeiro material vivo, que subseqüentemente reproduziu-se e diversificou-se para produzir todos os organismos extintos e existentes”. Neste capítulo, quando usamos a palavra evolução, ela é usada para referir-se à macro-evolução ou à teoria da evolução geral. Na teoria darwiniana moderna de evolução, a história do desenvolvimento da vida começou quando uma mistura de elementos químicos presentes na terra produziu espontaneamente uma forma de vida muito simples, provavelmente unicelular. Essa célula viva reproduziu-se, e finalmente houve algumas mutações ou diferenças nas novas células produzidas. Essas mutações levaram ao desenvolvimento de formas de vida mais complexas. Um ambiente hostil significava que muitas delas haveriam de perecer, mas as que fossem mais bem adaptadas ao seu ambiente sobreviveriam e se multiplicariam. Assim, a natureza exerceu o processo de “seleção natural” no qual os organismos variantes mais adaptados ao ambiente sobreviveram. Mais e mais mutações finalmente se desenvolveram em mais e mais variedades de coisas vivas, de modo que, a partir dos organismos bem mais simples, as formas mais complexas de vida vieram a se desenvolver, mediante esse processo de mutação e seleção natural.

Desde que Charles Darwin publicou sua obra A origem das espécies por meio de seleção natural, em 1859, essa teoria tem sido desafiada tanto por cristãos como por não-cristãos. Críticos modernos estão promovendo críticas cada vez mais devastadoras à teoria evolucionista, levantando questões como as que se seguem:


Fonte: Extraído da Teologia Sistemática do autor.


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A Doutrina Reformada acerca da Revelação

por

Paulo Anglada

 

Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência manifestam de tal modo a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, todavia não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade, necessário à salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna a Escritura Sagrada indispensável, tendo cessado aqueles antigos modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo (Confissão de Fé de Westminster, 1:1)

O primeiro capítulo da Confissão de Fé de Westminster começa tratando da bibliologia, a doutrina das Escrituras. Isto é apropriado. Não porque a doutrina das Escrituras seja mais importante do que outras doutrinas, como a pessoa e obra de Deus (a teologia propriamente dita) e de Cristo (a cristologia). Mas porque a doutrina das Escrituras é a base, a fonte de todas as demais doutrinas.

Com o princípio reformado resumido na expressão latina sola Scriptura, os reformadores rejeitaram a autoridade das tradições eclesiásticas e das supostas novas revelações do Espírito. E restabele­ceram as Escrituras como única regra de fé e prática, como única fonte autoritativa em matéria de doutrina e prática eclesiástica.

 

DIVISÃO DO ASSUNTO


As seguintes doutrinas são tratadas neste capítulo da Confissão de Fé:

Doutrina da Revelação (parágrafo I)

O Cânon e a Inspiração das Escrituras (parágrafos II e III)

Autoridade das Escrituras (parágrafos IV e V)

Suficiência das Escrituras (parágrafo VI)

Clareza das Escrituras (parágrafo VII)

Preservação e Tradução das Escrituras (parágrafo VIII)

Interpretação das Escrituras (parágrafo IX)

O Juiz Supremo das Controvérsias Religiosas (parágrafo X)

 

REVELAÇÃO NATURAL


Confissão de Fé de Westminster começa professando a doutrina da revelação natural: Deus se revela por meio das obras que foram criadas e da própria consciência do homem, na qual está impregnado um padrão moral, ainda que imperfeito por causa da queda.

Biblicamente falando, o universo físico é uma pregação. O cosmos proclama os atributos de Deus. O macrocosmos (as estrelas, os planetas, os satélites, com sua imensidão, grandeza e leis), o cosmos (a terra, os mares, as montanhas, os vegetais, os animais, o homem), e o microcosmos (os micro-organismos, a constituição dos elementos, etc.) revelam muita coisa a respeito da pessoa e da obra de Deus. O Autor de tal obra tem de ser infinitamente sábio e poderoso.

O próprio ser humano, como criatura de Deus, independente­mente do aprendizado, já nasce com uma consciência, uma versão da lei de Deus impregnada no seu ser que o habilita a discernir entre o bem e o mal e com um instinto que o induz à adoração da divindade. Este é o ensino bíblico do Antigo e do Novo Testamento:

Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo (Sl 19:1-4).

Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas (Rm 1:19-20).

Quando, pois, os gentios que não têm lei procedem por natureza de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada nos seus corações, testemunhando-lhes também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se (Rm 2:14-15).

Ao estudar a criação, o homem deveria procurar ver Deus nela, pois é obra dele, e revelam os seus atributos. As ciências podem até ser consideradas departamentos da teologia, especializações que estudam a criação e a providência. O estudo da química, da física, da matemática, da biologia, da geografia, da política, da antropologia, da história, etc., deve ter por fim último a glória de Deus. Não é sem razão que muitos dos primeiros cientistas dignos do nome eram cristãos sinceros, como Isaac Newton e Faraday.

Ao se estudar a criação, em qualquer esfera, deveria se descobrir nela as mãos de Deus e as mãos do diabo. Por um lado, observa-se nela impressionante e substancial lógica, ordem, harmonia, sabedoria e poder. Por outro lado, pode-se também perceber na natureza os traços da corrupção, desordem, conflito e degeneração decorrentes da queda. Mas a educação do nosso século, especialmente no nosso país, embora, em geral, reivindique ser cristã, tornou-se na verdade materialista. Onde, nas escolas e universidades, essas disciplinas são estudadas com essa perspectiva e com esse propósito?!

