segunda-feira, 15 de julho de 2013

No capítulo anterior tratamos da conversão em geral, e também demos uma breve descrição do elemento negativo da conversão, qual seja, o arrependimento. O presente capítulo será dedicado a uma discussão do elemento positivo, que é a fé. Esta é de significação tão central na soteriologia, que requer um tratamento separado. É melhor faze-lo nesta altura, não somente porque a fé é uma parte da conversão, mas também porque ela está relacionada instrumentalmente com a justificação. Sua discussão constitui uma transição para a doutrina da justificação pela fé.

A. Termos Bíblicos Para Fé.


1. OS TERMOS DO VELHO TESTAMENTO E O SEU SIGNIFICADO. O Velho Testamento não contém nenhum substantivo para fé, a não ser que emunah seja assim considerado em Hc 2.4. Esta palavra significa ordinariamente “fidelidade”, Dt 32.4; Sl 36.5; 37.3; 40.11, mas o modo pelo qual a afirmação de Habacuque é aplicada no Novo Testamento, Rm 1.17; Gl. 3.11; Hb 10.38, parece indicar que o profeta empregou o termo no sentido de fé. A palavra mais comum no Velho Testamento para “crer” é he’emin, forma hiphil de ‘amam. No qal significa “amamentar”, “cuidar de” ou “nutrir”, no niphal, “ser (ou estar) firme”, ou “estabelecido”, ou “constante”; e no hiphil, “considerar estabelecido”, “ter como verdadeiro”, ou “crer”. A palavra é usada em construções gramaticais com as preposições beth e lamedh. Com a primeira, evidentemente se refere a um confiante descanso numa pessoa ou coisa ou testemunho; com a segunda, significa o assentimento dado a um testemunho aceito como verdadeiro, – A segunda palavra em importância é batach, que se constrói com beth e quer dizer “confiar-se a”, “apoiar-se em”, “confiar”. Ela não da ênfase ao elemento intelectual do assentimento, mas, antes, ao da entrega confiante. Em distinção do he’emin, geralmente traduzida por pisteuo na septuaginta, essa palavra é geralmente traduzida por elpizo ou peithomai. O homem que confia em Deus é alguém que fixa nele toda a sua esperança quanto ao presente e ao futuro. – Há mais uma palavra, a saber, chasah, que é usada menos freqüentemente e significa “esconder-se” ou “fugir em busca de refúgio”. Também nesta é evidente que o elemento de confiança está em primeiro plano.

2. OS TERMOS DO NOVO TESTAMENTO E O SEU SIGNIFICADO. Duas palavras são empregadas em todo o Novo Testamento, a saber, pistis e o verbo cognato pisteuein. Nem sempre elas têm a mesma conotação.

a. Os diferentes sentidos de pistis. (1) No grego clássico. A palavra pistis tem dois sentidos no grego clássico. Ela indica: (a) uma convicção baseada na confiança numa pessoa e no seu testemunho, que, como tal, distingue-se do conhecimento apoiado numa investigação pessoal; e (b) a confiança propriamente dita, na qual essa convicção descansa. Esta é mais que uma simples convicção intelectual de que uma pessoa é fidedigna; pressupõe uma relação pessoal com o objeto da confiança, um sair de si mesmo para descansar noutrem. Os gregos não se utilizavam ordinariamente desta palavra neste sentido, para expressar a relação deles com os deuses, visto que os consideravam hostis aos homens e, portanto, mais como objetos de termo que de confiança. – (2) Na septuaginta. A transição do emprego da palavra pistis no grego clássico para o uso do Novo Testamento, no qual o sentido de “confiança” é da máxima importância, acha-se no uso que a septuaginta faz do verbo pisteuein, e não no do substantivo pistis, que ocorre nela apenas uma vez com um sentido um pouco parecido com o do Novo Testamento. O verbo pisteuein geralmente serve como tradução da palavra he’emin, e assim expressa a idéia de fé tanto no sentido de assentimento à Palavra de Deus, como de real confiança nele. – (3) No Novo Testamento. Há uns poucos exemplos em que a palavra tem sentido passivo, a saber, o de “fidelidade”, que é o seu significado usual no Velho Testamento, Rm 3.3; Gl 5.22, Tt 2.10. Geralmente é empregada com significação ativa. Devemos distinguir os seguintes sentidos especiais: (a) uma crença ou convicção intelectual, apoiada no testemunho de outrem, e, portanto, baseada na confiança nesta outra pessoa, e não numa investigação feita pessoalmente, Fp 1.27; 2 Co 4.13; 2 Ts 2.13, e especialmente, nos escritos de João; e (b) uma completa confiança em Deus, ou, mais particularmente, em Cristo, com vistas à redenção do pecado e à bem-aventurança futura. Assim se vê especialmente nas epístolas de Paulo, Rm 3.22, 25; 5.1, 2; 9.30, 32; Gl 2.16; Ef 2.8; 3.12, e muitas outras passagens. Deve-se distinguir esta confiança daquela na qual a confiança intelectual mencionada no item (a) acima repousa. A ordem dos estágios sucessivos da fé é como segue: (a) confiança geral em Deus e em Cristo; (b) aceitação do seu testemunho com base nessa confiança; e (c) submissão a Cristo e confiança nele para a salvação da alma. A última é especificamente denominada fé salvadora.

b. As diferentes construções gramaticais de pisteuein e seu significado. Temos as seguintes construções: (1) Pisteuein com o dativo. Geralmente significa assentir crendo. Se o objeto é uma pessoa, a construção é empregada ordinariamente num sentido um tanto denso, fértil, incluindo a idéia profundamente religiosa de uma confiança devotada. Quando o objeto é uma coisa, usualmente é a Palavra de Deus, e quando é uma pessoa, ou é Deus ou é Cristo, Jo 4.50; 5.47; At 16.34; Rm 4.3; 2 Tm 1.12. – (2) Pisteuein seguido de Hoti. Nesta construção, a conjunção geralmente serve para introduzir aquilo em que se crê. De modo geral, esta construção é mais fraca que a anterior. Das vinte passagens em que se encontra, catorze ocorrem nos escritos de João. Num par de casos, o objeto em que se crê dificilmente se eleva à esfera religiosa, Jo 9.18; At 9.26, enquanto que nalguns dos outros casos, é decididamente de significação soteriológica, Mt 9.28; Rm 10.9; 1 Ts 4.14. – (3) Pisteuein com preposição. Aqui o sentido mais profundo da palavra, o de firme e confiante entrega, alcança os seus plenos direitos. Consideremos as seguintes construções com preposições: (a) Construção com en. Esta é a construção mais freqüente na septuaginta, embora esteja pouco menos que ausente do Novo Testamento. O único caso de que se tem certeza é Mc 1.15, onde o objeto da fé é o Evangelho. Outros possíveis exemplos são Jo 3.15; Ef 1.13, onde o objeto seria Cristo. Ao que parece, a implicação desta construção gramatical é a de uma confiança firmemente posta em seu objeto.. (b) Construção com epi e o dativo. Acha-se somente na citação de Is 28.16, que aparece em três passagens, quais sejam, Rm 9.33; 10.11; 1 Pe 2.6, e em Lc 24.25; 1 Tm 1.16. Ela expressa a idéia de uma serenidade segura e repousante, uma confiante segurança em seu objeto. (c) Construção com epi e o acusativo. É usada sete vezes no Novo Testamento. Num par de casos o objeto é Deus, quando opera na salvação da alma em Cristo; em todos os demais é Cristo. Esta construção inclui a idéia de movimento moral, de um mover-se mental em direção ao objeto. A principal idéia é a de um voltar-se com segura confiança para Jesus Cristo. (d) Construção com eis. Esta é a construção mais característica do Novo Testamento. Ocorre quarenta e nove vezes. Cerca de catorze destes exemplos são joaninos, e o restante Paulino. Exceto num caso, o objeto da fé é sempre uma pessoa, raramente Deus, e muito comumente Cristo. Esta construção tem um sentido muito denso e fértil, expressando, como expressa, “uma absoluta transferência da confiança em nós para outro, uma completa rendição pessoal a Deus”. Cf. Jo 2.11; 3.16, 18, 36; 4.39; 14.1; Rm 10.14; Gl 2.16; Fp 1.29.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 494)

