quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Graça Comum

Em conexão com as operações gerais do Espírito Santo, o tema da graça comum pede atenção. Deve-se entender, porém, que, diversamente da teologia arminiana, a teologia reformada (calvinista) não considera a doutrina da graça comum como parte da soteriologia. Ao mesmo tempo, ela reconhece a estreita relação que existe entre as operações do Espírito Santo na esfera da criação e Suas operações na esfera da redenção, e, portanto, entende que não as devemos dissociar muito.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 427)

Origem da Doutrina da Graça Comum

1. O PROBLEMA DE QUE TRATA. O surgimento da doutrina da graça comum foi ocasionado pelo fato de que há no mundo, ao lado do curso da vida cristã com todas as suas bênçãos, um curso natural da vida que, não implicando redenção, exibe, não obstante, muitos sinais do verdadeiro, do bem e do belo. Foi levantada a questão múltipla: Como podemos explicar a vida relativamente ordenada que há no mundo, se sabemos que o mundo inteiro jaz sob a maldição do pecado? Como é que a terra dá fruto precioso e abundante, em vez de só produzir espinhos e abrolhos? Como podemos explicar o fato de que o homem pecador ainda “conserva algum conhecimento de Deus, das coisas naturais e da diferença entre o bem e o mal, e demonstra alguma consideração pela virtude e pelo bom comportamento exterior”? Que explicação se pode dar dos dons e talentos especiais de que o homem natural é dotado, e do desenvolvimento da ciência e da arte por gente totalmente vazia da nova vida que há em Cristo Jesus? Como podemos explicar as aspirações religiosas dos homens de toda parte, até de pessoas que não tiveram contato com a religião cristã? Como é que os não regenerados ainda podem falar a verdade, fazer o bem aos outros e levar vidas exteriormente virtuosas? Estas são algumas indagações que a doutrina da graça comum procura responder.

2. A ATITUDE DE AGOSTINHO FACE A ESTE PROBLEMA. Agostinho não ensinou a doutrina da graça comum, embora não usasse a palavra “graça” exclusivamente como um designativo da graça salvadora. Ele falava da graça que Adão desfrutava antes da Queda, e até admitia que a existência do homem como ser vivo, racional e consciente, podia ser denominada graça. Mas, contrariamente a Pelágio, que dava ênfase à capacidade natural do homem e não reconhecia outra graça que aquela que consiste dos dotes naturais do homem, da lei e do Evangelho, do exemplo de Cristo, e da iluminação do entendimento por uma graciosa influência de Deus – Agostinho salientava a incapacidade total do homem e a sua absoluta dependência de da graça de Deus, sendo esta uma força renovadora interna que, não somente ilumina a mente, mas também age na vontade do homem, quer como graça operante, quer como cooperante. Ele emprega a palavra “graça” quase exclusivamente neste sentido, e considera esta graça como a condição necessária para a realização de cada boa ação. Quando os pelagianos apontavam para as virtudes dos pagãos que “meramente pelo poder da liberdade inata” muitas vezes eram misericordiosos, discretos, castos, moderados, ele respondia que estas virtudes, assim chamadas, eram pecados, porque não provinham da fé. Ele admitia que os pagãos podem praticar certos atos que são bons em si mesmos e que, numa perspectiva inferior, são até louváveis, mas julgava que estes atos, como atos de pessoas não regeneradas, são pecados, porque não brotam da motivação do amor a Deus ou da fé, e não correspondem ao propósito certo – a glória de Deus.[1] Ele negava que tais ações são fruto de qualquer bondade natural do homem.

3. O CONCEITO QUE SE DESENVOLVEU DURANTE A IDADE MÉDIA. Durante a Idade Média, a antítese de pecado e graça deu lugar à de natureza e graça. Esta se baseava noutra antítese que desempenhou importante papel na teologia católica romana, a saber, a do natural e a do sobrenatural. No estado de integridade, o homem estava revestido do dom sobrenatural da justiça original, que servia de freio para manter sob controle a natureza inferior. Como resultado da queda, o homem perdeu este dom sobrenatural, mas a sua verdadeira natureza permaneceu ou foi apenas ligeiramente afetada. Desenvolveu-se uma inclinação pecaminosa, mas isto não impedia o homem de produzir muita coisa verdadeira, boa e bela. Contudo, sem a infusão da graça de Deus, isso tudo não era suficiente para dar a ninguém algum direito à vida eterna. Em conexão com a antítese do natural e o sobrenatural, a Igreja Católica Romana desenvolveu a distinção entre as virtudes morais da humildade, da obediência, da mansidão, da generosidade, da temperança, da castidade e da inteligência e da diligência no que é bom, virtudes que os homens podem conseguir por seus próprios esforços e com a oportuna ajuda da graça divina; e as virtudes teologais da fé, da esperança e do amor (charis), infundidas no homem pela graça santificante. O anabatismo e o socinianismo padecem da mesma antítese, mas com a diferença de que o primeiro exalta a graça a expensas da natureza, enquanto que a segunda exalta a natureza a expensas da graça.

4. POSIÇÃO DOS REFORMADORES E DA TEOLOGIA REFORMADA (CALVINISTA). Sobre este, como outros pontos doutrinários, Lutero não se livrou inteiramente do fermento católico romano. Apesar de ter retornado à antítese agostiniana de pecado e graça, traçou aguda distinção entre a esfera terrenal inferior e a esfera espiritual superior, e sustentava que o homem decaído é por natureza capaz de fazer muita coisa boa e louvável na esfera inferior ou terrena, embora seja inteiramente incapaz de fazer qualquer bem espiritual. Recorrendo a Agostinho, a Confissão de Augsburg “que a vontade do homem tem alguma liberdade de pôr em ação uma justiça civil e de escolher coisas que a razão pode alcançar; mas que não tem poder para pôr em ação a justiça de Deus”.[2] O artigo contém uma citação de Agostinho em que são mencionadas muitas boas obras pertencentes à vida presente e que o homem natural pode fazer. Zwínglio entendia o pecado como corrupção, e não como culpa, e, conseqüentemente, considerava a graça de Deus como santificante, e não como graça perdoadora. Esta influência santificante, que em certa medida penetrava até mesmo no mundo gentílico, explica o que há de verdadeiro, bom e belo neste mundo. Calvino não concordava com a posição de Lutero, nem com a de Zwínglio. Ele sustentava firmemente que o homem natural não pode, por si mesmo, fazer nenhuma obra boa, e insistia vigorosamente na natureza particular da graça salvadora. Ao lado da doutrina da graça particular, ele desenvolveu a doutrina da graça comum. Esta graça é comunal, não perdoa nem purifica a natureza humana, e não efetua a salvação dos pecadores. Ela reprime o poder destrutivo do pecado, mantém em certa medida a ordem moral do universo, possibilitando assim uma vida ordenada, distribui em vários graus dons e talentos entre os homens, promove o desenvolvimento da ciência e da arte, e derrama incontáveis bênçãos sobre os filhos dos homens. Desde os dias de Calvino, a doutrina da graça comum é geralmente aceita na teologia reformada (calvinista), embora encontrando ocasional oposição. Durante longo tempo, porém, pouco foi feito para desenvolver a doutrina. Deve-se isto, com a toda a probabilidade, ao fato de que o surgimento e predomínio do racionalismo tornou necessário dar toda a ênfase à graça especial. Até o presente, Kuyper e Bavinck fizeram mais que ninguém pelo desenvolvimento da doutrina da graça comum.