 

A CULPA HUMANA


Se o homem não houvesse caído, a revelação natural seria suficiente para que ele compreendesse as verdades com relação a Deus, à criação, ao próprio homem, etc.; de modo a submeter-se a Deus e a adorá-lo, rendendo-lhe a graça, o louvor e a honra que lhe são devidas.

Mesmo caído, a revelação natural ainda é suficiente para torná-lo indesculpável, pois o homem natural deturpa a revelação natural. Ele não dá ouvidos à pregação da natureza que o convida a glorificar a Deus. Ele não se submete à proclamação do cosmo, nem reconhece a origem divina das leis que regem o universo. O homem natural também não se submete às leis da sua própria consciência, transgredindo-as constante e deliberadamente. Recusando-se rebeldemente a reconhecer a soberania do Criador e a adorá-lo, o homem natural prefere adorar a criatura.

Tais homens são por isso indesculpáveis; porquanto tendo conhecimento de Deus não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos, e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis... pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém (Rm 1:21-23, 25).

Este diagnóstico é igualmente verdadeiro, quer aplicado à filosofia dos sofistas, epicureus e gnósticos da Grécia Antiga, quer aplicado ao humanismo renascentista, quer aplicado à ciência materia­lista moderna. Onde, insisto, nas escolas e universidades de nosso país, estuda-se a criação pela perspectiva das Escrituras e com o propósito de glorificar a Deus?

O homem natural confunde o Criador com a criação (e crê no panteísmo), isola o Criador da criação (e prega o deísmo), rejeita o Criador (e professa o materialismo), ou dá-se por satisfeito com a criação (dando origem ao naturalismo). Na sua louca cegueira, o homem natural rebelde vai além: ele prefere atribuir os traços de corrupção, desordem e conflito percebidos na criação ao Criador, e explicar a substancial lógica, ordem, harmonia, sabedoria e poder nela percebidos às forças cegas da natureza, à evolução natural, à seleção natural, ou mesmo a mutações genéticas.

Por isso o homem é indesculpável. Por isso é justamente culpado: por se recusar a andar conforme o grau da revelação que recebe, seja da natureza, seja da consciência, e se entregar rebelde e arrogan­temente a todo tipo de impiedade. “Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem” (Rm 1:32).

 

INSUFICIÊNCIA DA REVELAÇÃO NATURAL


A revelação natural é, portanto, suficiente para condenar, mas não para salvar. Devido ao estado decaído do homem, a revelação natural não é nem clara nem suficiente para que as verdades necessá­rias à sua salvação sejam compreendidas.

A religião natural ensina que a revelação da natureza é suficiente para a salvação do homem. Para os que assim pensam, a mente humana desassistida pode compreender tudo o que é necessário à salvação. Mas tal ensino contradiz frontalmente a revelação bíblica. De acordo com as Escrituras, “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente” (1 Co 2:14). Segundo as Escrituras, “aprouve a Deus salvar aos que crêem, pela loucura da pregação” (1 Co 1:21). É por isso que o apóstolo Paulo exclama: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em que não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Rm 10:13-14). Qual a conclusão? “Logo, a fé vem pela pregação (pelo ouvir) e a pregação (o ouvir), pela palavra de Cristo” (Rm 10:17).

Deus se revela na criação, sim. Esta revelação é suficiente para tornar a raça humana indesculpável. Mas, por causa da queda, não é suficiente para a salvação de ninguém.

 

REVELAÇÃO ESPECIAL


Não sendo a revelação natural suficiente para salvar o homem em função da queda, aprouve a Deus revelar-se diretamente à igreja.

Assim, Deus preparou um povo, Israel, na Antiga Aliança, e a greja, na Nova Aliança, para revelar-lhe diretamente o conhecimento necessário à salvação. De modo direto e sobrenatural, por meio do seu Espírito, através de revelação direta, teofanias, anjos, sonhos, visões, pela inspiração de pessoas escolhidas e pelo seu próprio Filho, Deus comunicou progressivamente à igreja, no curso dos séculos, as verda­des necessárias à salvação, as quais, de outro modo, seriam inaces­sí­veis ao homem.

Foi assim que Deus revelou-se a Noé, a Abraão, a Moisés, aos profetas, a Davi, a Salomão, aos seus apóstolos e, especialmente, em Cristo. É neste sentido que o autor da Epístola aos Hebreus afirma que, “Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb 1:1-2). Cristo é a revelação final de Deus.

É este também o sentido das palavras do apóstolo Paulo endereçada aos gálatas: “Faço-vos, porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem; porque eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo” (Gl 1:11-12).

À igreja de Deus, portanto, foram confiados os oráculos de Deus, uma revelação especial, inspirada, clara, precisa, autoritativa, suficiente para ensinar ao homem o que ele deve conhecer e crer e o que dele é requerido, com vistas à sua própria salvação e à glória de Deus.

 

REVELAÇÃO ESCRITA


Tendo em vista a insuficiência da revelação natural e a absoluta necessidade da revelação especial, aprouve a Deus ordenar que esta revelação fosse toda escrita, a fim de que pudesse ser preservada e permanecesse disponível, para a consecução dos seus propósitos eternos. Deus conhece perfeitamente a natureza humana corrompida. Ele conhece também a malícia de Satanás, bem como a perversão do mundo. Ele sabe que revelar a sua vontade à igreja não seria suficiente, pois seria fatalmente corrompida e deturpada. Basta observar as tradições religiosas, mesmo as ditas cristãs; como tendem inexoravel­mente para o erro!

Por isso Deus fez com que todas as verdades necessárias à salvação, santificação, culto, serviço e vida do homem, fossem escritas e preservadas, para que pudessem ser conhecidas, cridas e obedecidas. Com este propósito, o próprio Deus, por meio do seu Espírito, inspirou os autores bíblicos, a fim de que pudessem escrever a revelação especial, sem erro algum.

Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra (2 Tm 3:16).

Temos assim tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vossos corações; sabendo, primeira­mente, isto, que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens santos falaram da parte de Deus movidos pelo Espírito Santo (2 Pe 1:19-21).

De acordo com este parágrafo da Confissão, portanto, a revelação escrita é expressão da graça de Deus com vistas à preser­vação da integridade da verdadeira religião e à salvação, edificação e conforto do seu povo.

 

NECESSIDADE DAS ESCRITURAS


Sendo a Palavra escrita o meio escolhido por Deus para revelar a sua vontade ao homem, ela não pode ser dispensada, igualada, acrescentada nem suplantada. Nem o Espírito agiria em detrimento ou à parte dela, mas com e por ela. É neste sentido que as Escrituras são necessárias e indispensáveis para a comunicação das verdades necessárias à salvação. A Igreja Católica têm a tradição oral. Os reformadores radicais tinham a palavra interior. Outras denominações modernas têm novas revelações do “Espírito.” A fé reformada se fundamenta inteiramente nas Escrituras.

* Extraído de Paulo R. B. Anglada, Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras (São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998), 25-31.

Ler Salmo 19:1-4; Romanos 1:19-22; 1 Coríntios 1:21; e Romanos 10:13-14,17.

 


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segunda-feira, 22 de julho de 2024

Qual o mistério da teologia reformada?

Essa pergunta intriga muitos que anseiam por um entendimento profundo das Escrituras e da relação com Deus. A teologia reformada é uma tradição que emergiu durante a Reforma do século XVI e que se aprofundou em aspectos como a soberania divina, a justificação pela fé e a autoridade da Bíblia.

O “mistério” da teologia reformada não é algo escondido ou secreto, mas sim a complexidade e a profundidade da relação de Deus com a humanidade, manifestada através de doutrinas como a predestinação e a eleição. A compreensão desses mistérios nos leva a uma adoração mais profunda e a um relacionamento mais íntimo com Deus. 

Teologia reformada

É o ponto onde cristãos que percorreram a jornada do entendimento teológico chegam para refletir sobre a riqueza da doutrina reformada. Esta tradição teológica, que tem suas raízes na Reforma Protestante, destaca-se por oferecer um quadro sólido para entendermos os fundamentos da fé cristã, como a soberania de Deus, a depravação total do homem e a salvação pela graça através da fé.

A teologia reformada serve como um farol que orienta os crentes em sua jornada espiritual, assegurando que eles se mantenham alinhados às Escrituras e focados na supremacia de Cristo em todas as coisas. Este foco claro e a aderência à sã doutrina são particularmente vitais em um mundo cada vez mais relativista e pluralista.

O impacto dessa teologia não está limitado apenas ao intelecto, mas estende-se à vida prática de cada cristão, informando o modo como vivemos, oramos e interagimos com a sociedade ao nosso redor. Dessa forma, a teologia reformada não é apenas um sistema doutrinário, mas uma visão de mundo que molda nossa fé e prática, chamando-nos a viver para a glória de Deus.

Fonte: https://cucadecrente.com.br/teologia-reformada/#:~:text=A%20teologia%20reforma%2C%20como%20às,questões%20de%20fé%20e%20prática.

Qual a história da teologia reformada?

Esta pergunta nos leva a uma jornada fascinante através do tempo, começando no século XVI com o que é conhecido como a Reforma Protestante. Esse período marcou uma ruptura significativa com a Igreja Católica Romana e deu origem a várias tradições protestantes, entre as quais a teologia reformada se destaca. A teologia reformada foi profundamente influenciada por figuras como Martinho Lutero, João Calvino e Ulrico Zwinglio.

No entanto, é Calvino quem muitas vezes é mais associado a essa escola de pensamento. Seus escritos, especialmente Institutas da Religião Cristã, tornaram-se um marco na teologia, estabelecendo princípios como a soberania de Deus, a depravação total do homem e a salvação exclusivamente pela graça. A história da teologia reformada também inclui a formulação de confissões e catecismos, como a Confissão de Fé de Westminster e o Catecismo Heidelberg, documentos que buscaram sintetizar as crenças reformadas e fornecer uma estrutura doutrinária para as igrejas.

Ao longo dos séculos, a teologia reformada tem enfrentado diversos desafios, desde debates internos até confrontos com outras tradições teológicas. No entanto, ela permanece como uma voz influente no protestantismo, sendo estudada, ensinada e vivida por milhões de cristãos ao redor do mundo. Para aqueles que buscam uma fé enraizada na Escritura e em uma compreensão profunda de Deus e do evangelho, a teologia reformada oferece uma rica herança teológica e espiritual. 


Fonte: https://cucadecrente.com.br/teologia-reformada/#:~:text=A%20teologia%20reforma%2C%20como%20às,questões%20de%20fé%20e%20prática.

O que é teologia reformada?

 Esta é uma pergunta que muitos cristãos se fazem ao navegar pelo vasto universo das crenças e práticas cristãs. A teologia reformada é uma tradição teológica que tem suas raízes na Reforma Protestante do século XVI. Ela se distingue por seu foco na soberania de Deus, na autoridade das Escrituras e na justificação pela fé, entre outras doutrinas. A teologia reforma, como às vezes é chamada, foi fortemente influenciada por teólogos como João Calvino e Ulrico Zwinglio.

Esses reformadores enfatizavam a necessidade de retornar às Escrituras como a fonte final e autoritativa para todas as questões de fé e prática. Eles rejeitaram muitas das tradições e ensinamentos que consideravam não-bíblicos, estabelecendo assim os fundamentos para o que hoje conhecemos como teologia reformada. O que é teologia reformada não é uma questão simples de responder, devido à riqueza e complexidade desta tradição teológica.