Expressões Figuradas Empregadas Para Descrever a Atividade da Fé

Há na Escritura várias expressões figuradas da atividade da fé. As seguintes são algumas das mais importantes.

1. É descrita como um olhar para Jesus, Jo 3.14, 15 (comp. Nm 21.9). è uma figura muito apropriada, porquanto abrange vários elementos da fé, especialmente quando esta se refere a um firme olhar para alguém, como na passagem indicada. Há nesta expressão um ato de percepção (elemento intelectual), uma fixação deliberada dos olhos no objeto (elemento volitivo) e uma certa satisfação que a referida concentração testifica (elemento emocional).

2. É representada também por fome e sede, comer e beber, Mt 5.6; Jo 6.50-58; 4.14. Quando os homens têm de fato fome e sede espiritualmente, sentem que algo está faltando, têm consciência do caráter indispensável daquilo que está faltando, e se esforçam para obtê-lo. Tudo isso é típico da atividade da fé. Quando comemos e bebemos, não só temos a convicção de que o alimento e a bebida necessários estão presentes, mas também a confiante expectativa de que eles nos satisfarão, juntamente como, ao apropriar-se de Cristo pela fé, temos certa medida de confiança em que Ele nos salvará.

3. Finalmente, há também as figuras do vir a Cristo e recebe-lo, Jo 5.40; 7.37 (cf. o vers. 38); 6.44, 65; 1.12. A figura do vir a Cristo retrata a fé como uma ação na qual o homem olha para longe de si e dos seus próprios méritos, para ser revestido da justiça de Jesus Cristo; e a do receber a Cristo ressalta o fato de que a fé é um órgão de apropriação.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 494)

A Doutrina da Fé na História

1. ANTES DA REFORMA. Desde os primeiros tempos da igreja cristã, a fé sobressaia nas mentes dos lideres como a grandiosa condição da salvação. A seu lado, o arrependimento logo se tornou um tanto proeminente. Ao mesmo tempo, houve pouca reflexão, a principio, sobre a natureza da fé e apenas um ligeiro entendimento da relação da fé com as outras partes da ordo salutis. Não havia uma definição da fé, que fosse de uso comum. Conquanto houvesse a tendência de usar a palavra “fé” para denotar a aceitação da verdade com base num testemunho, nalguns casos também era empregada num sentido mais profundo, de molde a incluir a idéia de rendição pessoal à verdade recebida intelectualmente. Os alexandrinos contrastavam pistis com gnosis, e consideravam aquela primariamente como um conhecimento incipiente e imperfeito. Tertuliano salientava o fato de que a fé aceita uma coisa com base numa autoridade, e não porque fosse assegurada pela razão humana. Ele também usava o termo num sentido objetivo, como designativo daquilo que deve ser crido – a regula fidei (a regra da fé). Até ao tempo de Agostinho, pouca atenção foi dada à natureza da fé, embora esta sempre fosse reconhecida como o preeminente meio para a apropriação da salvação. Agostinho, porém, deu maior medida de consideração à matéria. Ele falava da fé em mais de um sentido. Às vezes a considerava como nada mais que o assentimento intelectual à verdade. Mas concebia a fé evangélica ou justificadora como incluindo também os elementos de rendição pessoal e amor. Esta fé é aperfeiçoada pelo amor e, assim, vem a ser o princípio das boas obras. Todavia, ele não tinha uma concepção apropriada da relação que há entre a fé e a justificação. Isto se deve em parte ao fato de que ele não distinguia cuidadosamente entre a justificação e a santificação. A concepção mais profunda de fé que se acha em Agostinho não foi compartilhada pela igreja em geral. Havia a tendência de confundir fé com ortodoxia, isto é, com a manutenção de uma fé ortodoxa. Os escolásticos distinguiam entre uma fides informis (fé informe), isto é, um simples assentimento intelectual à verdade ensinada pela igreja, e uma fides formata (charitate) – (fé formada pelo amor) – isto é, fé à qual foi dada uma forma característica pelo amor, e considerava esta última como a única fé que justifica, visto que envolve uma infusão da graça. É somente como fides formata que a fé se torna ativa para o bem e se torna a primeira das virtudes teológicas pelas quais o homem é posto na relação certa com Deus. Estritamente falando, é o amor, pelo qual a fé é aperfeiçoada, que justifica. Assim, com a fé foi feito um alicerce para o mérito humano. O homem é justificado, não exclusivamente pela imputação dos méritos de Cristo, mas também pela graça inerente. Tomaz de Aquino define a virtude da fé como um “hábito da mente, em razão do qual a vida eterna tem início em nós, considerando que ela leva o intelecto a dar o seu consentimento às coisas que se não vêem”.