(Teologia Sistemática – louis Berkhof. Pg. 429)



[1] . Cf. Polman, De Predestinatieleer van Augustinus, Thomas van Aquino en Calvjn, p. 77, 78; Shedd, History of Christian Doctrine II, p. 75, 76.
[2] . Artigo XVIII.

Nome e Conceito da Graça Comum

1. NOME. O nome “graça comum”, como designativo da graça ora em discussão, não se pode dizer que deve a Calvino a sua origem. Diz o dr. H. Kuiper, em sua obra sobre Calvino Sobre a Graça Comum (Calvin on Common Grace), que encontrou quatro trechos das obras de Calvino em que o adjetivo “comum” é empregado junto com o substantivo “graça”, e em duas delas o Reformador está falando da graça salvadora.[1] Na teologia reformada posterior, porém, o nome gratia communis entrou em uso geral para expressar a idéia de que esta graça se estende a todos os homens, em contraste com a gratia particularis, que se limita a uma parte da humanidade, a saber, aos eleitos. No transcurso do tempo, ficou evidente que o termo “communis” permitia várias interpretações. Na teologia holandesa ele é freqüentemente considerado como equivalente a “geral” e, como resultado, veio a ser costumeiro falar em “graça geral” (algemeene genade) na Holanda. Estritamente falando, porém, o termo communis, como aplicado à graça, embora implicando que é geral nalgum sentido da palavra, salienta o fato de que esta graça é comunal, isto é, é possuída em comum por todas as criaturas, ou por todos os homens, ou por aqueles que vivem sob a administração do Evangelho. Pelo que, o dr. H. Kuiper classifica a graça comum da qual fala Calvino sob três títulos, quais sejam: (1) Graça comum universal, que se estende a todas as criaturas; (2) Graça comum geral, que se aplica à comunidade em geral e a cada membro da raça humana; (3) Graça comum pactual, comum aos que vivem na esfera da aliança, pertençam aos eleitos ou não. É mais que evidente que os teólogos reformados (calvinistas) subordinaram também a expressão “graça comum” uma graça que não é geral, a saber, os privilégios dos que vivem sob a administração do Evangelho, a vocação universal externa inclusive. Ao mesmo tempo, eles assinalam que esta graça, em distinção da graça comum geral, pertence à economia da redenção.[2] Finalmente, deve-se notar que a expressão gratia communis é suscetível de receber, e de fato tem recebido, interpretação não somente quantitativa, mas também qualitativa. Pode denotar uma graça que é comum no sentido de ordinária. As operações ordinárias do Espírito Santo, em distinção das Suas operações especiais, são chamadas comuns. Suas operações naturais ou usuais se contrastam com as que são invulgares e sobrenaturais. É este o sentido do termo “comum” na Confissão de Westminster X.4, e no Catecismo Maior de Westminster, perg. 60.* A respeito da graça comum desfrutada pelos que vivem sob o Evangelho, declara W.L.Alexander: “A graça deste modo concedida é comum, não no sentido de ser dada a todos os homens em comum, mas no sentido de produzir efeitos ordinários, podendo ficar aquém da real eficácia salvífica”.[3] Assim entendida, a graça de Deus pode ser comum sem ser geral ou universal.

2. CONCEITO. A distinção entre a graça comum e a graça especial não se aplica à graça como atributo de Deus. Não há duas espécies de graça em Deus, mas somente uma. É a perfeição de Deus em virtude da qual ele mostra imerecido favor ao homem, favor de que este fora privado com justiça. Contudo, esta graça específica de Deus se manifesta em diferentes dons e operações. Sua mais rica manifestação se vê naquelas grandiosas operações que visam à remoção da culpa, da corrupção e da punição do pecado, e à salvação última dos pecadores, e redunda nessas bênçãos. Mas, se bem que este é o coroamento da obra da graça de Deus, não é sua única manifestação. Ela aparece também nas bênçãos naturais que Deus derrama sobre o homem na presente vida, apesar do fato de que o homem perdeu o direito a elas e se acha sob sentença de morte. A obra da graça divina se vê em tudo que Deus faz para restringir a devastadora influência e desenvolvimento do pecado no mundo, e para manter, enriquecer e desenvolver a vida da humanidade em geral e dos indivíduos componentes da raça humana. Deve-se ressaltar que estas bênçãos são manifestações da graça de Deus ao homem em geral. Alguns preferem dizer que elas são expressões da Sua bondade, benignidade, benevolência, misericórdia ou longanimidade, mas eles parecem esquecer que Deus não poderia ser bondoso, benigno ou benevolente para com o pecador, a menos que primeiramente fosse gracioso. Deve-se ter em mente, porém, que a expressão gratia communis, embora designando geralmente uma graça que é comum à humanidade toda, é também empregada para indicar uma graça que é comum aos eleitos e aos não eleitos que vivem sob o Evangelho, que inclui bênçãos como o chamamento externo do Evangelho, que é feito igualmente a ambos os grupos, e aquela iluminação interna e aqueles dons do Espírito a respeito dos quais lemos em Hb 6.4-6. Entende-se, porém, que estes privilégios só podem ser chamados comuns no sentido que são usufruídos pelos eleitos e pelo réprobo indiscriminadamente, e de que não constituem graça especial, no sentido de graça salvadora. Em distinção das manifestações mais gerais da graça comum, esses privilégios, embora não constituam parte da graça de Deus que leva necessariamente à salvação, são, não obstante, relacionados com o processo soteriológico. Às vezes recebem o nome de “especiais”, mas, neste caso, “especiais” não equivale a “salvadores”. Em geral se pode dizer que, quando falamos de “graça comum”, temos em mente, ou (a) as operações gerais do Espírito Santo pelas quais Ele, sem renovar o coração, exerce tal influência sobre o homem por meio da Sua revelação geral ou especial, que o pecado sofre restrição, a ordem é mantida na vida social, e a justiça civil é promovida; ou (b) as bênçãos gerais, como a chuva e o sol, a água e alimento, roupa e abrigo, que Deus dá a todos os homens indiscriminadamente, onde e quanto Lhe parece bom faze-lo.

Devemos notar os seguintes pontos de distinção entre a graça especial (no sentido de graça salvadora) e a graça comum:

a. A extensão da graça especial é determinada pelo decreto da eleição. Esta graça limita-se aos eleitos, ao passo que a graça comum não sofre esta limitação, mas é outorgada indiscriminadamente a todos os homens. O decreto da eleição e da reprovação não tem influência determinante sobre ela. Nem sequer se pode dizer que os eleitos recebem maior proporção da graça comum do que os não eleitos. É matéria de conhecimento geral, e muitas vezes se observou, que, com freqüência, os ímpios possuem maior medida da graça comum e têm maior participação nas bênçãos naturais do que os justos.

b. A graça especial remove a culpa e a penalidade do pecado, muda a vida interior do homem, e gradativamente o purifica da corrupção do pecado pela operação sobrenatural do Espírito Santo. Sua atividade invariavelmente redunda na salvação do pecador. Por outro lado, a graça comum jamais remove a culpa do pecado, não renova a natureza humana, mas apenas tem um efeito restringente sobre a influência corruptora do pecado e, em certa media, suaviza os seus resultados. Não efetua a salvação do pecador, embora nalgumas das suas formas (vocação externa e iluminação moral) esteja estreitamente relacionada com a economia da redenção e tenha uma aparência soteriológica.