No entanto, ela pode ser compreendida como um sistema de crenças que procura ser fiel ao ensino bíblico, especialmente no que se refere à natureza de Deus, à condição humana e ao plano divino de redenção.  Entender sobre esse tema é crucial para qualquer cristão que deseje aprofundar sua compreensão da fé e viver de acordo com os princípios bíblicos. Se você está em uma jornada para entender melhor a teologia cristã, a teologia reformada oferece uma estrutura sólida e bíblica para essa exploração.

Fonte: https://cucadecrente.com.br/teologia-reformada/#:~:text=A%20teologia%20reforma%2C%20como%20às,questões%20de%20fé%20e%20prática.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

MILAGRES

MILAGRES

por

Gordon J. Spykman


 

TEOLOGIA REFORMACIONAL
UM NOVO PARADIGMA
PARA SE FAZER TEOLOGIA

por

GORDON J. SPYKMAN


Milagres


Durante mais de um milênio os ensinos referentes ao mistério dos milagres foram mantidos, seriamente, pela distinção escolástica entre o “poder ordenado” de Deus (potentia ordinata – providência) e seu “poder absoluto” (potentia absoluta – milagres). Entre os pensadores que deduzem a vontade de Deus, com freqüência a idéia de “poder absoluto” terminava em puro voluntarismo. Conforme este conceito a mão de Deus se estende direta e imediatamente aos assuntos de nosso mundo. Deus pode fazer qualquer coisa que ele queira fazer, o que acaba sendo uma caricatura do ensino bíblico que afirma “para Deus todo é possível”. Em conseqüência, os atos da providência de Deus são concebidos de forma arbitrária, inclusive, caprichosa. Tais noções voluntaristas de “poder absoluto” negam os ensinos bíblicos da constância pactual do operar de Deus no mundo, constância que está firmemente fundamentada em sua Palavra mediadora para a criação. Outros pensadores, que acentuam a racionalidade divina, apelam para a idéia de “poder absoluto” para afirmar que Deus pode fazer todo o que seja consistente com as leis da lógica. Somente são logicamente concebíveis aqueles atos divinos que não envolvem uma violação da regra da não-contradição [1] (inclusive o milagre sacramental da misteriosa transubstanciação do pão e do vinho na eucaristia era, segundo se sustentava, logicamente defensável). No caso de tais demonstrações racionais do poder absoluto de Deus para realizar milagres, se apóia fortemente nos métodos aristotélicos de raciocínio, introduzidos no cristianismo ocidental por Boethius, e canonizados pelas Sentenças de Lombardo, elaborados pelos grandes pensadores da igreja medieval. Essa classe de pensamento foi repudiada pela maioria dos reformadores, mas revivida rapidamente pelo escolasticismo protestante, devido à influência de Beza e Melanchton. Os efeitos tardios desta tradição se encontram, embora que de modo ambíguo, na seguinte definição que Louis Berkhof faz do soberano poder de Deus:

O poder em Deus pode ser chamado de a energia efetiva de sua natureza, ou essa perfeição de sua existência mediante a qual ele é a causa absoluta e suprema ... A potentia ordinata pode ser definida como essa perfeição de Deus mediante a qual, ele, pelo mero exercício de sua vontade, pode executar tudo o que se encontra em sua vontade, ou conselho. (Teologia Sistemática, pp. 82-83).

Segundo assume a escolástica tradicional, os poderosos atos de Deus na história são reduzidos a problemas racionais que devem ser resolvidos analiticamente pelo intelecto humano. Os decretos de Deus são acomodados às leis da causalidade, tendo como resultado uma tirania da probabilidade lógica. O próprio Deus é reduzido a maior das premissas que formam um extenso processo de argumentações dedutivas. Desta maneira, o Deus ativo, santo, que guarda o pacto feito com Abraão, Isaque e Jacó, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, desaparece detrás dos argumentos de filósofos e teólogos (Pascal). O teor profundamente espiritual da mensagem bíblica é majoritariamente silenciado. A idéia de “a analogia do ser” (analogia entis), com a sua correspondente teoria do conhecimento, domina a discussão, encerrando a Deus e ao homem numa rede divida de declarações lógicas. A autonomia da razão humana rivaliza com a revelação divina como princípio operativo. Os pensadores cristãos tornam-se cegos ante o fato de que a própria racionalidade é uma função criada, sujeita as normas e limitações da criatura. Deste modo, a distinção entre Criador e criatura, praticamente, sofre um eclipse total.

Esta tradição escolástica na teologia resulta num número de duvidosos enfoques do tema dos milagres. Alguns afirmam que os milagres são contra naturam; que operam em oposição às normas estabelecidas na ordem da criação. Outros os caracterizam como supra naturam; que esporadicamente, e em diferentes lugares, Deus suspende momentânea e localmente suas “leis naturais” que normalmente governam o curso regular dos acontecimentos, para dar lugar a intervenções sobrenaturais. Ambas posições sustentam-se em cosmovisões dialeticamente dualistas. Tal como enfatiza Diemer, quando o homem moderno trata de explicar os milagres apelando ao sobrenatural, na realidade está negando o miraculoso.

Temo que uma quantidade de cristãos contemporâneos, com seu conceito de milagres como sendo atos sobrenaturais, e com seu conhecimento da medicina e psicologia atual, duvidariam do caráter miraculoso das curas relatadas nas Escrituras se as mesmas ocorressem na Europa de hoje... (porque) o sobrenatural sempre foi, é, e sempre será, um asylum ignorantiae em que alguém pode classificar tudo e cada coisa que não se pode explicar. (...) [por isso] estou convencido que de modo algum é necessário estabelecer intervenções sobrenaturais como uma explicação dos milagres que as Escrituras relatam. Todos que usam o sobrenatural como uma explicação, se privam do discernimento que poderiam alcançar enquanto a verdadeira natureza desses acontecimentos (Nature and Miracle, pp. 21-23).