2. DEPOIS DA REFORMA. Enquanto os católicos romanos davam ênfase ao fato de que a fé justificadora é simples assentimento a tem sua sede no entendimento, os Reformadores geralmente a consideravam como fidúcia (confiança), com sua sede na vontade. Contudo, sobre a importância relativa dos elementos da fé tem havido divergências, mesmo entre os protestantes. Alguns consideram a definição de Calvino superior à do Catecismo de Heidelberg. Diz Calvino: “Teremos então uma completa definição da fé se dissermos que ela é um firme e seguro conhecimento do favor de Deus para conosco, fundado na verdade de uma promessa gratuita em Cristo, e revelada às nossas mentes e selada em nossos corações pelo Espírito Santo”.[1] Por outro lado, o Catecismo de Heidelberg introduz também um elemento de confiança quando responde à pergunta, “Que é a verdadeira fé?”, como segue: “A fé verdadeira não é somente um seguro conhecimento pelo qual tomo como verdade tudo que Deus nos revelou em Sua Palavra, mas também uma firme confiança que o Espírito Santo produz em meu coração pelo Evangelho, em que, não somente a outros, mas a mim também, a remissão dos pecados a justiça e a salvação, são dados gratuitamente por Deus, simplesmente pela graça, unicamente em atenção aos méritos de Cristo”.[2] Mas, pelo contexto fica evidente que Calvino pretende incluir o elemento de confiança no “firme e seguro conhecimento” de que fala. Falando da ousadia com que podemos aproximar-nos de Deus pela oração, diz ele: “Essa ousadia brota da confiança no favor e na salvação divinos. Tanto é verdade, que o termo fé é usado muitas vezes como equivalente de confiança“.[3] Ele rejeita absolutamente a ficção dos teólogos que insistem em “que a fé é um assentimento com que qualquer desprezador de Deus pode receber o que é dado na Escritura”.[4] Mas há um ponto de diferença mais importante ainda entre a concepção que os Reformadores tinham da fé e a dos escolásticos. Estes reconheciam na fé mesma alguma eficácia real, e até meritória (meritum ex congruo, mérito proveniente da conformidade), ao se dispor para a justificação , procura-la e obtê-la. Por outro lado, os Reformadores eram unânimes e explícitos ao ensinarem que a fé justificadora não justifica por qualquer eficácia meritória ou inerente por si própria, mas somente como o instrumento hábil para receber ou tomar o que Deus proveu nos méritos de Cristo. Eles consideravam esta fé primariamente como dom de Deus, e só secundariamente como uma atividade do homem na dependência de Deus. Os arminianos revelaram uma tendência romanizante, quando conceberam a fé como uma obra meritória do homem, com base na qual ele é bem aceito por Deus. Schleiermacher, o pai da teologia moderna, mal menciona a fé salvadora e ignora absolutamente a fé em termos de confiança como de criança em Deus. Diz ele que a fé “nada mais é que a incipiente experiência da satisfação da nossa necessidade espiritual por Cristo”. É Uma nova experiência psicológica, uma nova tomada de consciência, arraigada numa percepção, não de Cristo, nem de alguma doutrina, mas da harmonia do Infinito, da Totalidade das coisas, na qual a alma encontra a Deus. Ritschl concordava com Schleiermacher na afirmação de que a fé surge como resultado do contato com a realidade divina, mas encontra o seu objeto, não em alguma idéia ou doutrina, nem na totalidade das coisas, mas na Pessoa de Cristo, como a suprema revelação de Deus. Não é um assentimento passivo, mas um princípio ativo. Nela o homem faz da finalidade de Deus, isto é, o reino de Deus, a sua própria finalidade, começa a trabalhar pelo reino e, ao faze-lo, acha a salvação. Os conceitos de Scheleiermacher e Ritschl caracterizam grande parte da teologia “liberal” moderna. A fé, segundo esta teologia, não é uma experiência trabalhada no céu, mas uma realização humana; não o mero recebimento de um dom, mas uma ação meritória; não a aceitação de uma doutrina, mas um ato de “fazer Cristo o Mestre”, numa tentativa de padronizar a vida segundo o exemplo de Cristo. Este conceito encontrou, porem, forte oposição na teologia da crise, que salienta o fato de que a fé salvadora jamais é apenas uma experiência psicológica natural; é, estritamente falando, um ato de Deus, e não do homem, jamais constitui uma possessão permanente do homem e é, em si mesma, um simples hohlraum (espaço vazio), completamente incapaz de efetuar a salvação. Barth e Brunner consideram a fé simplesmente como a resposta divina, produzida por Deus no homem, à Palavra de Deus em Cristo, isto é, não tanto a alguma doutrina como à ordem divina ou ao ato divino na obra da redenção. A fé é a resposta afirmativa, o “sim” ao chamamento de Deus, um “sim” extraído por Deus mesmo.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 497)



[1] Inst. III. 2, 7.
[2] Perg. 21.
[3] Ibid. III. 2, 15.
[4] Ibid. III 2, 8.

A Idéia de Fé na Bíblia

1. NO VELHO TESTAMENTO. É evidente que os escritores do Novo Testamento, ao salientarem a fé como o princípio fundamental da vida religiosa, não estavam querendo substituir as bases e abandonar o ensino do Velho Testamento. Eles consideravam Abraão como tipo de todos os crentes (Rm 4; Gl 3; Hb 11; Tg 2), e os da fé como verdadeiros filhos de Abraão (Rm 2.28, 29; 4.12, 16; Gl 3.9). A fé nunca é tratada como novidade da nova aliança, nem tampouco se traça alguma linha de distinção ente a fé das duas dispensações, Jo 5.46; 12.38, 39; Hc 2.4; Rm 1.17; 10.16; Gl 3.11; Hb 10.38. Em ambos os Testamentos a fé é a mesma entrega pessoal a Deus, sendo Este visto não meramente como o supremo bem da alma, mas como o gracioso Salvador do pecador. A única diferença notória deve-se ao caráter progressivo da obra de redenção, e isto já é mais ou menos evidente mesmo dentro dos limites do próprio Velho Testamento.

a. No período patriarcal. Nas primeiras partes do Velho Testamento há escassas declarações abstratas a respeito do método de salvação. A essência da religião dos patriarcas é-nos demonstrada pela ação. A promessa de Deus ocupa o primeiro plano e, no caso de Abraão, se destina a expor a idéia de que a resposta adequada a ela é a da fé. Toda a vida de Noé foi determinada pela confiança em Deus e em Suas promessas, mas é especialmente Abraão que é colocado diante de nós como o crente típico, que se entrega a Deus com inabalável confiança em Suas promessas e é justificado pela fé.

b. No período da Lei. A dádiva da Lei não efetuou uma mudança fundamental na religião de Israel, mas apenas introduziu uma alteração em sua forma externa. A Lei não substituiu a Promessa; tampouco foi a fé suplantada pelas obras. Na verdade, muitos israelitas viam a Lei com espírito puramente legalista e procuravam basear o seu direito à salvação num escrupuloso cumprimento da lei vista como um corpo de preceitos externos. Mas, no caso dos que compreenderam a sua natureza real, que perceberam a interioridade e a espiritualidade da Lei, esta serviu para aprofundar o sentimento de pecado e para aguçar a convicção de que só da graça de Deus se podia esperar salvação. Vê-se que a essência da vida piedosa real consistia crescentemente na confiança sem reserva no Deus da salvação. Embora o Velho Testamento acentue claramente o temor do Senhor, numerosas expressões, como, esperar, confiar, buscar refúgio em Deus, olhar para Ele, por nele a confiança, por nele o coração, e unir-se a Ele, patenteiam que esse temor não é o medo covarde, mas, sim, o temor reverente e singelo, como de criança, e salientam a necessidade da amorosa entrega pessoal a Deus, que constitui a essência da fé salvadora. Mesmo no período da Lei, a fé é distintamente soteriológica, olhando para a salvação messiânica. É uma confiança no Deus da salvação, uma firme segurança em Suas promessas quanto ao futuro.