c. A graça especial é irresistível. Não significa que seja uma força determinista a compelir o homem a crer contra a sua vontade, mas significa que, pela mudança do coração do homem, torna-o perfeitamente desejoso de aceitar a Jesus Cristo para a salvação e de prestar obediência à vontade de Deus. A graça comum é resistível, e de fato sempre sofre maior ou menor resistência. Paulo mostra em Rm 1 e 2 que, num os gentios, nem os judeus, viviam à altura da luz que possuíam. Diz Shedd: “Na graça comum, o chamamento para crer e arrepender-se é invariavelmente ineficaz, porque o homem é avesso à fé e ao arrependimento e está na escravidão do pecado”.[4] Ela é ineficaz para a salvação porque não transforma o coração.

d. A graça especial age de maneira espiritual e recriadora, renovando completamente a natureza do homem e, assim, tornando o homem capaz e desejoso de aceitar a oferta da salvação em Jesus Cristo e de produzir frutos especiais. A graça comum, ao contrário, opera somente de modo racional e moral, tornando o homem, de maneira geral, receptivo ante a verdade, apresentando motivos à vontade e apelando para os desejos naturais do homem. Isto equivale a dizer que a graça especial (salvadora) é imediata e sobrenatural, visto que é produzida na alma pela energia imediata do Espírito Santo, enquanto que a graça comum é mediata, uma vez que é produto da operação mediata do Espírito Santo mediante a verdade da revelação geral ou especial e mediante a persuasão moral.

Deve-se distinguir cuidadosamente entre esta concepção da graça comum e a dos arminianos, que consideram a graça comum com um dos elas da ordo salutis e lhe atribuem significação salvadora. Eles afirmam que, em virtude da graça comum de Deus, o homem não regenerado é perfeitamente capaz de praticar o bem espiritual, em certa medida, de converter-se a Deus com arrependimento e fé, e, assim, de aceitar a Jesus para a salvação. Vão mais longe até, e sustentam que, pela iluminação da mente e pela influência persuasiva da verdade, a graça comum incita o pecador a aceitar a Jesus Cristo e a converter-se a Deus com arrependimento e fé, e certamente atingirá este objetivo, a menos que o pecador resista obstinadamente à operação do Espírito Santo. Os Cânones de Dort se ocupam disto quando rejeitam o erro dos que ensinam “que o homem natural e corrupto pode usar tão bem a graça comum (pela qual eles entendem a luz da natureza), ou os dons que ainda lhe ficaram depois da Queda, que ele pode, pelo seu bom uso, obter gradativamente uma graça maior, isto é, a graça evangélica ou a salvadora, e a própria salvação”.[5]

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 432)



[1] Cf. p. 178
[2] Cf. Mastricht, God Geleerdheit I, p. 441; Brakel, Redelijke Godsdienst I, p. 729, 730; Hodge, Syst. Theol. II, p. 654; A.A. Hodge, Outlines of Theol., p. 449; Shedd, Calvinism Pure and Mixed, p. 98, 99; Vos, Geref. Dogm. IV, p. 13, 14.
* Ambos, juntamente com o Breve Catecismo de Westminster, símbolos de fé da Igreja Presbiteriana do Brasil. Nota do tradutor.
[3] Systm of Bib. Theol. II, p. 352.
[4] Calvinsm Purê and Mixed, p. 99..
[5] III.IV. Rejeição de erros 5.

A Graça Comum e a Obra Expiatória de Cristo



Surge naturalmente a questão sobre se a manifestação da graça comum de algum modo se relaciona com a obra expiatória de Cristo. Quanto sabemos, o dr. Kuyper não defende tal relação. Segundo ele, Cristo, como o Mediador da criação, a luz que ilumina todo homem vindo ao mundo, é a fonte da graça comum. Quer dizer que as bênçãos da graça comum dimanam dd obra da criação. Mas isto não basta para responder à questão sobre como se explica que um Deus santo e justo estende a sua graça a pecadores que perderam todo e qualquer direito, e lhe concede favores, mesmo quando não compartilham a justiça de Cristo e se revelam final e definitivamente impenitentes. A questão exata é: Como pode Deus continuar concedendo as bênçãos da criação a homens que estão sob sentença de morte e de condenação? No que se refere aos eleitos, esta questão é respondida pela cruz de Cristo, mas, e quanto aos réprobos? Talvez possa dizer que não é necessário supor uma base judicial específica para a concessão da graça comum ao homem, tendo-se em conta que (a) ela não remove a culpa do pecado e, portanto, não traz perdão; e (b) não suspende a sentença de condenação, mas unicamente adia a sua execução. Talvez o fato de que o beneplácito divino susteve a manifestação da Sua ira e “suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição” (Rm 9.22), ofereça suficiente explicação das bênçãos da graça comum.

Geralmente os teólogos reformados (calvinistas) hesitam em dizer que, com o Seu sangue expiatório, Cristo mereceu estas bênçãos para os impenitentes e réprobos. Ao mesmo tempo, eles crêem que importantes benefícios naturais se acumulam para toda a raça humana, provenientes da morte de Cristo, e que os incrédulos, os impenitentes e os réprobos também participam desses benefícios. Em toda transação pactual registrada na Escritura se vê que a aliança da graça traz, não somente bênçãos espirituais, mas também bênçãos materiais, e essas bênçãos materiais são de tal natureza que delas participam também os descrentes. Diz Cunningham: “Muitas bênçãos fluem para a humanidade em geral, provindas da morte de Cristo, colateral e acidentalmente, em conseqüência da relação em que os homens, coletivamente considerados, vivem uns com os outros”.[1] E não é nada mais que natural que seja assim. Se Cristo devia salvar uma raça eleita, paulatinamente chamada do mundo da humanidade no transcurso dos séculos, era necessário que Deus exercesse paciência, detivesse o curso do mal, promovesse o desenvolvimento das faculdades naturais do homem, mantivesse vivo nos corações dos homens o desejo de manter a justiça civil, a moralidade exterior e a boa ordem na sociedade, e derramasse incontáveis bênçãos sobre a humanidade em geral. O dr. Hodge o expressa desta maneira: “È evidente que qualquer plano destinado a garantir a salvação a uma parte eleita de uma raça que se propaga por geração e vice em associação, como é o caso da humanidade, não pode garantir o seu objetivo sem afetar grandemente, para melhor ou para pior, o caráter e o destino de todos os demais membros não eleitos da raça”. Cita ele o dr. Candlish para indicar que “toda a história da raça humana, desde a apostasia até ao juízo final, é uma dispensação de paciência com relação aos réprobos, em que muitas bênçãos, físicas e morais, que afetam os seus caracteres e os seus destinos para sempre, acumulam-se até mesmo para os pagãos, e muito mais aos cidadãos de boa e refinada educação pertencentes às comunidades cristãs. Estas lhes advêm através da mediação de Cristo, e vindo a eles agora, só podem ter-lhes sido destinadas desde o princípio”.[2] Estas bênçãos gerais da humanidade, que resultam indiretamente da obra expiatória de Cristo, foram, não somente previstas por Deus, mas também designadas por Ele como bênçãos para todos os envolvidos. Naturalmente, é mais que certo que o propósito de Deus na obra de Cristo visava primária e diretamente, não ao bem-estar temporal dos homens em geral, mas, sim, à redenção dos eleitos; mas, secundária e indiretamente incluía também as bênçãos naturais concedidas indiscriminadamente à humanidade. Tudo que o homem natural recebe, fora a maldição e a morte, é resultado indireto da obra redentora de Cristo.[3]

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 433)



[1] Hist. Theol. II, p. 333.
[2] The Atonement, p. 358, 359.
[3] Cf. Turretino, Opera, Lócus XIV, perg. XIV, parte XI; Witsius, De Verbonden, B. II, cap. 9, seção 4; Cunningham, Hist. Theol. II, p. 332; Symington, Atonement and Intercession, p. 255; Bavinck, Geref. Dogm. III, p. 535; Vos, Ger. Dogm. III, p. 150.