Numa cosmovisão biblicamente dirigida e abrangente, Deus e o mundo não são duas forças em competição. Conseqüentemente, naquilo que denominamos milagres, Deus não elimina a agência instrumental de suas criaturas. Elas continuam sendo seus servos, que respondem ao poder governativo da Palavra. Por isso, estes poderosos atos de Deus, nem contravém, nem suplantam sua ordem dinâmica, mas estável, para a criação. O potencial para as obras miraculosas é dado desde o começo em e com a permanente Palavra de Deus para a nossa vida em seu mundo. Portanto, os milagres não são “aberturas” sobrenaturais acima e além das ordenanças da criação. Com o seu poder, realizador de maravilhas, Deus não retira o seu cuidado providencial, nem o põe de lado, nem o ignora, nem o coloca na espera, nem anula o seu impacto. A vontade de Deus, revelada nesses assombrosos sinais e maravilhas reside no impacto do poder da própria Palavra. Não há nada de arbitrário, ou caprichoso nisto. Em nossa perspectiva podem parecer como intervenções surpreendentes, inesperadas, extraordinárias da mão de Deus na história. Todavia, para Deus os milagres não são milagres como os percebemos. São apenas a execução de sua vontade, conforme outros caminhos, que a nós parecem não usuais e excepcionais, entretanto, são caminhos que são consistentes com a ordem de Deus. Para citar outra vez a Diemer, “com os sinais e milagres da providência de Deus na história da humanidade não se suplanta nenhuma lei, nem relações estáveis. Mas, que sob condições distintas às ordinárias, bem conhecidas, manifestam-se outros poderes. Isto ocorre quando o homem vive e atua baseado na fé e oração. Assim as capacidades e poderes da natureza são ativados a serviço da vinda do reino de Deus na terra” (Nature and Miracle, p. 16). Por isso, segundo o conceito bíblico:

Um milagre não é sinal de que um Deus, normalmente ausente, se faz momentaneamente presente, ... [mas], é um sinal de que Deus, por um momento e com um propósito especial, está transitando por caminhos que normalmente não transita, ...um sinal de que Deus, sempre presente em poder criador, está operando aqui e agora, de uma maneira que não é familiar (Lewis Smedes, Ministry and the Miracle, pp. 48-49).

Todas as possibilidades da criação estão ao serviço de Deus. Por isso, os milagres não contradizem, mas, abrem de maneira dramática o poder sustentador e restaurador da Palavra de Deus para a criação. Essa Palavra inclui poderes assombrosos dos que escassamente somos conscientes, que com freqüência escapam a nossa atenção, e que na maioria das vezes, estamos insensíveis. Segundo as palavras de Berkouwer:

Não que nos milagres se revele um poder maior que o que se encontra no curso ordinário das coisas. Todas as coisas que Deus trás à existência é obra de sua singular onipotência. Mas nos milagres Deus usa outro caminho que se esperava dele, conforme o curso normal dos acontecimentos. Na Escritura muitas vezes, se pode discernir esta “outra maneira” da obra de Deus, e assim oferece o fundamento do caráter testemunhal dos milagres. Desse modo, se explica a origem do assombro (The Providence of God, p. 231).

Por isso, devemos ser sensíveis ao cuidado providencial de Deus, não somente em nossas experiências “de cima”, ou quando “escapamos com o justo” do ameaçador desastre, mas, também em nossas “rotinas cotidianas”. O maná de Deus no deserto, dificilmente seria mais milagre que o lançar a semente na terra, onde morre, para produzir um novo grão. Sua resposta à oração fervorosa pode ser tão real na terapia médica, como nas dramáticas curas realizadas por Jesus e seus apóstolos. Nas palavras de Bavink:

[a providência] se manifesta não somente e primordialmente em acontecimentos extraordinários e milagres, senão de igual modo, na ordem estável da natureza e nos acontecimentos comuns da vida cotidiana (Gereformeerde Dogmatiek, vol. II, p. 580).

O significado mais profundo e completo da providência especial de Deus, que chamamos milagres, certamente está escondido em mistério. Mas isto também é certo, quanto a sua providência geral. Nenhum aspecto da realidade criada, nenhum acontecimento na história é racionalmente transparente. Racionalismo é uma pretensão de orgulho. Portanto, o significado da profunda dimensão misteriosa dos milagres deve ser mais adorado com reverência, do que discernido com o intelecto. Essa classe de humildade nos “salva tanto do otimismo superficial, que não consegue ver os enigmas da vida, como do orgulhoso pessimismo, que desespera do mundo e de nosso destino” (Gereformeerde Dogmatiek, vol. II, p. 580).

É difícil traçar uma linha demarcatória entre providência regular e os milagres como “a outra maneira” do atuar de Deus na criação. Calvino estabelece uma estreita relação entre estes dois aspectos da providência divina ao comentar acerca dos dois “milagres”, isto é, a detenção do sol nos dias de Josué, e o retrocesso do sol em resposta ao pedido de Ezequias. Estas são suas palavras:

Através destes poucos milagres, Deus tem testificado que o sol não sai, nem se põe diariamente, por um cego instinto da natureza, mas, que ele mesmo, com o propósito de recordar-nos renovadamente do seu favor paternal conosco, governa seu curso. Nada é mais natural que a primavera siga o inverno; o verão a primavera; o inverno o outono; todos ao seu tempo. Todavia, nesta seqüência se percebe uma diversidade tão grande e irregular que realmente é manifesto que cada ano, mês e dia é governado por uma nova e especial providência de Deus (Institutes, I.16,2).