2. NO NOVO TESTAMENTO. Quando o Messias veio, cumprindo as profecias, trazendo a esperada salvação, tornou-se necessário que os veículos da revelação de Deus guiassem o povo de Deus para a pessoa do Redentor. Isto era absolutamente necessário, em vista do fato de que o cumprimento deu-se de uma forma que muitos não esperavam, e que aparentemente não correspondia à Promessa.

a. Nos Evangelhos. A exigência de fé em Jesus como o Redentor prometido e esperado, apareceu como algo característico da nova era. “Crer” significava tornar-se cristão. Esta exigência parecia criar um abismo entre a velha dispensação e a nova. O princípio desta é até descrito como a vinda da fé, Gl 3.23, 25. O que caracterizava os evangelhos é que neles Jesus está constantemente se oferecendo como objeto de fé, e isto em conexão com os mais altos interesses da alma. Mais do que os sinóticos, João dá ênfase aos aspectos mais elevados desta fé.

b. Em Atos. Em Atos dos Apóstolos requer-se fé no mesmo sentido geral. Pela pregação dos apóstolos, os homens são levados à obediência da fé em Cristo; e esta fé vem a ser o princípio normativo da nova comunidade. Diferentes tendências se desenvolveram na igreja e deram surgimento às diferentes maneiras de tratar a fé que se tornaram manifestas nos escritos neotestamentários.

c. Na Epístola de Tiago. Tiago teve que censurar a tendência judaica de conceber a fé agradável a Deus como um simples assentimento intelectual à verdade, fé que não dava o fruto apropriado. Sua idéia da fé que justifica não difere da de Paulo, mas ele ressalta o fato de que esta fé tem que se manifestar em boas obras. Se não, é fé morta e, de fato, é inexistente.

d. Nas Epístolas de Paulo. Paulo teve que contender particularmente com o legalismo inveterado do pensamento judaico. Os judeus jactavam-se da justiça da Lei. Conseqüentemente, o apóstolo teve que reivindicar o lugar da fé com o único instrumento da salvação. Ao faze-lo, naturalmente se demorava longamente em Cristo como o objeto da fé, desde que é unicamente deste objeto que fé deriva a sua eficácia. A fé justifica e salva somente porque ela se agarra a Jesus Cristo.

e. Na Epístola aos Hebreus. O escritor de Hebreus também considera Cristo como o objeto próprio da fé salvadora, e ensina que não há justiça senão pela fé, 10.38; 11.7. Mas o perigo do qual o escritor desta carta precisava proteger-se não era o de escorregar da fé para as obras, mas, antes, o de cair da fé, indo parar no desespero. Ele fala da fé como a “certeza de cousas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem”, 11.1. Ele exorta os leitores a uma atitude de fé, que os capacitará a elevar-se do visível para o invisível, do presente para o futuro, do temporal para o eterno, e que os capacitará a serem pacientes em meio às tribulações.

f. Nas Epístolas de Pedro. Pedro também escreve a destinatários que corriam o perigo de cair no desânimo, embora não de cai de novo no judaísmo. As circunstâncias em que eles se achavam moveram-no a dar ênfase especial à relação da fé com a salvação consumada, a fim de avivar dentro dos seus corações a esperança que os sustentaria em suas presentes provações, a esperança de um glória invisível e eterna. A Segunda Epístola acentua a importância do conhecimento da fé como uma salvaguarda contra os erros dominantes.

g. Nos Escritos de João. João teve que contender com um gnosticismo incipiente, que falsamente salientava o conhecimento (gnosis) e desprezava a fé simples. Supunha-se que aquele levava consigo bem-aventurança muito maior que a propiciada por esta. Daí João estabelece como um dos seus objetivos engrandecer as bênçãos da fé. Ele insiste, não tanto na certeza e na glória da herança vindoura que a fé garante, como na plenitude do presente gozo da salvação que ela traz, a fé envolve conhecimento como uma firme convicção e torna os crentes imediatamente possuidores da nova vida e da salvação eterna. Nesse ínterim, João não negligencia ao fato de que a fé também tem alcance futuro.’

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 499)

A Fé em Geral

O vocábulo “fé” não é um termo exclusivamente religioso e teológico. É empregado muitas vezes no sentido geral e não religioso, e mesmo assim tem mais de uma conotação. Os seguintes usos do termo merecem particular atenção. Ele pode denotar:

1. FÉ COMO POUCO MAIS QUE MERA OPINIÃO. A palavra “fé” é utilizada às vezes num sentido solto e popular, para indicar uma persuasão da verdade que é mais forte que uma simples opinião e , todavia, mais fraca que o conhecimento. Mesmo Locke definiu a fé como “o assentimento da mente a proposições que são prováveis , mas não certamente, verdadeiras”. Em linguagem popular , muitas vezes dizemos algo de que não estamos absolutamente certos mas que, ao mesmo tempo, nos sentimos constrangidos a reconhecer como verdadeiro: “Creio , mas não tenho certeza”. Conseqüentemente , alguns filósofos viram a característica distintiva da fé no grau menor de certeza que ela dá (Locke , Hume , Kant, e outros).

2. FÉ COMO CERTEZA IMEDIATA. Com relação à ciência , muitas vezes se descreve a fé como certeza imediata . Há uma certeza que o homem pode obter por meio de percepção , da experiência e da dedução lógica, mas há também uma certeza intuitiva. Em toda ciência há axiomas que não podem sr demonstrados e convicções intuitivas que não são adquiridas pela percepção ou pela dedução lógica. Diz o dr. Bavinck: “He gebied der onmiddelijke zekerheid is veel grooter dan dat der demonstratieve, em deze laatste is altijd weer op de eerste gebouwd, em staat em valt met deze. Ook is deze intuitieve zekerheid niet minder maar grooter dn die, welke langs den weg van waarneming en logische demonstratie verkregen wordt”. A esfera da certeza imediata é maior que a da certeza demonstrativa. Em ambos os casos ora mencionados, a fé é considerada exclusivamente como uma atividade do intelecto.

3. FÉ COMO CONVICÇÃO BASEADA EM TESTEMUNHO E INCLUINDO CONFIANÇA. No linguajar comum a palavra “fé” é empregada muitas vezes para denotar a convicção de que o testemunho de outro é veraz, e de que o que ele promete será feito; convicção baseada unicamente em sua reconhecida veracidade e fidelidade. É realmente uma confiante aceitação do que outro diz, com base na confiança que ele inspira. E esta fé, esta convicção baseada na confiança, muitas vezes leva a uma confiança suplementar: confiança num amigo em tempo de necessidade, na capacidade que um médico tem para dar ajuda nas ocasiões de doenças, na de um piloto para guiar o navio até o porto, e assim por diante. Neste caso, a fé é mais que simples produto do intelecto. A vontade é posta em ação, e o elemento de confiança vem para o primeiro plano.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 500)

CONCEITO DE FÉ: QUATRO TIPOS DE FÉ

Como fenômeno psicológico, a fé, no sentido religioso, não difere da fé em geral. Se a fé em geral é uma persuasão da verdade fundada no testemunho de alguém em quem temos confiança e em quem descansamos, e, portanto, apóia-se numa autoridade, a fé cristã, no sentido mais abrangente, é a persuasão do homem quanto à veracidade da Escritura, com base na autoridade de Deus. Nem sempre a Bíblia fala da fé religiosa no mesmo sentido, e isto deu surgimento às seguintes distinções, na teologia.

