1. NOME. O nome “graça comum”, como
designativo da graça ora em discussão, não se pode dizer que deve a Calvino a
sua origem. Diz o dr. H. Kuiper, em sua obra sobre Calvino Sobre a Graça
Comum (Calvin on Common Grace), que encontrou quatro trechos das obras de
Calvino em que o adjetivo “comum” é empregado junto com o substantivo “graça”,
e em duas delas o Reformador está falando da graça salvadora.
Na teologia reformada posterior, porém, o nome gratia communis entrou em
uso geral para expressar a idéia de que esta graça se estende a todos os
homens, em contraste com a gratia particularis, que se limita a uma
parte da humanidade, a saber, aos eleitos. No transcurso do tempo, ficou evidente
que o termo “communis” permitia várias interpretações. Na teologia
holandesa ele é freqüentemente considerado como equivalente a “geral” e, como
resultado, veio a ser costumeiro falar em “graça geral” (algemeene genade)
na Holanda. Estritamente falando, porém, o termo communis, como aplicado
à graça, embora implicando que é geral nalgum sentido da palavra, salienta o
fato de que esta graça é comunal, isto é, é possuída em comum por todas as
criaturas, ou por todos os homens, ou por aqueles que vivem sob a administração
do Evangelho. Pelo que, o dr. H. Kuiper classifica a graça comum da qual fala
Calvino sob três títulos, quais sejam: (1) Graça comum universal, que se
estende a todas as criaturas; (2) Graça comum geral, que se aplica à comunidade
em geral e a cada membro da raça humana; (3) Graça comum pactual, comum aos que
vivem na esfera da aliança, pertençam aos eleitos ou não. É mais que evidente
que os teólogos reformados (calvinistas) subordinaram também a expressão “graça
comum” uma graça que não é geral, a saber, os privilégios dos que vivem sob a
administração do Evangelho, a vocação universal externa inclusive. Ao mesmo
tempo, eles assinalam que esta graça, em distinção da graça comum geral,
pertence à economia da redenção.
Finalmente, deve-se notar que a expressão gratia communis é
suscetível de receber, e de fato tem recebido, interpretação não somente
quantitativa, mas também qualitativa. Pode denotar uma graça que é comum no
sentido de ordinária. As operações ordinárias do Espírito Santo, em
distinção das Suas operações especiais, são chamadas comuns. Suas operações
naturais ou usuais se contrastam com as que são invulgares e sobrenaturais. É
este o sentido do termo “comum” na Confissão de Westminster X.4, e no Catecismo
Maior de Westminster, perg. 60. A
respeito da graça comum desfrutada pelos que vivem sob o Evangelho, declara
W.L.Alexander: “A graça deste modo concedida é comum, não no sentido de ser
dada a todos os homens em comum, mas no sentido de produzir efeitos ordinários,
podendo ficar aquém da real eficácia salvífica”.
Assim entendida, a graça de Deus pode ser comum sem ser geral ou universal.
2. CONCEITO. A distinção entre a graça
comum e a graça especial não se aplica à graça como atributo de Deus. Não há
duas espécies de graça em Deus, mas somente uma. É a perfeição de Deus em
virtude da qual ele mostra imerecido favor ao homem, favor de que este fora
privado com justiça. Contudo, esta graça específica de Deus se manifesta em
diferentes dons e operações. Sua mais rica manifestação se vê naquelas
grandiosas operações que visam à remoção da culpa, da corrupção e da punição do
pecado, e à salvação última dos pecadores, e redunda nessas bênçãos. Mas, se
bem que este é o coroamento da obra da graça de Deus, não é sua única manifestação.
Ela aparece também nas bênçãos naturais que Deus derrama sobre o homem na
presente vida, apesar do fato de que o homem perdeu o direito a elas e se acha
sob sentença de morte. A obra da graça divina se vê em tudo que Deus faz para
restringir a devastadora influência e desenvolvimento do pecado no mundo, e
para manter, enriquecer e desenvolver a vida da humanidade em geral e dos
indivíduos componentes da raça humana. Deve-se ressaltar que estas bênçãos são
manifestações da graça de Deus ao homem em geral. Alguns preferem dizer que
elas são expressões da Sua bondade, benignidade, benevolência, misericórdia ou
longanimidade, mas eles parecem esquecer que Deus não poderia ser bondoso,
benigno ou benevolente para com o pecador, a menos que primeiramente fosse gracioso.
Deve-se ter em mente, porém, que a expressão gratia communis, embora
designando geralmente uma graça que é comum à humanidade toda, é também
empregada para indicar uma graça que é comum aos eleitos e aos não eleitos que
vivem sob o Evangelho, que inclui bênçãos como o chamamento externo do
Evangelho, que é feito igualmente a ambos os grupos, e aquela iluminação
interna e aqueles dons do Espírito a respeito dos quais lemos em Hb 6.4-6.