Todas as obras de Deus tem um significado profundo, misteriosamente miraculoso. Em conseqüência, crer na realidade histórica dos milagres é um aspecto permanente da história da fé cristã. A doutrina bíblica da providência e um conceito cristão da história são impensáveis aparte das poderosas obras de Deus, tais como a criação, o êxodo, e a ressurreição, entretecidas integralmente em toda a trama da revelação bíblica.

Todavia, com o começo da modernidade, ocorreu uma mudança radical. Os pensadores do Iluminismo relegaram os milagres a cosmovisão mitológica dos tempos antigos. Esta cosmovisão pré-científica foi declarada como obsoleta. Uma cosmovisão nova estava nascendo. O homem moderno, que finalmente havia chegado à maturidade, rejeita toda a necessidade de uma “hipótese” de providência divina, nem mesmo o mencionar “variáveis” e “desvios” tais como os milagres. O “deus dos espaços vazios” está morto. Porque agora vivemos num universo contido em si mesmo, um continuum fechado de relações uniformes de causa e efeito, um mundo hermeticamente selado pela lei da analogia que exclui fatores cientificamente incontroláveis, tais como a providência, milagres ou uma “mão superior” na história. O criticismo contemporâneo aplicado ao testemunho bíblico, quanto ao que se refere a sinais e maravilhas e milagre, é exposto claramente por Helmut Thielicke. As linhas seguintes são um eco da mente do homem moderno:

...a certeza somente é possível, se a verdade é análoga ao que contém minha estrutura de consciência, como consciência de verdade. Pois, sou um ser racional consciente de meu esclarecimento e maturidade, toda mensagem de verdade que chega a mim, somente pode ser recebida e apropriada por mim, se contém uma verdade racional. Isto significa que uma verdade que somente é atestada pela história, sem ser validada pela razão, é algo meramente descartável. Mas, de outro modo, se é validada pela razão, essa verdade pode ser separada da história que a atesta, uma vez que se tenha percebido. Porque a religião não é verdade, somente porque os evangelistas e apóstolos a ensinaram; eles a ensinaram porque é verdade. Deste modo, tenho meu próprio acesso, autônomo à verdade. Nas etapas imprecisas e imaturas de meu desenvolvimento, talvez, a verdade me chegue primeiro pelo caminho da história. Mas, quando a percebo, e quando a aproprio, sou independente daquele que a transmite e sustento-me sobre meus próprios pés. Quando terminar a educação histórica da raça, somente existirá o evangelho puro e eterno da razão (The Evangelical Faith, vol. I, p. 42).

A ousada presunção, confiada em si mesma, que domina este conceito racionalista do homem e do mundo, próprio do século dezenove, tem sido severamente castigada pelos revolucionários acontecimentos do século vinte. Os pensadores contemporâneos falam com maior cautela, e tem um tom mais tentativo dos assim chamados “resultados seguros do método científico”. São menos absolutos em suas afirmações sobre as “leis fixas da natureza.” Admitem que as coisas parecem serem mais complexas do que haviam presumido anteriormente. Atualmente as noções de contingência, indeterminação, relatividade e inclusive irracionalidade, são expressões comuns nos círculos da erudição. Encontramos sob os efeitos de uma “revolução exemplar”. Às vezes, os cristãos sentem tentados a regozijar-se ante tais sinais de atenuação e retratação na moderna cosmovisão mecanista-determinista. Talvez, se inclinem a pensar que esta mudança, ao menos ofereça uma leve esperança de obter, outra vez, um pequeno espaço para as obras da providência divina e para os milagres. Como se os milagres existissem graças às deficiências fortuitas da ciência! Quem sucumbe a esta mentalidade negativa, permitindo que a ciência moderna escreva a agenda decisiva, e contentando-se em levantar as escassas migalhas da fé que caem de sua mesa, não podem, senão, esperar com um sentido de temor e tremor as novas explorações científicas. Segundo o expressa Berkouwer:

Aquele que descobre um lugar para a obra de Deus na crise da ciência natural ... implicitamente está relativizando esta obra [divina] e tem-na posicionado contra a ordem natural considerando-a como uma realidade auto-existente. Desta maneira, o tema dos milagres sempre estará cercado com os problemas da ciência natural. E se abandonará em sua maior parte a forma bíblica de falar de Deus neste mundo (The Providence of God, pp. 219-220).

Ainda que de forma ambígua, em nosso século pessoas como Barth, Bonhoeffer e outros, contra-atacaram energicamente a hermenêutica histórico-crítico do liberalismo moderno, arraigando numa cosmovisão naturalista-secularista que despojou a revelação bíblica da realidade dos milagres. Isto levou Barth a tomar parte do método radical de demitolização de Bultamann. Também é bem conhecido o “Sim” de Barth contraposto ao “Não” de Brunner, quanto ao milagre do nascimento virginal. Todavia, como em toda hermenêutica consistente, o método barthiano de interpretar os milagres, encontra o seu contexto de significação em sua peculiar cosmovisão. Nela traça uma tênue linha demarcatória entre “história” e “supra-história”. Conseqüentemente, distingue entre “milagre” (o evento histórico) e “mistério” (seu significado supra-histórico). Milagres como o nascimento virginal realmente ocorrem, insiste Barth, em oposição a seus mestres modernistas. Todavia, para captar seu significado real, devemos observar além do seu caráter de evento histórico para focalizar seu significado trans-histórico, o mistério da livre e soberana obra de Deus em Jesus Cristo. Por isso, Barth ao tratar do “milagre do Pentecostes” distingue este evento como miraculoso, de seu significado misterioso. Em suas palavras:

O milagre é a forma de mistério. Não pode ser separado dele. Mas, se tem que distinguir e considera-lo de forma separada. O relato do mesmo está relacionado ao mistério, tal como o é, o relato do nascimento virginal, a encarnação operada em seu nascimento, ou da tumba vazia ao mistério da vida de Cristo como Ressuscitado, ou o dos milagres de Jesus à suas declarações messiânicas pronunciadas neles. Aqui, como em toda outra parte, o milagre tem a função particular e indispensável de indicar e ao mesmo tempo caracterizar o mistério, de dar seu sentido e distintivo e de interpretá-lo, tal como deve ser entendido. Aqui, como em outra parte, a forma não pode ser separada da matéria, nem a matéria da forma. Todavia, também aqui, não pode haver dúvida de que o milagre é neste sentido da forma de mistério, da obra divina e da revelação testificada.

Qual é então, o significado específico de milagre do Pentecostes? “...é o mistério absolutamente divino da liberdade destes homens para ser mensageiros a Israel, e ao mundo, do Jesus ressuscitado.” Todavia, a prova crucial e decisiva da fé está, conforme Barth, não nos sinais miraculosos do evento de Pentecostes como tal, mas no significado misterioso destes atos dramáticos, tal como foram expostos no sermão de Pedro. Entretanto:

O relato que Lucas faz deste milagre foi indispensável, não para explicar o milagre, que fala por si mesmo, nem para destacar ou estabelecer sua historicidade, mas para limitar ou defini-lo. Sua mensagem é que nos seguintes atos dos apóstolos, realmente estamos ante as maravilhosas obras de Deus e não de homens, e que estas obras consistem no fato de superar a separação entre os vizinhos próximos e distantes com a sua palavra (Church Dogmatics, III/4, no. 54, pp. 320-323).

A distinção barthiana entre milagre e mistério, interpretada como forma e matéria, expõe as marcas de uma reversão, de orientação existencial, em direção as tendências dualistas do escolasticismo protestante. Emerge, então, um novo esquema de natureza/graça. Tais conceitos dicotomistas, inclinados para um conceito deísta da relação Criador/criatura, tem atormentado, por muito tempo, nosso entendimento acerca dos milagres. Nas palavras de Bavink:

A maior objeção ao deísmo é, certamente, esta, que ao divorciar Deus do mundo, o infinito do finito, e situa-los de forma dualista um contra o outro, se convertem em poderes opostos, aprisionados numa luta sem fim, disputando cada um, o domínio do outro. O que é dado a Deus, é tirado do mundo. Quanto mais se estende a providência de Deus, maior é a perda de independência e liberdade que sofre a criatura. E por outro lado, a criatura somente pode manter sua auto-atividade repelindo a Deus e despojando-o de sua soberania (Gereformeerde Dogmatiek, vol. II, p. 563).

Estas cosmovisões assumem que a realidade criada, basicamente, opera de acordo com a lei natural. Todavia, esporadicamente experimentamos intrusões sobrenaturais, do além, na regularidade da ordem natural para demonstrar uma graça mui especial, ou algum cuidado providencial. Por detrás desta classe de interpretação de milagres está a ascensão, escassamente dissimulada, de uma cosmovisão dualista na qual a causalidade natural funciona independentemente da Palavra de Deus, com algumas ocasionais interferências corretivas nas mãos de um Deus ex machina.

Tais perspectivas estão diametralmente opostas com a cosmovisão bíblica, que nos confronta com Deus como providencialmente ativo a cada passo do caminho, sustentando incessantemente, e governando a todas as suas criaturas, mediante o poder sustentador e restaurador de sua Palavra. Por isso, fazemos bem em descartar muitas destas categorias comuns, usadas regularmente para distinguir o milagre da história ordinária. Entre elas estão as seguintes: (a) a distinção entre natural e sobrenatural, sendo que a criação é “natural” no sentido de possuir sua própria e singular identidade como criação, e ainda assim, “sobrenatural” no sentido de estar sujeita constantemente à ordenança divina; (b) a distinção entre atos mediatos e imediatos de Deus, sendo que, em cada relação da vida Deus trata com suas criaturas conforme o seu pacto, através do poder mediador da sua Palavra – contrário ao comentário de Calvino, de que a providência de Deus é o princípio determinante de todas as coisas e que o é, de tal maneira, que às vezes “opera através de um intermediário, às vezes sem intermediário, às vezes em oposição a todo intermediário” (Intitutes, I,17,1); (c) a distinção entre normal e anormal, já que estas categorias também representam uma forma altamente pejorativa de diferenciar entre as obras providenciais de Deus. Este conceito assume que a atividade de Deus, às vezes, sai da ordem normativa da criação.