a. Fé histórica. Pura e simples apreensão da verdade, vazia de qualquer propósito moral ou espiritual. O nome não implica que ela abrange somente fatos e eventos históricos, com a exclusão das verdades morais e espirituais; nem tampouco que se baseia no testemunho da história, pois ela pode referir-se a fatos ou eventos contemporâneos, Jo 3.2. Expressa mais a idéia de que esta fé aceita as verdades da Escritura como uma pessoa poderia aceitar um relato histórico no qual ela não está interessada pessoalmente. Esta fé pode ser resultado da tradição, da educação, da opinião pública, do discernimento da grandeza da Escritura, e doutros fatores mais, acompanhados pelas operações gerais do Espírito Santo. Pode ser muito ortodoxa e escriturística, mas não está arraigada no coração, Mt 7.26; At 26.27, 28; Tg 2.19. É uma fides humana, e não uma fides divina (fé humana, não divina).

b. Fé miraculosa. A fé miraculosa, assim chamada, é a persuasão produzida na mente de uma pessoa de que um milagre será realizado por ela ou em favor dela. Deus pode dar a uma pessoa um trabalho para fazer, que transcende os seus poderes naturais, e capacita-la para fazê-lo. Toda tentativa de realizar uma obra dessa espécie requer fé. Isso é bem patente nos casos em que o homem aparece apenas como instrumento de Deus ou como alguém que anuncia que Deus vai fazer um milagre, pois tal homem precisa ter plena confiança em que Deus não o deixará passar vergonha. Em última instância, somente Deus faz milagres, embora possa faze-lo através da instrumentalidade humana. Esta é a fé em milagres no sentido ativo, Mt 17.20; Mc 16.17, 18. Não é necessariamente acompanhada pela fé salvadora, mas pode ser. A fé em milagres também pode ser passiva, a saber, a persuasão de que Deus fará um milagre em favor de alguém. Esta também pode ser ou não acompanhada pela fé salvadora, Mt 8.10-13; Jo 11.22 (comp. Versículos 25-27); 11.40; At 14.0. Com freqüência é levantada a questão sobre se tal fé tem um lugar legítimo na vida do homem hoje. Os católicos romanos respondem afirmativamente, enquanto que os protestantes estão inclinados a dar uma resposta negativa. Eles assinalam que não há base escriturística para tal fé, mas não negam que ainda podem ocorrer milagres. Deus é inteiramente soberano neste aspecto também, e a Palavra de Deus nos induz a aguardar outro ciclo de milagres no futuro.

c. Fé temporal. Esta é a persuasão das verdades religiosas que vem acompanhada de algumas incitações da consciência e de uma agitação dos afetos, mas não tem suas raízes num coração regenerado. O nome é derivado de Mt 13. 20,21. É a chamada fé temporária porque não é permanente e não se mantém nos dias de provação e perseguição. Não significa que não pode durar a vida inteira da pessoa. É bem possível que só pereça por ocasião da morte, mas então é certo que perecerá. Às vezes esta fé é denominada fé hipócrita, mas isso não é inteiramente correto, pois ela não envolve necessariamente hipocrisia consciente. Os que possuem esta fé, usualmente acreditam que têm a fé verdadeira. Talvez pudéssemos chamar-lhe fé imaginária, aparentemente genuína, mas de caráter evanescente. Ela difere da fé histórica no interesse pessoal que mostra pela verdade e na reação dos sentimentos à verdade. Pode-se experimentar grande dificuldade na tentativa de distingui-la da verdadeira fé salvadora. Daquele que crê desse modo Cristo falou: “não tem raiz em si mesmo”, Mt 13.21. É uma fé que não brota da raiz implantada na regeneração, e, portanto, não é expressão da nova vida entalhada nas profundezas da alma do pecador regenerado. Em geral pode dizer que a fé temporal se baseia na vida emocional e busca satisfação pessoal, em vez da glória de Deus.

d. A verdadeira fé salvadora. A verdadeira fé salvadora tem sua sede no coração e suas raízes na vida regenerada. Muitas vezes se faz distinção entre o habitus e o actus da fé (entre o hábito e o ato da fé). Contudo, por trás destes acha-se a semen fidei (semente da fé). Esta fé não é primeiramente uma atividade do homem, mas uma potencialidade produzida por Deus no coração do pecador. A semente da fé é implantada no homem quando da regeneração. Alguns teólogos falam disto como habitus da fé, mas outros mais corretamente lhe chamam semen fidei. Somente depois que Deus implantou a semente da fé no coração do homem, é que ele pode exercer a fé. É isto, evidentemente, que Barth tem em mente também, quando, em seu desejo de ressaltar o fato de que a salvação é exclusivamente obra de Deus, afirma que Deus, e não o homem, é o sujeito da fé. O exercício consciente da fé forma gradativamente o habitus, e este adquire uma significação fundamental e determinante para o ulterior exercício da fé. Quando a Bíblia fala da fé, geralmente se refere à fé como uma atividade do homem, mas nascida da obra realizada pelo Espírito Santo. Pode-se definir a fé salvadora como uma certa convicção, produzida pelo Espírito Santo no coração, quanto à veracidade do Evangelho, e uma segurança (confiança) nas promessas de Deus em Cristo. Em última análise, é certo, Cristo é o objeto da fé salvadora, mas Ele nos é oferecido unicamente no Evangelho.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 502)

OS ELEMENTOS DA FÉ

Ao falarmos dos diferentes elementos da fé, não devemos perder de vista o fato de que a fé é uma atividade do homem como um todo, e não de alguma parte dele. Além disso, no exercício da fé, a alma funciona através das suas faculdades comuns, e não através de alguma faculdade especial. É um exercício da alma que tem isto em comum com todos os exercícios similares, que parece simples, e, contudo, num exame mais chegado, vê-se que é complexo e intrincado. E portanto, para se obter uma apropriada concepção da fé, é necessário distinguir entre os vários elementos que ela compreende.

a. Um elemento intelectual (notitia, conhecimento). Há um elemento de conhecimento na fé, com relação ao qual, os seguintes pontos devem ser considerados:

(1) O caráter deste conhecimento. O conhecimento que caracteriza a fé consiste de um reconhecimento positivo da verdade, em que o homem aceita como verdadeiro tudo quanto Deus diz em Sua Palavra, e especialmente o que Ele diz a respeito da profunda depravação do homem e da redenção que há em Cristo Jesus. Contrariamente a Roma, deve-se manter a posição de que este seguro conhecimento pertence à essência da fé; e em oposição a teólogos tais como Sandeman, Wardlaw, Alexander, Chalmers e outros, devemos afirmar que a aceitação intelectual da verdade não é a fé completa. De um lado, seria valorizar exageradamente o conhecimento próprio da fé, se fosse considerado como uma compreensão completa dos objetos da fé. Mas, de outro lado, seria também uma depreciação dele, se fosse considerado como um simples tomar conhecimento das coisas em que se crê, sem a convicção de que elas são verdadeiras. Alguns “liberais” modernos têm este conceito e, conseqüentemente, gostam de falar da fé como uma aventura. É um discernimento espiritual das verdades da religião cristã que acha resposta no coração do pecador.