Relação Entre a Graça Especial e a Comum

Várias questões podem ser levantadas a respeito desta relação, das quais as seguintes são algumas das mais importantes:

1. A GRAÇA ESPECIAL E A COMUM DIFEREM ESSENCIALMENTE, OU SOMENTE NO DECRETO? Os arminianos reconhecem ao lado da graça suficiente (comum) a graça da obediência evangélica, mas afirmam que as duas diferem somente em grau, não em essência. Ambas são soteriológicas, no sentido de que fazem parte da obra salvadora de Deus. A primeira possibilita ao homem arrepender-se e crer, ao passo segunda, em cooperação com a vontade, faz com que o homem se arrependa e creia. Ambas podem sofrer resistência, de maneira que, mesmo a segunda não é necessariamente eficaz para a salvação. Todavia, a teologia reformada (calvinista) insiste na diferença essencial entre a graça comum e a especial. A graça especial é sobrenatural e espiritual; remove a culpa e a corrupção do pecado, e suspende a sentença de condenação. A graça comum, por outro lado, é natural; e, embora algumas das suas formas possam estar estreitamente relacionadas com a graça salvadora, ela não remove o pecado nem liberta o homem, mas simplesmente restringe as manifestações externas do pecado e promove a moralidade e a decência exteriores, boa ordem na sociedade, justiça cívica, desenvolvimento da ciência e da arte etc. Ela age somente na esfera natural, e não na espiritual. Deve-se sustentar, que, embora ambas estejam estreitamente relacionadas na presente vida, são essencialmente diferentes, não diferindo apenas em grau. Haja quanta graça comum houver, não introduzirá o pecador na vida que há em Cristo Jesus.Contudo, a graça comum às vezes se revela em formas que dificilmente o homem pode distinguir das manifestações da graça especial como, por exemplo, no caso da fé temporal. Ao que parece, o dr. Shedd não tem especialmente em mente a diferença essencial entre ambas, quando diz: “O não eleito recebe a graça comum, e a graça comum dobraria a vontade humana, se não fosse derrotada por ela. Se o pecador não fizesse oposição hostil, a graça comum seria equivalente à graça especial”. Numa nota ele acrescenta: “Dizer que a graça comum, se não sofresse resistência do pecador, seria equivalente à graça regeneradora, não é o mesmo que dizer que a graça comum, se ajudada pelo pecador, seria equivalente à graça regeneradora. No primeiro caso, Deus seria o único autor da regeneração; no segundo, não seria”.[1] Isto faz lembrar a teologia luterana, mas não está inteiramente claro o que o autor quer dizer, pois noutro lugar ele atribui também a não resistência do pecador à operação do Espírito Santo.[2]

2. QUAL DAS DUAS É A PRIMEIRA, A GRAÇA COMUM OU A GRAÇA ESPECIAL? A esta questão deve-se responder que, num sentido temporal, não se pode dizer que qualquer delas tenha prioridade sobre a outra. O capítulo três de Gênesis revela claramente que ambas entraram em ação imediatamente após a Queda. Contudo, deve-se atribuir à graça especial a prioridade lógica, porquanto a graça comum é-lhe subserviente em sua operação no mundo.

3. A GRAÇA COMUM ATENDE A UM PROPÓSITO INDEPENDENTE, OU NÃO? Não se pode duvidar de que, em parte, a graça comum tem o seu propósito na obra redentora de Jesus Cristo; ela é subserviente à execução do plano de Deus na vida dos eleitos e no desenvolvimento da igreja. Mas, em acréscimo, atende também um propósito independente, qual seja, trazer à luz e pôr em ação, para o serviço do homem, as forças ocultas da natureza e desenvolver os poderes e talentos latentes na raça humana, para que o homem possa progressivamente exercer domínio sobre a criação inferior, para a glória de Deus, o Criador.[3]

4. A GRAÇA ESPECIAL E A GRAÇA COMUM TÊM, CADA UMA, A SUA PRÓPRIA ESFERA PECULIAR E DISTINTIVA? Pode-se dizer que, em certo sentido, a graça especial tem a sua própria esfera peculiar na igreja organizada, se bem que não está limitada necessariamente a esta, e que a graça comum também opera na igreja, pois ela é dada a todos os homens. Ambas operam no mundo, mas, enquanto o graça comum, no sentido mais habitual da expressão, diz respeito às coisas do mundo natural e da vida presente, a graça especial tem que ver com as coisas da nova criação. Só podem influenciar-se mutuamente. A graça comum enriquece a igreja com as suas bênçãos; e a igreja eleva os frutos da graça comum a um nível superior, colocando-os sob a influência da vida regenerada.

(Teologia Sistemática – Louis Bekhof. Pg. 435)



[1] Dogm. Theol. II, p. 483.
[2] Calvinism Pure and Mixed, p. 101.
[3] Cf. Kuyper, Gemeene Gratie II, p. 622, 628, 633; Bavinck, De Algemeene Genade, p. 45.

Meios Pelos Quais Opera a Graça Comum

Podemos distinguir vários meios pelos quais a graça comum leva a afeito a sua obra. Calvino sugere alguns deles, quando, ao falar da influência restringente da graça comum, diz: “Daí, por mais que os homens disfarcem a sua impureza, alguns só são impedidos de irromper em muitos tipos de iniqüidade pela vergonha, outros pelo temor das leis. Alguns aspiram a uma vida honesta, julgando que favorece mais aos seus interesses, enquanto outros são elevados acima da sorte vulgar para que, pela dignidade da sua posição social, se mantenham inferiores aos seus direitos e deveres. Assim Deus, por Sua providência, refreia a perversidade da natureza, impedindo-a de entrar em ação, mas sem torna-la interiormente pura”.[1] Os seguintes são alguns dos mais importantes meios pelos quais a graça comum realiza a sua obra:

1. A LUZ DA REVELAÇÃO DE DEUS. Esta é fundamental, pois sem ela, todos os outros meios seriam impossíveis, e, mesmo que fossem possíveis, não funcionariam apropriadamente. Temos em mente aqui primariamente a luz da revelação de Deus que brilha na natureza e ilumina todo homem que surge no mundo. Ela mesma é fruto da graça comum, mas, por sua vez, vem a ser um meio para maior manifestação dela, visto que serve para guiar a consciência do homem natural. Paulo fala dos gentios que praticam por natureza as coisas da lei, dizendo que eles “mostram a norma da lei gravada nos seus corações, testemunhando-lhes também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se” Rm 2.14, 15. Comentando esta passagem, diz Calvino que esses gentios “provam que há impressa em seus corações uma capacidade de discriminação e de julgamento com que eles distinguem entre o que é justo e o que é injusto, entre o que é honesto e o que é desonesto”.[2] Acresce, contudo, que se pode dizer que a graça comum, num sentido mais restrito, opera também na luz da revelação especial de Deus, que não é fruto da graça comum, mas, sim, da graça especial.

