segunda-feira, 28 de abril de 2014

Operações Gerais e Especiais do Espírito Santo

A Escritura mostra claramente que nem todas as operações do Espírito santo são parte integrante da obra salvadora de Jesus Cristo. Exatamente como o Filho de Deus não é somente o Mediador da redenção, mas também é o Mediador da criação, assim o Espírito Santo, como nos é apresentado na Escritura, opera não somente na obra da redenção, mas também na obra da criação. Naturalmente, a soteriologia está interessada unicamente na Sua obra redentora, mas, para compreende-la bem, é altamente desejável dar alguma atenção às Suas operações mais gerais.

1. OPERAÇÕES GERAIS DO ESPÍRITO SANTO. É bem sabido o fato de que as distinções trinitárias não estão reveladas tão claramente no Velho Testamento, nem sempre denota uma pessoa, e mesmo nos casos em que a idéia da pessoa está claramente presente, nem sempre indica a terceira pessoa da Trindade Santa. Às vezes é empregada figuradamente para denotar o sopro de Deus, Jó 32.8; Sl 33.6, e, nalguns casos, é simplesmente um sinônimo de “Deus”, Sl 139.7, 8; Is 40.13. É muito comum servir a ela para designar a força da vida, o princípio que faz viver as criaturas, e isso de maneira única, peculiar a Deus. O espírito que permanece nas criaturas e do qual a sua própria existência depende, provém de Deus e as liga a Deus, Jó 32.8; 33.4; 34.14, 15; Sl 104.29; Is 42.5. Deus é chamado “Deus (ou “Pai”) dos espíritos de toda carne”, Nm 16.22; 27.16; Hb 12.9. Nalguns casos destes é evidente que o Espírito de Deus não é um simples poder, mas uma pessoa. Já a primeira passagem em que o Espírito é mencionado, Gn 1.2, chama a atenção para esta função de comunicar vida, e este fato é particularizado com relação à criação do homem, Gn 2.7. O Espírito de Deus gera vida e leva a completar-se a obra criadora de Deus, Jó 33.4; 34.14, 45; Sl 104.29, 30; Is 42.5. No Velho Testamento é evidente que a origem da vida, sua manutenção e seu desenvolvimento dependem da operação do Espírito Santo. A retirada do Espírito significa morte.

Extraordinárias demonstrações de poder, proezas de força e audácia, também são reportadas ao Espírito de Deus. Os juízes que Deus levantava para a libertação de Israel eram evidentemente, homens de considerável capacidade e de coragem e força extraordinárias, mas o verdadeiro segredo das sua realizações estava, não neles, mas no poder sobrenatural que lhes sobrevinha. A Escritura diz repetidamente que “o Espírito do Senhor veio (poderosamente) sobre” eles, Jz 3.10; 6.34; 11.20; 13.25; 14.6, 19; 15.14. Foi o Espírito de Deus que os capacitou a acionar a libertação do povo. Há também claro reconhecimento da operação do Espírito Santo na esfera intelectual. Eliú fala disto quando diz: “Na verdade, há um espírito no homem, e o sopro do Todo-poderoso o faz entendido”, Jó 32.8. O discernimento intelectual, ou a capacidade de compreender os problemas da vida, atribui-se a uma influência iluminadora do Espírito Santo. O aprimoramento da habilidade artística também é atribuída ao Espírito do Senhor, Êx 28.3; 31.3; 35.30 e segtes. Certos homens, caracterizados pelos revestimentos de dotes especiais, foram qualificados para a obra mais fina que devia ser realizada quanto à construção do tabernáculo e aos adornos das vestes sacerdotais; cf. também Ne 9.20. O Espírito do Senhor é igualmente descrito como qualificando homens para diversos ofícios. O Espírito foi posto, e repousou, sobre os setenta que foram nomeados para assistir Moisés no trabalho de governar e julgar o povo de Israel, Nm 11.17, 25, 26. Estes também receberam temporariamente o Espírito de profecia, como atestado da sua vocação. Josué foi escolhido como sucessor de Moisés porque tinha o Espírito do Senhor, Nm 27.18. Quando Saul e Davi foram ungidos reis, o Espírito do Senhor veio sobre eles para qualifica-los para a sua importante missão, 1 Sm 10.6, 10; 16.13, 14. Finalmente, vê-se claramente que o Espírito de Deus também operou nos profetas como Espírito de revelação. Diz Davi: “O Espírito do Senhor fala por meu intermédio, e a sua palavra está na minha língua”, 2 Sm 23.2. Em Ne 9.30, Neemias testifica: “No entanto os aturaste por muitos anos, e testemunhaste contra eles pelo teu Espírito, por intermédio dos teus profetas; porém eles não deram ouvidos”. Ezequiel fala de uma visão concedida pelo Espírito de Jeová, 11.24, e em Zc 7.12 lemos: “Sim, fizeram os seus corações duros como diamante, para que não ouvissem a lei nem as palavras que o Senhor dos Exércitos enviara pelo seu Espírito mediante os profetas que nos precederam”. Cf. também 1 Rs 22.24; 1 Pe 1.11; 2 Pe 1.21.