(2) A certeza deste conhecimento. Conhecimento próprio da fé não deve ser considerado como menos certo que outras modalidades de conhecimento. O nosso Catecismo de Heidelberg nos assegura que a fé verdadeira é, entre outras coisas, “um conhecimento certo (seguro, incontestável)”.[1] Isto se harmoniza com Hb 11.1, que fala dela como “certeza de cousas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem”. Ela torna subjetivamente reais e certas para o crente as coisas futuras e invisíveis. O conhecimento próprio da fé é-nos mediado e comunicado pelo testemunho de Deus em Sua Palavra, e é aceito por nós como certo e confiável, com base na veracidade de Deus. A certeza deste conhecimento tem sua garantia em Deus mesmo e, conseqüentemente, nada pode ser mais certo. E é absolutamente essencial que seja assim, pois a fé tem que ver coisas espirituais e eternas, em que a fé é necessária, mais que em qualquer outra circunstância. É preciso haver certeza quanto à realidade do objeto da fé; se não houver, a fé será vã. Machen deplora o fato de que muitos não enxergam este fato nos dias atuais. Diz ele: “O problema todo é que a fé está sendo considerada como uma benéfica qualidade da alma, sem se levar em conta a realidade ou irrealidade do seu objeto; e no momento em que se passa a considerar a fé nestes termos, nesse momento ela é destruída”.[2]

 

(3) A medida deste conhecimento. É impossível determinar com precisão quanto conhecimento se requer absolutamente na fé salvadora. Se a fé salvadora é a aceitação de Cristo como Ele é oferecido no Evangelho, naturalmente surge a questão: Quanto do Evangelho o homem precisa conhecer para ser salvo? Ou, colocadas nas palavras do dr. Machen : “Quais são, para dizê-lo em termos rústicos, as exigências doutrinárias mínimas para que um homem possa ser cristão?”[3] Em geral se pode dizer que deve ser suficiente dar ao crente alguma idéia sobre o objeto da fé. A verdadeira fé salvadora deve conter pelo menos algum conhecimento, não tanto da revelação de Deus, como do Mediador e das operações da Sua graça. Quanto maior conhecimento real a pessoa tiver das verdades da redenção, mais rica e mais completa será a sua fé, se todas as outras circunstâncias forem iguais. Naturalmente, aquele que aceita Cristo pela verdadeira fé, estará igualmente pronto para aceitar o testemunho completo de Deus, e o desejará. É da máxima importância, principalmente em nossos dias, que as igrejas vejam que os seus membros tenham uma boa compreensão da verdade, e não apenas um entendimento nebuloso dela. Particularmente nesta era antidogmática, elas deveriam ser muito mais diligentes do que têm sido na instrução doutrinária da sua juventude.

b. Um elemento emocional (assensus, assentimento). Barth chama a atenção para o fato de que a hora em que o homem aceita a Cristo pela fé é o momento existencial da sua vida, quando ele pára de considerar de modo desligado e desinteressado o objeto da fé, e começa a sentir vívido interesse por ele. Não é necessário adotar a peculiar elaboração que Barth faz da doutrina da fé, para admitir a verdade do que ele diz sobre este ponto. Quando alguém abraça a Cristo pela fé, tem uma profunda convicção da veracidade e da realidade do objeto da fé, sente que ele preenche uma importante necessidade da sua vida, e tem consciência de um absorvente interesse por ele – e isto é assentimento. É muito difícil distinguir este assentimento do conhecimento próprio da fé recém-descrito, porque, como vimos, exatamente a característica distintiva do conhecimento próprio da fé salvadora está em que leva consigo uma convicção da verdade e da realidade do seu objeto. Daí alguns teólogos terem mostrado certa inclinação para limitar o conhecimento característico da fé a um mero tomar conhecimento do objeto da fé; mas (1) isto contraria a experiência, pois na verdadeira fé não há conhecimento que não inclua uma sincera convicção da verdade e da realidade do seu objeto e um interesse por ele; e (2) isto tornaria o conhecimento que há na fé salvadora idêntico ao que se vê numa fé puramente histórica, sendo que a diferença entre a fé histórica e a salvadora está em parte exatamente neste ponto. Porque é tão difícil fazer uma clara distinção, alguns teólogos preferem falar de apenas dois elementos da fé salvadora, quais sejam, o conhecimento e a confiança pessoal. São estes os dois elementos mencionados no Catecismo de Heidelberg, quando afirma que a verdadeira fé “não é apenas um certo conhecimento pelo qual eu tenho como verdadeiro tudo que Deus nos revelou em Sua Palavra, mas também uma confiança sincera que o Espírito Santo produz em mim pelo Evangelho”.[4] Provavelmente é preferível considerar o conhecimento e o assentimento simplesmente como dois aspectos do mesmo elemento da fé. Caso em que o conhecimento poderá ser considerado como a sua faceta mais passiva e receptiva, e o assentimento como a sua faceta mais ativa e transitiva.

c. Um elemento volitivo (fidúcia, confiança). Este é o elemento culminante da fé. A fé não é apenas questão de intelecto, nem de intelecto e sentimentos combinados: também é questão de vontade, determinando a direção da alma, um ato da alma que parte ao seu objeto e dele se apropria. Sem esta atividade, o objeto da fé, que o pecador reconhece como verdadeiro e real, e como inteiramente aplicável às suas necessidades presentes, permanece fora dele. E na fé salvadora é questão de vida ou morte que a pessoa se aproprie do objeto da fé. Este terceiro elemento consiste de uma confiança pessoal em Cristo como Salvador e Senhor, incluindo a rendição da alma, culpada e corrupta, a Cristo, e o recebimento e apropriação de Cristo como a fonte de perdão e da vida espiritual. Levando todos estes elementos em consideração, fica mais que evidente que a sede da fé não pode ser colocada nem no intelecto, nem nos sentimentos, nem na vontade, de modo exclusivo, mas unicamente no coração, o órgão central do ser espiritual, do qual procedem as fontes da vida. Em resposta à indagação se esta fidúcia (confiança) inclui necessariamente um elemento de segurança pessoal, pode-se dizer, em oposição aos católicos romanos e aos arminianos, que este é indubitavelmente o caso. Ela leva consigo, naturalmente, um certo sentimento de segurança e certeza, de gratidão e alegria. A fé, que em si mesma é certeza, tende a despertar na alma um senso de garantia e um sentimento de segurança. Na maioria dos casos, a princípio isto é mais implícito e mal chega a penetrar na esfera do pensamento consciente; é algo sentido vagamente, e não claramente percebido. Mas, à medida que a fé se desenvolve e que as atividades da fé aumentam, a consciência da garantia e segurança que ela traz também se avoluma. Mesmo aquilo que os teólogos geralmente chamam de “confiança que busca refúgio” (toevluchtnemend vertrouwen) comunica à alma certa medida de segurança. Isto difere completamente da posição de Barth, que salienta o fato de que, segundo ele, a fé é um ato repetido constantemente, é sempre um salto de desespero e um salto no escuro, e jamais se torna possessão permanente do homem; e que, portanto, elimina a possibilidade de qualquer segurança subjetiva da fé.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 505)



[1] Perg. 21.
[2] Waht is Faith?, p. 174.
[3] Op. cit., p. 155
[4] Perg. 21.