2. GOVERNOS. Destes também se pode dizer que são fruto e meio da graça comum. Segundo Rm 13, os governos são ordenados por Deus para a manutenção da boa ordem na sociedade.Resistir a eles é resistir à ordenação de Deus. A autoridade governante, diz o apóstolo, “é ministro de Deus para teu bem”, Rm 13.4. Ele vê suporte na consciência do homem (versículo 5), e, quanto ao mais, “não é sem motivo que ela traz a espada” (vers.4) . Sobre este ponto diz a confissão Belga: “Cremos que o nosso gracioso Deus , devido à depravação da humanidade, designou reis, príncipes e magistrados, desejoso de que o mundo seja governado por certas leis e formas de vigilância, com o fim de que a dissolução dos homens fosse refreada e todas as coisas fossem conduzidas com boa ordem e decência entre eles”.2

3. OPINIÃO PÚBLICA. A luz que brilha nos corações dos homens, especialmente quando reforçada pela influência da revelação especial de Deus, resulta na formação de uma opinião pública extrema conformidade com a lei de Deus, e isso tem tremenda influência sobre a conduta dos que são sensíveis ao julgamento da opinião pública. Naturalmente, a opinião pública só será um meio da graça comum quando formada sob a influência da revelação de Deus. Senão for dirigida pela consciência, agindo em harmonia com a luz da natureza, ou pela Palavra de Deus, será uma poderosa influência para o mal.

4. PUNIÇÕES E RECOMPENSAS DIVINAS. As disposições providenciais de Deus, pelas quais Ele visita a iniqüidade dos homens neles mesmos, nesta vida, e recompensas as ações que se harmonizam exteriormente com a lei divina, atendem a um importante propósito, refreando o mal existente no mundo. As punições têm efeito dissuasório, e as recompensas servem de incentivo. Por este meio, toda bondade moral que há no mundo é fortemente estimulada. Muitos se esquivam do mal e buscam o bem, não porque temam a Deus, mas porque percebem que o bem traz sua própria recompensa e atende melhor aos seus interesses.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 437)



[1] Inst. II. 3,3.
[2] Comentário de Romanos, in loco.

Frutos da Graça Comum

Na seção anterior já indicamos que aquilo que nos ficou da luz da natureza só continua agindo em virtude da graça comum de Deus. Esse é um dos mais importantes frutos da graça comum, sem que alguns dos outros seriam inconcebíveis. Os seguintes frutos podem ser mencionados aqui:

1. É SUSTADA A EXECUÇÃO DA SENTENÇA. Deus pronunciou a sentença de morte sobre o pecador. Falando da árvore do conhecimento do bem e do mal, disse Ele: “no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. O homem comeu, e a sentença foi posta em execução até certo ponto, mas, evidentemente, não foi logo executada totalmente. É devido à graça comum que Deus não executou plenamente a sentença da morte no pecador, e não o faz agora, mas mantém e prolonga a vida natural do homem e lhe dá tempo para arrependimento. Ele não dá logo fim à vida do pecador, mas lhe dá oportunidade para arrepender-se, tirando com isso qualquer motivo para desculpa e justificando a vindoura manifestação da Sua ira sobre os que persistirem no pecado até o fim. Que Deus age com base neste princípio evidencia-se amplamente em passagens como Is 48.9; Jr 7.23-25; Lc 13.6-9; Rm 2.4; 9.22; 2 Pe 3.9.

2. RESTRIÇÃO DO PECADO. Pela operação da graça comum, o pecado sofre restrição nas vidas dos indivíduos e na sociedade. Ao elemento de corrupção que entrou na vida da raça humana não é permitido, por ora, realizar a sua obra desintegradora. Diz Calvino: “Mas devemos considerar que, não obstante a corrupção da nossa natureza, há algum espaço para a graça divina, graça que, sem purifica-la, pode coloca-la sob repressão interior. Pois, se o Senhor deixasse todas as mentes soltas para desenfrear-se em suas luxúrias, sem dúvida não há nenhum homem que não mostrasse que a sua natureza e capaz de praticar todos os crimes de que Paulo a acusa (Rm 3, comparado com Sl 14.3-6)”.[1] Esta repressão pode ser externa ou interna ou ambas, mas não muda o coração. Há passagens que falam da luta do Espírito de Deus com os homens, luta que não produz arrependimento, Gn 6.3; Is 63.10; At 7.51; de operações do Espírito Santo que acabam sendo retiradas, 1 Sm 16.14; Hb 6.4-6; e do fato de que, nalguns casos, Deus finalmente deixa os homens entregues às luxúrias dos seus próprios corações, Sl 81.12; Rm 1.24, 26, 28. Em acréscimo às passagens anteriores, há algumas que mostram claramente que Deus reprime o pecado de várias maneiras, como Gn 20.6; 31.7; Jô 1.12; 2.6; 2 Rs 19.27, 28; Rm 13.1-4.

3. PRESERVAÇÃO DE ALGUMA PERCEPÇÃO DA VERDADE, DA MORAL E DA RELIGIÃO. Deve-se à graça comum que o homem ainda conserva alguma noção do verdadeiro, do bom e do belo, e muitas vezes aprecia estas coisas num grau até surpreendente, e revela desejo da verdade, da moralidade externa e mesmo de certa forma de religião. Paulo fala dos gentios que “mostram a norma da lei gravada nos seus corações, testemunhando-lhes também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se”, na passagem recém-citada de Rm 2.15, e até diz daqueles que davam livre curso às suas vidas ímpias, que eles conheceram a verdade de Deus, embora detivessem a verdade com a injustiça e a mudassem em mentira, Rm 1.18-25. Aos atenienses, que não tinham temor de Deus, disse ele: “Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos”, At. 17:22. Os Cânones de Dort expressam-se como segue, sobre este ponto: “Permanecem, porém, no homem, desde a Queda, vislumbres da luz natural, pelos quais ele conserva algum conhecimento de Deus, das coisas naturais e da diferença entre o bem e o mal, e mostra alguma consideração pela virtude e pela boa conduta exterior. Mas, esta luz da natureza acha-se tão longe de ser suficiente para dar-lhe um conhecimento salvífico de Deus e da verdadeira conversão, que ele é incapaz de usa-la direito, mesmo nas coisas naturais e civis. Não somente isso, mas também esta luz, tal como é, o homem a torna totalmente corrompida e obstrui com a sua injustiça, fazendo aquilo que é inescusável diante de Deus” (III. IV. 4).

4. A PRÁTICA DO BEM EXTERNO E DA JUSTIÇA CIVIL. A graça comum capacita o homem para praticar o que geralmente se denomina justitia civilis, isto é, aquilo que é certo nas atividades civis ou naturais, em distinção daquilo que é certo nas questões religiosas, as boas obras naturais nas relações sociais, obras que se harmonizam externa e objetivamente com a lei de Deus, embora inteiramente destituídas de qualquer qualidade espiritual. Isso está em harmonia com a nossa confissão reformada (calvinista). O artigo XIV da Confissão Belga fala, em seu título, da incapacidade humana de realizar o que é verdadeiramente bom, afirma que o homem conservou apenas diminutos restos dos seus excelentes dons, o bastante para deixa-lo sem desculpa, e somente rejeita o erro pelagiano segundo o qual o homem pode, por si mesmo, praticar o bem espiritual ou salvífico. O artigo 3 dos Cânones de Dort fala num tom semelhante: “Portanto, todos os homens são concebidos em pecado e são por natureza filhos da ira, incapazes para o bem salvífico” etc. Talvez se objete que o Catecismo de Heidelberg fala em termos absolutos na pergunta 8, quando afirma que somos incapazes de fazer qualquer bem, a não ser que sejamos regenerados. Mas, pelo Comentário do próprio Ursino,* fica evidente que ele não nega que o homem possa praticar o bem civil, mas somente que possa praticar as boas obras definidas na pergunta 91 do referido catecismo. Os teólogos reformados (calvinistas) geralmente afirmam que os não regenerados podem realizar o bem natural, o bem civil, e o bem religioso exterior.[2] Contudo, eles chamam a atenção para o fato de que, conquanto essas obras dos não regenerados sejam boas do ponto de vista material, como obras ordenadas por Deus, não podem ser consideradas boas do ponto de vista formal, uma vez que não provêm do motivo certo e não visam ao propósito certo. A Bíblia fala repetidamente de obras de não regenerados como boas e corretas, 2 Rs 10.29, 30; 12.2 (comp. 2 Cr 24.17-25); 14.3, 14-16, 20, 27 (comp. 2 Cr 25.2); Lc 6.33; Rm 2.14, 15.