Também é muito suspeito o método que (d) distingue os milagres da constante superintendência de Deus sobre a história, usando a distinção aristotélica entre causas lógicas primárias e secundárias a efeitos de sublinhar o sobrenatural e não mediato (contra media) da natureza dos eventos miraculosos (compare Louis Berkhof, Teologia Sistemática, pp.175-176); (e) também é duvidoso aquele conceito de milagres que os distingue dos eventos históricos ordinários, declarando-os inexplicáveis, ou incompreensíveis, porque isto implicaria, que o significado da maioria dos eventos são transparentes. Na realidade não somos capazes de sondar com profundidade nem sequer aos acontecimentos mais comuns de nossa experiência cotidiana. Por isso, segundo as palavras de Herman Hoeksema:

É certo que não podemos entender como o Senhor pode multiplicar uns poucos pães em suas mãos divinas, de modo a dar de comer com elas a uma considerável multidão. Mas tampouco, está dentro dos limites de meu entendimento, como uma semente pode cair na terra e morrer, para dar fruto cem vezes mais. Certamente é verdade que minha mente se assombra, quando o salvador chama Lázaro para sair do sepulcro que já estava há quatro dias dormindo no pó; mas o nascimento de um bebê não transcende, nem mais nem menos, mais ousada compreensão. Como o Senhor Jesus pode transformar água em vinho, nas bodas de Caná, certamente é um mistério para nós, mas não é menos incompreensível como a videira pode produzir uvas e dessa maneira transformar diferentes elementos em vinho. Em outras palavras, para meu entendimento não há diferença em que Deus, por sua onipotência, opera na forma comum e conhecida sobre a videira de modo que produza uvas, ou se, pela mesma potência opera sobre a água para mudá-la em vinho. Se, o sol e a lua se detêm ante a palavra de Josué, confessamos não podermos compreender este fenômeno; mas, quando o Senhor a cada manhã, novamente causa que o sol se levante sobre o horizonte oriental, essa obra de Deus também transcende minha compreensão... o milagre nos assombra e capta nossa atenção especial. Mas, a causa disto não deve ser achada na compreensão dos eventos e atos comuns da providência de Deus, e a incompreensão nos milagres. Mas, deve ser achado em que chegamos a estar tão acostumados com as obras diárias do onipresente poder de Deus que normalmente não lhes prestamos atenção. No milagre, Deus certamente realiza algo especial que precisamente, por seu caráter especial chama a atenção. Todavia, nem no assim chamado caráter sobrenatural, nem no imediato, nem no caráter incompreensível de um milagre pode encontrar-se a idéia própria de um milagre (Reformed Dogmatic, pp.242-243).

A ênfase bíblica não recai nos milagres como um problema que deve ser resolvido, nem como um quebra-cabeças referindo-se a sua possibilidade, ou probabilidade, mas sobre a sua realidade como fatos. Naturalmente que os milagres ocorrem! O que mais esperamos? Quanto à ressurreição os críticos poderão exclamar: impossível! Todavia, a Escritura fala numa linguagem totalmente diferente. Foi impossível que a morte retivesse a Cristo (At 2:24-28). Os milagres são confirmações da invencível verdade da Palavra de Deus. Não são exibições brutas de poder. Seu propósito não é impressionar as pessoas com tediosas demonstrações da onipotência divina. Não são para satisfazer nossa curiosidade. Os milagres estão carregados de intenção revelacional, de propósito e significado.

Conseqüentemente, a Escritura estabelece uma estreita relação entre o milagre e a fé. A fé tem olhos para ver as maravilhosas obras de Deus, sendo ela mesma um milagre da graça divina. Nos evangelhos lemos que em alguns lugares onde a incredulidade havia cegado as pessoas “Jesus não pode realizar ali nenhum milagre...” (Mc 6:5). Talvez, nossa freqüente impotência espiritual esteja relacionada a uma falta de fé nas “obras maiores” (Jo 14:12-14) que nosso Senhor prometeu. Por isso, não há uma boa razão bíblica para restringir o miraculoso poder de Deus, em certos tempos (passados) e outros lugares (muito longes), por exemplo, na era bíblica. Rejeitar o plano da realidade, ou inclusive a possibilidade de milagres em nossos tempos, expõe nossa derrota ante o espírito secular do presente. Hoje a vida está tão aberta aos milagres como sempre. Render-se ante uma cosmovisão cerrada é empobrecer o poder da oração. De outro modo, uma fascinação excessiva com os sinais miraculosos nos tornará facilmente cegos, quanto ao cuidado providencial de Deus nos acontecimentos comuns da vida cotidiana. Os milagres não são sensações exteriores a este mundo. São parte integral de nossa experiência terrena. O número de coisas operadas por milagres, em resposta à oração, supera ao que a maioria de nós jamais houvesse sonhado. Deus opera nos milagres, não contra naturam, senão contra peccatum, contradizendo com isto, a direção pecaminosa, a distorção e perversão da vida no mundo, que contravém a obra criadora de suas mãos.

Por isso, os milagres não são acontecimentos anormais, ou não-naturais. Tais noções pressupõem a normalidade da “lei natural”. Entretanto, eles são reafirmações da normatividade da boa criação, da permanente fidelidade de Deus às promessas de seu pacto. Os milagres são sinais e maravilhas do shalom que Deus quer para nós, por enquanto destruído, mas restaurado em Cristo, um shalom cuja restauração final é posta diante de nós, como uma esperança escatológica. Os milagres representam manifestações do reino na presente realidade, do reino vindouro. São poderosos sinais para recordar-nos a dimensão do “já” da vinda do reino. Como declarou Jesus “mas se pelo dedo de Deus, eu expulso os demônios, certamente o reino de Deus é chegado entre vós” (Lc 11:20). Mas, o assombro que despertam em nós, também nos recorda enfaticamente a dimensão do “ainda-não” do reino. Todavia, sua ocorrência, aparentemente excepcional, não deve confundir-nos a pensar que são “desvios”, excursões a alguma “terra de ninguém e do nunca”. Os milagres são sinais do reino, firmemente plantados junto a esse caminho, cristologicamente reaberto, que nos conduz a renovação dessa boa terra onde reside a perfeita justiça.



 

 


NOTAS:

[1] A lei lógica da não-contradição diz, que duas afirmações contrárias não podem ser mantidas ao mesmo tempo no mesmo sentido (nota do tradutor).


Traduzido:
Rev. Ewerton Barcelos Tokashiki
09 de Julho de 2004.


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