O OBJETO DA FÉ

Ao darmos uma resposta à questão quanto a qual é o objeto da verdadeira fé salvadora, teremos que falar com discriminação, desde que é possível falar desta fé em geral e num sentido especial. Existem:

a. Uma fides generalis (fé geral). Com isto se faz referência à fé salvadora no sentido mais geral da expressão. Seu objeto é o conjunto global da revelação divina contida na Palavra de Deus. Tudo que é ensinado explicitamente na Escritura ou que pode ser deduzido dela mediante boa e necessária inferência, pertence ao objeto da fé, neste sentido geral. De acordo com a igreja de Roma, cabe aos seus membros crer em tudo quanto a ecclesia docens (a igreja docente, o magistério eclesiástico) declara que faz parte da revelação de Deus, e isto inclui a tradição apostólica, assim chamada. É verdade que a “igreja que ensina” não reivindica o direito de produzir novos artigos de fé, mas reivindica, sim, o direito de determinar com autoridade o que a Bíblia ensina e o que, de acordo com a tradição, pertence aos ensinos de Cristo e Seus apóstolos. E isto propicia amplíssima latitude.

b. Uma Fidelis specialis (fé especial). É a fé salvadora no sentido mais limitado da expressão. Embora a verdadeira fé na Bíblia como a Palavra de Deus seja absolutamente necessária, esse ainda não é o fato específico de fé que justifica e, portanto, salva diretamente o pecador crente. Essa fé deve levar, e de fato leva, a uma fé mais especial. Há certas doutrinas concernentes a Cristo e à Sua obra, e certas promessas nele feitas aos pecadores, que o pecador deve receber e que devem levá-lo a pôr sua confiança em Cristo. Então o objeto da fé especial é Jesus Cristo e a promessa de salvação por intermédio dele. O ato especial de fé consiste em receber a Cristo e descansar nele como Ele é apresentado no Evangelho, Jo 3.15, 16, 18; 6.40. Estritamente falando, não é o ato de fé como tal, mas, antes, aquilo que é recebido pela fé, que justifica e, portanto, salva o pecador.

4. A BASE DA FÉ. A base última em que se firma a fé, está na veracidade e fidelidade de Deus, em conexão com as promessas do Evangelho. Mas, porque não temos conhecimento disto fora da Palavra de Deus, esta também pode ser considerada a base última da fé, e freqüentemente o é. Em distinção da anterior, porém, poderia ser denominada base próxima. O meio pelo qual reconhecemos a revelação incorporada na Escritura como a própria Palavra de Deus é, em última análise, o testemunho do Espírito Santo, 1 Jo 5.6:* “E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade”. Cf. também Rm 4.20, 21; 8.16; Ef 1.13; 1 Jo 4.13; 5.10. Os católicos romanos vêem na igreja a base última da fé; os racionalistas só a reconhecem na razão; Schleiermacher a busca na experiência cristã; e Kant, Ritschl e muitos teólogos “liberais” modernos a colocam nas necessidades morais da natureza humana.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 506)



* Citada no original a American Revised Version (1 Jo 5.7), em que se vê a tradução igual à de Almeida, transcrita no texto acima (1 Jo 5.6). Nota do tradutor.

Fé e Certeza

Surge aqui uma importante questão, a saber, se a certeza pertence à essência da fé, ou se é algo adicional, não incluído na fé. Uma vez que a expressão “certeza da fé” nem sempre é empregada no mesmo sentido, é necessário discriminar o assunto cuidadosamente. Há uma dupla certeza, a saber: (1) A certeza objetiva da fé, que é “a convicção certa e indubitável de que Cristo é tudo que Ele professa ser, e fará tudo que promete”. Geralmente se concorda que esta certeza é da essência da fé. (2) A certeza subjetiva da fé, ou segurança da graça e da salvação, que consiste num senso de garantia e de segurança, subindo, em muitos casos, às alturas de uma “segura convicção de que o crente individual teve os seus pecados perdoados e a sua alma salva”. Quanto à relação desta certeza ou segurança com a essência da fé, as opiniões diferem.

1. A Igreja Católica Romana nega, não somente que a certeza pessoal pertença à essência da fé, mas até mesmo que ela seja um actus reflexus (ato reflexo) ou fruto da fé. Ela ensina que os crentes não podem estar seguros da salvação, exceto nos raros casos em que a segurança é dada por revelação especial. Isto é um resultado natural do semipelagianismo e do sistema confessional de Roma. Os arminianos primitivos, que compartiam a posição semipelagiana de Roma, adotaram uma conceituação similar. Seu conceito foi condenado pelo Sínodo de Dort.

2. Os Reformadores reagiram contra a inaceitável posição da igreja de Roma. Em seu protesto, ocasionalmente salientavam de modo unilateral a certeza ou segurança como o elemento mais importante da fé. Às vezes falavam como se quem não tiver a certeza da salvação, a convicção positiva de que os seus pecados estão perdoados, não possui a verdadeira fé. A fidúcia da fé às vezes era descrita por eles como a segura confiança do pecador em que todos os seus pecados são perdoados por amor a Cristo. Todavia, os seus escritos evidenciam muito bem (a) que eles não queriam ensinar que esta fidúcia não inclui outros elementos, e (b) que não tinham intenção de negar que os verdadeiros filhos de Deus freqüentemente têm que enfrentar toda sorte de dúvidas e incertezas.[1]

3. Os padrões confessionais reformados (calvinistas) variam um pouco. O Catecismo de Heidelberg ensina, também em reação à Roma, que a fidúcia da fé consiste na segurança do perdão dos pecados. Ele se coloca inteiramente no ponto de vista dos Reformadores, e concebe a certeza da salvação como pertencente à essência da fé. Os Cânones de Dort tomam a posição de que esta certeza dos eleitos não é fruto de uma revelação especial, mas decorre da fé nas promessas de Deus, do testemunho do Espírito Santo, e do exercício de uma boa consciência e da prática das boas obras, sendo desfrutada de acordo com a medida da fé. Isto implica, certamente, que, nalguma proporção, ela pertence à essência da fé. Contudo, fica estabelecido explicitamente que muitas vezes os crentes têm que lutar com dúvidas carnais, de modo que nem sempre têm percepção da segurança da fé. A Confissão de Fé Presbiteriana (de Westminster), falando da certeza e segurança da fé assevera que esta não pertence à essência da fé de um modo que o verdadeiro crente não deva esperar algum tempo por ela. Isto deu a alguns teólogos presbiterianos, ocasião para negarem que a segurança pessoal pertença à essência da fé. Não é, porem, o que a Confissão diz, e há razoes para entender que ela não tencionava ensinar isto. Na Escócia, os “homens de Marrow” deram, certamente, uma diferente interpretação da referida Confissão de Fé.[2]