5. MUITAS BÊNÇÃOS NATURAIS. À graça comum o homem deve, ademais, todas as bênçãos naturais que ele recebe na presente vida. Embora tendo perdido o direito a toda e qualquer bênção de Deus, ele recebe abundantes provas da bondade de Deus, dia após dia. Há várias passagens da Escritura nas quais transparece fartamente que Deus despeja muitas das Suas boas dádivas sobre todos os homens indiscriminadamente, isto é, sobre bons e maus, sobre eleitos e réprobos, passagens como, Gn 17.20 (comp. Versículo 18); 39.5; Sl 145.9, 15, 16; Mt 5.44, 45; Lc 6.35, 36; At 14.16, 17; 1 Tm 4.10. E estas dádivas são destinadas a serem bênçãos,não somente para os bons, mas também para os maus. À luz da Escritura, é insustentável a posição segundo a qual Deus nunca abençoa os réprobos, quando lhes concede muitas dádivas que são boas em si mesmas. Em Gn 39.5 lemos que “o Senhor abençoou a casa do egípcio por amor de José; a bênção do Senhor estava sobretudo o que tinha, assim em casa como no campo”. E em Mt 5.44, 45 Jesus exorta os Seus discípulos com estas palavras: “...orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste” (a versão utilizada pelo Autor diz: “... abençoai os que vos amaldiçoam...”). Isto só pode significar uma coisa, a saber, que Deus também abençoa os que O amaldiçoam. Cf. também Lc 6.35, 36; Rm 2.4.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 439)



[1] Inst. II: 3, 3.
* Zacarias Ursino, nascido em 1534, em Breslau, Alemanha, um dos teólogos de Heidelberg encarregados de preparar o Catecismo de Heidelber. Nota do tradutor.
[2] Cf. Calvino, Inst. III.14.2; Van Mastricht, Godgeleerdheid, Livro IV.4.11, 12; Voetius, Catechisatie I, p. 168-172; Ursino, Comm. on the Catechism, Lord’s Day II, p. 77; Charnock, On the Atributes II, p.303, 304; Brakel, Redelijke Godsdienst I, p.338.

Objeções à Doutrina Reformada da Graça Comum

Diversas objeções foram, e ainda agora são, levantadas por alguns contra a doutrina da graça comum nos termos em que foi exposta acima. Algumas das mais importantes são as seguintes:

1. Os arminianos não se mostram satisfeitos com ela porque acham que ela não vai suficientemente longe. Eles consideram a graça comum como uma parte integrante do processo salvífico. É aquela graça suficiente que habilita o homem a arrepender-se e a crer em Jesus Cristo para a salvação, e que no propósito de Deus visa a conduzir os homens à fé e ao arrependimento, embora os homens a possam frustrar. Uma graça que não vise à salvação dos homens e não auxilie realmente, é uma contradição de termos. Daí Pope, um arminiano wesleyano, afirma que a graça comum, no sistema calvinista, “é universal, e não particular; é necessariamente, ou pelo menos fatualmente, inoperante para a salvação no propósito de Deus”, e apelida isto de “influência desperdiçada”. Diz ele mais: “A graça deixa de ser graça, se não inclui a intenção salvadora do Doador”.[1] Mas o certo é que a Bíblia não limita desse jeito o uso do termo “graça”. Passagens como Gn 6.8; 19.19; Ex 33.12, 16; Nm 32.5; Lc 2.40, e muitas outras não se referem ao que denominamos “graça salvadora”, nem tampouco ao que o arminiano denomina “graça suficiente”.

2. Às vezes argumentam que a doutrina reformada da graça comum envolve a doutrina da expiação universal, e, portanto, vai dar no campo arminiano. Mas não há boa base para esta asserção. Ela nem diz nem implica que é propósito de Deus salvar todos os homens por meio do sangue expiatório de Jesus Cristo. A objeção se baseia particularmente na proclamação universal do Evangelho, que é considera possível somente com base numa expiação universal. Ela já foi sugerida pelos próprios arminianos por ocasião do Sínodo de Dort, quando eles asseveram que os reformados, com sua doutrina da expiação particular, não podiam pregar o Evangelho a todos os homens, indiscriminadamente. Mas o Sínodo de Dort não reconheceu a contradição deduzida por eles. Os Cânones ensinam a expiação particular, [2] e também exigem a proclamação universal do Evangelho.[3] E isso está em perfeita harmonia com a Escritura, que, por um lado, ensina que Cristo fez expiação somente pelos eleitos, Jo 10.15; At 20.28; Rm 8.32, 33; cf. também Jo 17.9; e, por outro lado, ensina que o Evangelho tem que ser propagado a todos os homens, indiscriminadamente, Mt 22.2-14; 28.19; Mc 16.15, 16. Se se objetar que não podemos harmonizar plenamente a indiscriminada e sincera oferta da salvação condicionada pela fé e arrependimento com a doutrina da expiação particular, pode-se admitir isto, mas com o definido entendimento de que a verdade de uma doutrina não depende da nossa capacidade de harmonizá-la com todas as doutrinas da Escritura.

3. Outra objeção à doutrina da graça comum é que ela pressupõe certa disposição favorável de Deus mesmo para com os pecadores reprovados, quando não temos nenhum direito de supor que Deus tenha tal disposição. Esta crítica toma o seu ponto de partida no conselho eterno de Deus, em Sua eleição e reprovação. Ao longo da linha da Sua eleição, Deus revela Seu amor, Sua graça, Sua misericórdia e Sua longanimidade levando à salvação; e na concretização histórica da Sua reprovação, Ele dá expressão à Sua aversão, ao Seu desfavor, ao Seu ódio, à Sua ira, levando à destruição. Mas isto parece uma simplificação exagerada e racionalista da vida interior de Deus, simplificação que não leva em conta a Sua auto-revelação. Ao falarmos deste assunto, devemos ser muito cuidadosos e deixar-nos guiar pelas declarações explícitas da Escritura, e não por nossas atrevidas inferências do secreto conselho de Deus. Há muito mais em Deus do que aquilo que podemos reduzir às nossas categorias lógicas. Serão os eleitos nesta vida unicamente objetos do amor de Deus, e nunca em nenhum sentido, objetos de Sua ira? Estará Moisés pensando nos réprobos quando diz: “Pois somos consumidos pela tua ira, e pelo teu furor, conturbados”? Sl 90.7. A afirmação de Jesus, de que ira de Deus permanece sobre aqueles que não obedecem ao Filho, não implica que ela é retirada dos outros quando se submetem ao benigno governo de Cristo, e não até quando o fizerem? Jo 3.36. E não diz Paulo aos crentes efésios que eles eram “por natureza filhos da ira, como também os demais”? Ef 2.3. Evidentemente, os eleitos não podem ser considerados como sempre e exclusivamente objetos do amor de Deus. E se aqueles que são objetos do amor redentor de Deus também podem, nalgum sentido, ser considerados objetos da Sua ira, por que seria impossível que aqueles que são objetos da Sua ira também participem, nalgum sentido, do Seu divino favor? Um Pai que é também juiz pode desgostar-se com o filho que é trazido à sua presença como criminoso, e sentir-se constrangido a puni-lo com a sua ira judicial, mas pode, apesar disso, apiedar-se dele e mostrar-lhe atos de bondade enquanto o filho está sob condenação. Por que isto seria impossível em Deus? O general Washington odiou o traidor que foi levado à sua presença, e o condenou à morte, mas, ao mesmo tempo, mostrou-lhe compaixão servindo-lhe iguarias da sua mesa. Deus não pode ter compaixão, mesmo do pecador condenado, e conceder-lhe favores? Não há por que ser incerta a resposta, desde que a Bíblia ensina com clareza que Ele derrama incontáveis bênçãos sobre todos os homens e também indica claramente que elas são expressões de uma disposição favorável de Deus que, contudo, fica muito aquém da volição positiva exercida para lhes perdoar, suspender a sentença a eles imposta e assegurar-lhes a salvação. As seguintes passagens indicam claramente aquela disposição favorável: Pv 1.24; Is 1.18; Ez 18.23, 32; 33.11; Mt 5.43-45; 23.37; Mc 10.21; Lc 6.35; Rm 2.4; I tm 2.4. Se tais passagens não testificam uma disposição favorável de Deus, fica parecendo que a linguagem perdeu o seu sentido, e que a revelação de Deus sobre este assunto não é confiável.