Entende-se, porém, que estes privilégios só podem ser chamados comuns no
sentido que são usufruídos pelos eleitos e pelo réprobo indiscriminadamente, e
de que não constituem graça especial, no sentido de graça salvadora. Em
distinção das manifestações mais gerais da graça comum, esses privilégios,
embora não constituam parte da graça de Deus que leva necessariamente à
salvação, são, não obstante, relacionados com o processo soteriológico. Às
vezes recebem o nome de “especiais”, mas, neste caso, “especiais” não equivale
a “salvadores”. Em geral se pode dizer que, quando falamos de “graça comum”,
temos em mente, ou (a) as operações gerais do Espírito Santo pelas quais
Ele, sem renovar o coração, exerce tal influência sobre o homem por meio da Sua
revelação geral ou especial, que o pecado sofre restrição, a ordem é mantida na
vida social, e a justiça civil é promovida; ou (b) as bênçãos gerais,
como a chuva e o sol, a água e alimento, roupa e abrigo, que Deus dá a todos os
homens indiscriminadamente, onde e quanto Lhe parece bom faze-lo.
Devemos notar os seguintes pontos de
distinção entre a graça especial (no sentido de graça salvadora) e a graça
comum:
a. A extensão da graça especial é
determinada pelo decreto da eleição. Esta graça limita-se aos eleitos, ao passo
que a graça comum não sofre esta limitação, mas é outorgada indiscriminadamente
a todos os homens. O decreto da eleição e da reprovação não tem influência
determinante sobre ela. Nem sequer se pode dizer que os eleitos recebem maior
proporção da graça comum do que os não eleitos. É matéria de conhecimento
geral, e muitas vezes se observou, que, com freqüência, os ímpios possuem maior
medida da graça comum e têm maior participação nas bênçãos naturais do que os
justos.
b. A graça especial remove a culpa e a
penalidade do pecado, muda a vida interior do homem, e gradativamente o
purifica da corrupção do pecado pela operação sobrenatural do Espírito Santo.
Sua atividade invariavelmente redunda na salvação do pecador. Por outro lado, a
graça comum jamais remove a culpa do pecado, não renova a natureza humana, mas
apenas tem um efeito restringente sobre a influência corruptora do pecado e, em
certa media, suaviza os seus resultados. Não efetua a salvação do pecador,
embora nalgumas das suas formas (vocação externa e iluminação moral) esteja
estreitamente relacionada com a economia da redenção e tenha uma aparência
soteriológica.
c. A graça especial é irresistível.
Não significa que seja uma força determinista a compelir o homem a crer contra
a sua vontade, mas significa que, pela mudança do coração do homem, torna-o
perfeitamente desejoso de aceitar a Jesus Cristo para a salvação e de prestar
obediência à vontade de Deus. A graça comum é resistível, e de fato sempre
sofre maior ou menor resistência. Paulo mostra em Rm 1 e 2 que, num os gentios,
nem os judeus, viviam à altura da luz que possuíam. Diz Shedd: “Na graça comum,
o chamamento para crer e arrepender-se é invariavelmente ineficaz, porque o
homem é avesso à fé e ao arrependimento e está na escravidão do pecado”.
Ela é ineficaz para a salvação porque não transforma o coração.
d. A graça especial age de maneira
espiritual e recriadora, renovando completamente a natureza do homem e, assim,
tornando o homem capaz e desejoso de aceitar a oferta da salvação em Jesus
Cristo e de produzir frutos especiais. A graça comum, ao contrário, opera
somente de modo racional e moral, tornando o homem, de maneira geral, receptivo
ante a verdade, apresentando motivos à vontade e apelando para os desejos
naturais do homem. Isto equivale a dizer que a graça especial (salvadora) é
imediata e sobrenatural, visto que é produzida na alma pela energia imediata do
Espírito Santo, enquanto que a graça comum é mediata, uma vez que é produto da
operação mediata do Espírito Santo mediante a verdade da revelação geral ou
especial e mediante a persuasão moral.
Deve-se distinguir cuidadosamente
entre esta concepção da graça comum e a dos arminianos, que consideram a graça
comum com um dos elas da ordo salutis e lhe atribuem significação salvadora.
Eles afirmam que, em virtude da graça comum de Deus, o homem não regenerado é
perfeitamente capaz de praticar o bem espiritual, em certa medida, de
converter-se a Deus com arrependimento e fé, e, assim, de aceitar a Jesus para
a salvação. Vão mais longe até, e sustentam que, pela iluminação da mente e
pela influência persuasiva da verdade, a graça comum incita o pecador a aceitar
a Jesus Cristo e a converter-se a Deus com arrependimento e fé, e certamente
atingirá este objetivo, a menos que o pecador resista obstinadamente à operação
do Espírito Santo. Os Cânones de Dort se ocupam disto quando rejeitam o erro
dos que ensinam “que o homem natural e corrupto pode usar tão bem a graça comum
(pela qual eles entendem a luz da natureza), ou os dons que ainda lhe ficaram
depois da Queda, que ele pode, pelo seu bom uso, obter gradativamente uma graça
maior, isto é, a graça evangélica ou a salvadora, e a própria salvação”.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof.
Pg. 432)