4. Depois do período confessional, houve diversos extravios desta posição.

a. Os antinomianos consideravam esta segurança como constituindo totalmente a essência da fé. Ignoravam todas as outras atividades da fé e consideravam a fé simplesmente como uma aceitação intelectual da proposição: São-te perdoados os teus pecados. O teólogo holandês De Labadie não reconhecia como membro da igreja a ninguém que não estivesse plenamente seguro da salvação.[3]

b. Por outro lado, um nomismo pietista afirmava que a segurança não pertence ao ser da fé, propriamente dito, mas somente ao seu bem estar; e, exceto por revelação especial, isto só pode ser assegurado mediante contínua e conscienciosa introspecção. Todas as espécies de “sinais da vida espiritual” derivados, não da Bíblia, mas das vidas de cristãos aprovados, passaram a ser o padrão do auto-exame. Contudo, o resultado provou que este método não conseguiu produzir segurança, mas, antes, tendeu a levar a crescente dúvida, confusão e incerteza.

c. Os metodistas têm em vista uma conversão metódica que leva consigo imediata certeza. Eles colocam a lei diante dos homens, fazem que eles vejam a sua completa pecaminosidade e a sua terrível culpa, e os amedrontam com os terrores do Senhor. E depois de os haverem colocado assim sob a terrificante influência da lei, imediatamente lhes apresentam o pleno e gratuito Evangelho de Redenção, que meramente requer uma voluntária aceitação de Cristo como seu Salvador. Num só momento, os pecadores são transportados em ondas de emoção, da mais profunda tristeza para a mais exaltada alegria. E esta súbita mudança traz consigo uma imediata segurança da redenção. Quem crê, também está seguro de que é redimido. Todavia, não significa que também tem certeza da salvação final. Esta é uma certeza que o metodista coerente não pode alcançar, visto que ele crê na queda dos santos.

d. Entre os teólogos reformados (calvinistas) há uma diferença de opinião. Muitos presbiterianos negam que a fé propriamente dita inclua segurança; e nos círculos reformados alguns compartilham esta negação. Kuyper, Bavinck e Vos, porém, sustentam acertadamente que a verdadeira fé, que inclui confiança, traz consigo um senso de garantida segurança, que pode variar em grau. Todavia, há também uma segurança da fé que resulta da reflexão. É possível fazer da própria fé um objeto de reflexão e, assim, chegar a uma segurança subjetiva que não pertence à essência da fé. Neste caso, deduzimos daquilo que experimentamos em nossa vida pessoal a presença da obra do Espírito Santo dentro de nós; cf. 1 Jo 2.9-11; 3.9, 10, 18, 19; 4.7, 20.[4]

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 508)



[1] Cf. a obra de Berkhof, The Assurance of Faith, p. 23, 24.
[2] Cf. a obra de Berkhof, The Assurance of Faith, p. 24-29.
[3] Cf. Heppe, Geschichte des Pietismus, p. 240-374.
[4] Cf. ainda, The Assurance of Faith, capítulo III.

O Conceito Católico Romano de Fé

Três pontos merecem a nossa atenção aqui:

1. A igreja de Roma oblitera a distinção entre a fé histórica e a fé salvadora ensinando que a fé consiste num simples assentimento às doutrinas da igreja. Esta fé é um dos sete preparativos para a justificação que se dá no batismo, e, portanto, precede a este necessariamente; mas, como uma atividade puramente intelectual, naturalmente não leva à salvação. Um homem pode ter a fé verdadeira, isto é, a fé bíblica, e, contudo, estar perdido. Até este ponto a igreja de Roma aplica o seu princípio de exteriorização também à fé.

2. este conceito retira virtualmente da fé o elemento de conhecimento. Alguém poderá ser considerado um crente verdadeiro, se tão somente estiver pronto a crer naquilo que a igreja ensina, sem saber realmente do que se trata. Tal fé é chamada fides implícita (fé implícita), em distinção da fides explicita (fé explicita), que inclui conhecimento. Com o ensino de que é suficiente acreditar no que a ecclesia docens ensina, a Igreja Católica Romana aplica o princípio do clericalismo.

3. Há ainda outro ponto que caracteriza a doutrina católica romana da fé, a saber, a distinção entre a fides informis e a fides formata. Aquela é o mero assentimento à doutrina, ao passo que a outra é uma fé que inclui o amor como um princípio formativo, e é aperfeiçoada pelo amor. Esta, segundo o romanismo, é a fé que realmente justifica.

QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. Qual era o conceito de fé na Igreja Primitiva? 2. O conceito de Agostinho diferia do dos chamados pais primitivos? 3. Como surgiu a distinção entre uma fides informis e uma fides formata? 4. Como Lutero e Calvino diferiam quanto à ordem que se deve dar à fé e ao arrependimento? 5. Os luteranos e os reformados concordam quanto à ordem da fé e da regeneração? 6. Por que é importante manter a ordem certa? 7. Como surgiu a distinção entre os actus e o habitus da fé, e pro que essa distinção é importante? 8. Haverá ocasião em que a proposição, “Sou salvo”, é objeto da fé salvadora? 9. Que concepção de fé se acha em Schleiermacher e Ritschl? 10. Por que é muito próprio que a salvação dependa da fé? 11. Como o excessivo ativismo de Barth afeta a sua doutrina da fé? 12. Que quer ele dizer quando afirma que o homem nunca é crente ou cristão, mas sempre pecador? 13. Como explicar a sua negação de que a fé inclui segurança?

BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm. IV, p. 83-127; Kuyper, Dict. Dogm., De Salute, p. 98-131; ibid., Het Werk van den Heiligen Geest II, p. 233-297; Vos, Geref. Dogm. IV, p. 82-154; Hodge, Syst. Theol. III, p. 41-113; Shedd, Dogm Theol. II, p. 531-534; Dabney, Syst. And Polem. Theol. III, p. 600-612; McPherson, Chr. Dogm., p. 388-393; Schmid, Doct. Theol. Of the Ev. Luth. Ch., p. 416-430; Valentine, Chr. Theol. II, p. 232-241; Kaftan, Dogm., p. 656-681; Litton, Introd. To Dogm. Theol., p. 282-296; Pope, Chr. Theol. II, p. 376-385; Pictet, Theol., p. 298-309; Inge, Faith and Its Psychology; Machen, What is Faith?; O’Brian, The Nature and Effects of Faith; Moehler, Symbolism or Doctrinal Differences; Bavinck, De Zekerheid des Geloofs; Berkhof, The Assurance of Faith; Wernecke, “Faith” in the New Testament; Warfield, The Biblical Doctrine of Faith (em Biblical Doctrines, VIII).
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 509)