4. Os anabatistas se opõem à doutrina da graça comum porque ela envolve o reconhecimento de bons elementos na ordem natural das coisas, o que é contrário à sua posição fundamental. Eles vêem a criação natural com desprezo, acentuam que Adão era da terra e de terra, e só enxergavam impureza na ordem natural como tal. Cristo estabeleceu uma nova e sobrenatural ordem de coisas, e a esta ordem também pertence o homem regenerado, que não é apenas renovado, mas, sim, um homem inteiramente novo. Ele nada tem em comum com o mundo a seu redor e, portanto, não deve tomar parte em sua vida: nunca fazer um juramento, não participar de nenhuma guerra, não reconhecer as autoridades civis, evitar vestuário mundano, e assim por diante. Para esta posição não existe nenhuma outra graça, além da graça salvadora. Este conceito foi partilhado pelo labadismo,* pelo pietismo, pelos irmãos morávios e por várias outras seitas. A negação da graça comum por parte de Barth parece seguir estas mesmas linhas. Não é de admirar, pois, que para ele também, a “criaturidade” (o ser criatura) e a pecaminosidade sejam praticamente idênticas. Brunner dá o seguinte sumário do conceito de Barth: “Decorre do reconhecimento de Cristo como a única e exclusiva graça salvadora de Deus, que não existe nenhuma graça criadora e sustentadora que esteja operando desde a criação do mundo e que se nos manifeste na manutenção do mundo, visto que, neste caso, deveríamos reconhecer duas ou até três espécies de graça, e isso estaria em contradição com a singularidade da graça de Cristo. ...Semelhantemente, a nova criação não é, de modo algum, um cumprimento, mas exclusivamente uma substituição realizada pela aniquilação completa do que havia antes, uma substituição do velho homem pelo novo. A proposição, gratia non tollit naturam sed perficit (a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa) não é verdadeira em nenhum sentido, mas é uma arqui-heresia total”.[4] Brunner rejeita o conceito em foco e, neste ponto, está mais de acordo com o pensamento reformado.

QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. As palavras grega e hebraica para “graça” sempre indicam a graça salvadora? 2. São elas utilizadas sempre como designativos do que denominamos “graça comum”? 3. A doutrina da graça comum pressupõe a doutrina da expiação universal? 4. Ela implica uma negação do fato de que o homem está por natureza sujeito à ira de Deus? 5. Ela envolve uma negação da depravação total do homem e da sua incapacidade para a prática do bem espiritual? 6. O bem que o homem natural pode fazer só o é à vista do homem, ou também à vista de Deus? 7. A doutrina da graça comum destrói a antítese entre o mundo e o reino de Deus? 8. Se não, como explicar isto?

BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Calvin, Institutes II, 2 e 3; Kuyper, De Gemeene Gratie; Bavinck, De Algemeene Genade; ibid., Calvin and Common Grace (em, Calvin and the Reformation); Shedd, Calvinism Purê and Mixed, p. 96-106; ibid., Dogm. Theol. I, p. 432, 435; II, p. 483 e segtes.; Hodge, Syst. Theol. II, p. 654-675; Vos, Geref. Dogm. IV, p. 11-17; Alexander, Syst. of Bib. Theol. II, p. 343-361; Dabney, Syst. and Polem. Theol., p. 583-588; ibid. Discussions, p. 282-313 (God’s Indiscriminate Proposals of Mercy); H. Kuiper, Calvin on Common Grace; Berkhof, De Drie Punten in Alle Deelen Gereformeerd; Hepp, artigo Gemeene Gratie, na Christlijke Encyclopaedie.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 442)



[1] . Christian Theology II, p. 387, 388.
[2] . II. 8.
[3] . II.5 e III.8.
* Seita fundada pelo místico francês Jean de Labadie (1610-74), ex-jesuíta que se uniu à igreja reformada em 1650. Para ele, a igreja devia reproduzir a maneira de ser e de viver da comunidade cristã primitiva. Nota do tradutor.
[4] Natur und Gnade, p. 8.

A União Mística

Calvino repetidamente expressa a idéia de que o pecador não poderá participar dos benefícios da obra redentora de Cristo, se não estiver em união com Ele, e, assim, dá ênfase a uma importante verdade. Assim como Adão foi a cabeça representativa da velha humanidade, Cristo é a Cabeça representativa da nova humanidade. Todas as bênçãos da aliança da graça dimanam dele, em Sua qualidade de Mediador da aliança. Mesmo a primeira bênção da graça salvadora de Deus que recebemos, já pressupõe uma união com a Pessoa do Mediador. É exatamente neste ponto que vemos uma das mais características diferenças existentes entre as operações e bênçãos da graça especial e as da graça comum. Aquelas só podem ser recebidas e desfrutadas por aqueles que se acham em união com Cristo, enquanto que estas também podem ser, e são, desfrutadas por aqueles que não são contados com Cristo e, portanto, não estão unidos a Ele. Toda bênção espiritual que os crentes recebem promanam de Cristo para eles. Daí, quando Jesus falava do Paráclito que havia de vir, pode dizer aos Seus discípulos: “Ele me glorificará porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar”, Jo 16.14. Subjetivamente, a união entre Cristo e os crentes é efetuada pelo Espírito Santo de maneira misteriosa e sobrenatural, razão pela qual é geralmente denominada unio mystica, ou união mística.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 443)

Natureza da União Mística

Geralmente os luteranos tratam antropologicamente a doutrina d união mística, e, portanto, entendem que ela é estabelecida pela fé. Daí, naturalmente, tomam o seu estudo num ponto mais avançado da sua soteriologia. Mas este método deixa de fazer plena justiça à idéia da nossa união com Cristo, uma vez que perde vista a base eterna da união e a sua realização objetiva em Cristo, e trata exclusivamente da sua concretização em nossas vidas e, ainda assim, somente do nosso ingresso pessoal e consciente nessa união. Por outro lado, a teologia reformada (calvinista) trata teologicamente da união dos crentes com Cristo e, desta maneira, faz muito mais justiça a este importante assunto. Em seu tratamento do tema, ela emprega a expressão “união mística” num sentido amplo, não somente como designativo da união subjetiva de Cristo e os crentes, mas também da união que lhe é subjacente e básica, e da qual é apenas a expressão culminante, a saber, a união federal de Cristo e os que Lhe pertencem no conselho da redenção, a união mística estabelecida idealmente naquele conselho eterno, e da união efetuada objetivamente na encarnação e na obra redentora de Cristo.