(Tologia Sistemática – Louis Berkhof.  421)

RELAÇÃO ENTRE AS OPERAÇÕES GERAIS E AS OPERAÇÕES ESPECIAIS DO ESPÍRITO SANTO

 Há certa semelhança entre as operações gerais e as operações especiais do Espírito Santo. Com as Suas operações gerais, Ele origina, mantém, fortalece e dirige toda sorte de vida – orgânica, moral e intelectual. Ele o faz de diferentes maneiras e em harmonia com os objetos envolvidos. Algo similar se pode dizer da Sua operação especial. Também na esfera redentora Ele origina a nova vida, capacita-a a frutificar, dirige-a em seu desenvolvimento e a leva ao seu destino. Mas, a respeito da sua similaridade, há, não obstante, uma diferença essencial entre as operações do Espírito Santo na esfera da criação e Suas operações na esfera da redenção ou re-criação. Naquelas, Ele origina, mantém, desenvolve e guia a vida da criação natural, restringe no presente a influência deteriorante e devastadora do pecado nas vidas dos homens e da sociedade, e capacita os homens a manterem certa ordem e decoro em sua vida comunitária, a fazer o que é exteriormente bom e reto em suas relações uns com os outros e a desenvolver os talentos de que foram dotados na criação. Nestas, por outro lado, Ele origina, mantém, desenvolve e guia nova vida, que nasce do Alto, é nutrida do Alto e será aperfeiçoada no Alto – vida celestial, em princípio, embora vivida na terra. Com a sua operação especial, o Espírito Santo sobrepuja e destrói o poder do pecado, renova o homem à imagem de Deus e o capacita a prestar obediência espiritual a Deus, a ser sal da terra, a luz do mundo e um fermento espiritual em todas as esferas da vida. Se bem que a obra que o Espírito Santo realiza na esfera da criação tem, sem dúvida, certa significação independente, todavia, está subordinada à obra de redenção. A vida completa dos eleitos, incluindo a que precede ao seu novo nascimento, é determinada e governada por Deus, com vistas ao seu destino final. Sua vida natural é ordenada de modo tal que, quando renovada, corresponde ao propósito de Deus.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 421)

O Espírito Santo Como o Despenseiro da Graça Divina

Assim como a aliança na qual Deus fez provisão para a salvação dos pecadores é chamada aliança da graça, e como se descreve o Mediador da Aliança como “cheio de graça” de modos que da Sua plenitude podemos receber “graça sobre graça”, Jo 1.16, 17, assim também o Espírito Santo é chamado “Espírito da graça”, visto que Ele toma a “graça de Cristo” e nô-la confere,

1. O USO BÍBLICO DO TERMO “GRAÇA”. Nem sempre a palavra “graça” é empregada no mesmo sentido na Escritura, mas apresenta certa variedade de significados. Temos no Velho Testamento a palavra chen (adj. Chanun) da raiz chanan. O substantivo pode significar graciosidade (graça, neste sentido) ou beleza, Pv 22.11; 31.30, porém mais geralmente significa favor ou boa vontade. Achar favor aos olhos de Deus ou do homem é expressão que se encontra repetidamente no Velho Testamento. O favor assim obtido leva consigo a concessão de favores ou bênçãos. Quer dizer que a graça não é uma qualidade abstrata, mas é um princípio ativo e dinâmico, que se manifesta em atos benevolentes, Gn 6.8; 19.19; 33.15; Ex 33.12; 34.9; 1 Sm 1.18; 27.5; Et 2.7. A idéia fundamental é a de que as bênçãos graciosamente concedidas são dadas livremente (gratuitamente), e não em consideração a qualquer reivindicação ou mérito. A palavra neotestamentária charis, de chairein, “regozijar-se”, denota primeiramente uma aparência externa agradável – “encanto”, “agrado”, “aceitabilidade”, e é este o seu sentido em Lc 4.22; Cl 4.6. Contudo, um sentido mais proeminente é favor ou boa vontade, simpatia, Lc 1.30; 2.40, 52; At 2.47; 7.46; 24.27; 25.9. Pode significar a bondade ou benevolência de nosso Senhor, 2 Co 8.9, ou o favor demonstrado ou concedido por Deus, 2 Co 9.8 (que se refere a bênçãos materiais); 1 Pe 5.10. Acresce que a palavra expressa a emoção despertada no coração do favorecido e, assim, adquire o sentido de gratidão, Lc 4.22; 1 Co 10.30; 15.57; 2 Co 2.14; 8.16; 1 Tim 1.12. Contudo na maioria das passagens em que a palavra charis é utilizada no Novo Testamento, ela significa a imerecida operação de Deus no coração do homem, operação efetuada mediante o Espírito Santo. Embora às vezes falemos da graça como uma qualidade inerente, é, na realidade a comunicação ativa das bênçãos divinas pela ação interior do Espírito Santo, provenientes daquele que é “cheio de graça e de verdade”, Rm 3.24; 5.2, 15, 17, 20; 6.1; 1 Co 1.4; 2 Co 6.1; 8.9; Ef 1.7; 2.5, 8; 3.7; 1 Pe 3.7; 5.12.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 422)

A GRAÇA DE DEUS NA OBRA DE REDENÇÃO

A discussão da graça de Deus no contexto da obra de redenção requer igualmente diversas distinções, que devemos ter em mente.

a. Em primeiro lugar, a graça é um atributo de Deus, uma das perfeições divinas. É o livre, soberano e imerecido favor ou amor de Deus ao homem, no estado de pecado e culpa em que este se encontra, favor que se manifesta no perdão do pecado e no livramento da sua pena. A graça está relacionada com a misericórdia de Deus, em distinção da Sua justiça. Esta é a graça redentora no sentido mais fundamental da expressão. É a causa última do propósito eletivo de Deus, da justificação do pecador e da sua renovação espiritual; e é a prolífica fonte de todas as bênçãos espirituais e eternas.

b. Em segundo lugar, o termo “graça” é empregado como um designativo da provisão objetiva que Deus fez em Cristo para a salvação do homem. Cristo, como o Mediador, é a encarnação viva da graça de Deus. “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade”, Jô 1.14. Paulo tem em mente a manifestação de Cristo, quando diz: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens”, Tt 2.11. Mas o termo não é aplicado somente ao que Cristo é, mas também ao que Ele mereceu para os pecadores. Quando Paulo fala repetidamente, nas saudações finais das suas epístolas, da “graça de nosso Senhor Jesus Cristo”, ele tem em mente a graça da qual Cristo é a causa meritória. Diz João: “a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo”, Jo 1.17. Cf. também Ef 2.7.

c. Em terceiro lugar, a palavra “graça” é empregada para designar o favor de Deus como é demonstrado na aplicação da obra de redenção pelo Espírito Santo. É aplicado ao perdão que recebemos na justificação, um perdão dado gratuitamente por Deus, Rm 3.24; 5.2, 21; Tt 3.15. Mas, em acréscimo a isso, também é um nome compreensivo, abrangendo todos os dons da graça de Deus, as bênçãos da salvação e as graças espirituais que são acionadas nos corações e vidas dos crentes pela operação do Espírito Santo, At 11.23; 18.27; Rm 5.17; 1 Co 15.10; 2 Co 9.14; Ef 4.7; Tg 4.5, 6; 1 Pe 3.7. Além disso, há claras indicações de que não se trata apenas de uma qualidade passiva, mas também de uma força ativa, uma energia, uma coisa que trabalha, 1 Co 15.10; 2 Co 12,9; 2 Tm 2.1. Neste sentido da palavra, ela é como um sinônimo do Espírito Santo, de maneira que há pouca diferença entre as expressões “cheio do Espírito Santo” e “cheio de graça e poder”, At 6.5 e 8. O Espírito Santo é chamado “Espírito da graça”, Hb 10.29. É especialmente com relação aos ensinamentos da Escritura a respeito da aplicação da graça de Deus ao pecador pelo Espírito Santo, que a doutrina da graça se desenvolveu na igreja.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 423)

A DOUTRINA DA GRAÇA NA HISTÓRIA DA IGREJA

Os ensinos da Escritura acerca da graça de Deus ressaltam o fato de que Deus distribui Suas bênçãos aos homens de maneira livre e soberana, e não em consideração a algum mérito dos homens; que os homens devem todas as bênçãos da vida a um Deus, perdoador e longânimo; e especialmente que todas as bênçãos da obra de salvação são dadas gratuitamente por Deus, e de maneira nenhuma são determinadas pelos supostos méritos dos homens. Paulo o expressa claramente com as seguintes palavras: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus, não de obras, para que ninguém se glorie”, Ef 2.8, 9. Ele dá forte ênfase ao fato de que a salvação não é pelas obras, Rm 3.20-28; 4.16; Gl 2.16.