1. A UNIÃO FEDERAL DE CRISTO COM AQUELES QUE O PAI LHE DEU NO CONSELHO DA REDENÇÃO. No conselho de paz Cristo se incumbiu voluntariamente de ser a Cabeça e o Penhor dos eleitos, destinados a constituir a nova humanidade e, como tal, a estabelecer a justiça desta diante de Deus, cumprindo a pena pelo seu pecado e prestando perfeita obediência à lei e, assim, garantindo o seu direito à vida eterna. Nessa aliança eterna, o pecado do Seu povo foi imputado a Cristo, e a Sua justiça foi imputada a eles. Esta imputação da justiça de Cristo, a Seu povo no conselho da redenção às vezes é descrita como a justificação oriunda da eternidade. Certamente ela é a base da nossa justificação pela fé e o fundamento sobre o qual recebemos todas as bênçãos espirituais e a dádiva da vida eterna. E, sendo assim, é básica para toda a nossa soteriologia, e até mesmo para os primeiros estágios da aplicação da obra da redenção, como a regeneração e a vocação interna.

2. A UNIÃO DE VIDA ESTABELECIDA IDEALMENTE NO CONSELHO DA REDENÇÃO. No caso do primeiro Adão, não havia apenas uma união federal, mas também uma união natural e orgânica entre ele e os seus descendentes. Havia o laço de uma vida comum entre ele e toda a sua progênie, e isto gerou a possibilidade de que as bênçãos da aliança das obras, se se efetivassem, poderiam passar a todo organismo da humanidade de maneira orgânica. Chegou-se a uma situação um tanto similar no caso do último Adão, como a Cabeça representativa da aliança da redenção. Como o primeiro Adão, Ele não representou uma aglomeração de indivíduos disjuntos, mas um corpo de homens e mulheres que deveriam derivar sua vida dele, estar unidos por laços espirituais, formando, assim, um organismo espiritual. Idealmente, este corpo, que é a igreja, já estava formado na aliança da redenção, e isto em união com Cristo, e esta união possibilitou que todas as bênçãos merecidas por Cristo pudessem de maneira orgânica para aqueles que Ele representou. Estes eram vistos como corpo glorioso, uma nova humanidade, que compartilha a vida de Jesus Cristo. Foi em virtude dessa união, concretizada no transcurso da história, que Cristo pôde dizer: “Eis aqui estou eu, e os filhos que Deus me deu”, Hb 2.13.

3. A UNIÃO DE VIDA REALIZADA OBJETIVAMENTE EM CRISTO. Em virtude da união legal ou representativa estabelecida na aliança da redenção, Cristo se encarnou como substituto de Seu povo, para merecer todas as bênçãos da salvação para eles. Desde que os Seus filhos forma participantes de carne e sangue, “destes também ele, igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo, e livrasse a todos que, pelo pavor da morte, estavam sujeitos à escravidão por toda a vida”, Hb 2.14, 15. Ele pôde merecer a salvação para eles justamente porque já estava em relação com eles como seu Penhor e seu Mediador, sua Cabeça e seu Substituto. A igreja toda estava incluída nele como Cabeça. Num sentido objetivo, ela foi crucificada com Cristo, morreu com Ele, nele ressurgiu dos mortos e foi levada a sentar-se com Ele nos lugares celestiais. Todas as bênçãos da graça salvadora estão prontas para a igreja em Cristo; o homem não lhes pode acrescentar nada; e agora só esperam a sua aplicação subjetiva pela operação do Espírito Santo, a qual é também merecida por Cristo e tem a garantia de progressiva realização no curso da história.

4. A UNIÃO DE VIDA REALIZADA SUBJETIVAMENTE PELA OPERAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO. A obra de Cristo não estava terminada quando Ele mereceu a salvação para o seu povo e obteve posse real das bênçãos da salvação. No conselho da redenção, Ele se encarregou de dar ao Seu povo posse de todas estas bênçãos, e Ele o faz através da operação do Espírito Santo, que recebe de Cristo todas as coisas e no-las dá. Não devemos conceber atomisticamente* a realização subjetiva da união mística na igreja,como se fosse efetuada levando ora este, ora aquele pecador individual a Cristo. Ela deve ser vista do ponto de vista de Cristo. Objetivamente, a igreja toda está nele, e nasceu dele como a Cabeça. Não é um mecanismo no qual as partes precedem o todo, mas um organismo no qual o todo é anterior às partes. As partes provém de Cristo por intermédio da obra regeneradora do Espírito Santo, e então continuam em vívida relação com Ele. Jesus chama a atenção para esta relação orgânica quando diz: “Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer”. Jo 15.5. Em vista do que foi dito, é mais que evidente que não é correto dizer que a união mística é fruto da confiante aceitação de Cristo, como se a fé não fosse uma das bênçãos da aliança que fluem para nós, provindas da plenitude de Cristo, mas uma condição que cabe ao homem satisfazer, em parte ou totalmente, com suas próprias forças, a fim de entrar numa viva relação com Jesus Cristo. A fé é, acima de tudo, um dom de Deus e, como tal, é uma parte dos tesouros ocultos em Cristo. Ela nos habilita a apropriar-nos da nossa parte daquilo que nos é dado em Cristo, e a entrar, de maneira crescente, no gozo consciente da bendita união com Cristo, que é a fonte de todas as nossas riquezas espirituais.

Pode-se definir a união mística como a união íntima, vital e espiritual entre Cristo e o Seu povo, em virtude da qual Ele é a fonte da sua vida e poder, da sua bendita ventura e salvação.

Que se trata de uma união muito íntima, vê-se fartamente nas figuras empregadas na Escritura para descreve-la. É uma união que lembra a da videira e seus ramos, Jo 15.5, a do alicerce e o edifício construído sobre ele, I Pe 2.4, 5, a de esposo e esposa, Ef 5.23-32, e a de cabeça e os membros do corpo, Ef 4.15, 16. E mesmo essas figuras não conseguem dar plena expressão à realidade. É uma união que excede ao entendimento. Diz o dr. Hodge: “O designativo técnico desta união na terminologia teológica é ‘mística’, porque transcende, e muito, todas as analogias das relações terrenais, na intimidade da sua conexão, no poder transformador da sua influência, e na excelência das suas conseqüências”.[1]

Se o exame deste aspecto da união mística for feito em primeiro lugar na ordo salutis, deve-se ter em mente (a) que, ao que parece, é desejável considera-la no contexto daquilo que a precede, idealmente no conselho da redenção, e objetivamente na obra de Cristo; e (b) que a ordem é lógica, e não cronológica. Visto que o crente é uma “nova criatura” (2 Co 5.17), ou “justificado” (At 13.39) somente em Cristo, a união com Ele precede logicamente a regeneração e a justificação pela fé, ao passo que, não obstante, cronologicamente, o momento em que somos unidos a Cristo é também o momento da nossa regeneração e justificação.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 445)



* “Atomisticamente.” Aplicação do conceito filosófico do atomismo, de que o universo se formou pela agregação dos átomos. Nota do tradutor.
[1] Outlines of Thology, p. 483.