Esta doutrina não ficou livre de contestação. Nalgumas dos chamados pais da igreja primitiva, particularmente da igreja oriental, já encontramos um estilo moralista que não se harmoniza com a ênfase paulina. A tendência que se tornou patente naquela parte da igreja, finalmente culminou no pelagianismo. A concepção pelagiana da graça era bastante incomum. Segundo Wiggers, para Pelágio a graça abrange: (a) “O poder de fazer o bem (possibilitas boni) e, daí, especialmente o livre arbítrio propriamente dito.” (b) “A revelação, a lei e o exemplo de Cristo, que tornam a prática da virtude mais fácil para o homem.” (c) “A nossa capacitação, pela nossa própria vontade, de abster-nos de pecar, e dar-nos Deus o auxílio da Sua lei e dos Seus mandamentos, e Seu perdão prévio dos pecados daqueles que voltam para Ele.” (d) “Influências sobrenaturais sobre o cristão, pelas quais o entendimento recebe a iluminação e a prática da virtude se lhe torna mais fácil.”[1] Ele não reconhecia nenhuma operação direta do Espírito de Deus na vontade do homem, mas somente uma operação indireta na vontade, mediante a consciência iluminada. Em seu conceito, a operação da graça de Deus era primordialmente, embora não exclusivamente, externa e natural. Em oposição ao conceito pelagiano, o de Agostinho é freqüentemente denominado “teologia da graça”. Conquanto Agostinho admitisse que a palavra “graça” podia ser utilizada num sentido mais amplo (graça natural), e que mesmo no estado de integridade era a graça de Deus que possibilitava a Adão reter a sua retidão, a sua maior ênfase é sempre sobre a graça como dom de Deus ao homem decaído, graça que se manifesta no perdão do pecado e na renovação e santificação da natureza humana. Em vista da depravação total do homem, ele considera esta graça como absolutamente necessária para a salvação. Ela é acionada no homem pela operação do Espírito Santo, que habita e age nos eleitos e constitui o princípio de todas as bênçãos da salvação. Ele distinguia entre a graça operante ou proveniente, e a graça cooperante e subseqüente. A primeira habilita a vontade a escolher o bem, e a segunda coopera com a vontade já habilitada, para a prática do bem. Em sua luta com o semipelagianismo, Agostinho salientava o caráter inteiramente gratuito e irresistível da graça de Deus.

Nos conflitos subseqüentes, a doutrina agostiniana da graça foi vitoriosa apenas em parte. Seeberg expressa-se como segue: “Assim, a doutrina da ‘graça somente’ saiu vitoriosa; mas a doutrina agostiniana da predestinação foi abandonada. A graça irresistível da predestinação foi expulsa de campo pela graça sacramental do batismo”.[2] Durante a Idade Média, os escolásticos deram considerável atenção ao tema da graça, mas nem sempre concordavam quanto aos pormenores da doutrina. Uns se aproximaram da concepção agostiniana da graça, outros da concepção semipelagiana. Em geral se pode dizer que eles entendiam que a graça é mediada pelos sacramentos, e procuravam combinar com a doutrina da graça uma doutrina do mérito que comprometia seriamente aquela. A ênfase não era à graça como o favor de Deus demonstrado aos pecadores, mas à graça como uma qualidade da alma, que tanto podia ser considerada como incriada (i.e., como o Espírito Santo), como em-criada, ou produzida nos corações dos homens pelo Espírito Santo. A graça infusa é básica para o desenvolvimento das virtudes cristãs, e capacita o homem a adquirir méritos para com Deus, a merecer maior graça, embora não possa merecer a graça da perseverança. Esta só se pode obter como um livre dom de Deus. Diferentemente de Agostinho, os escolásticos não mantinham a conexão lógica entre a doutrina da graça e a doutrina da predestinação.

Os Reformadores retornaram à concepção agostiniana da graça, mas evitaram o seu sacramentalismo. Eles passaram a dar de novo ênfase à graça como favor imerecido de Deus para com os pecadores, e a descreviam de modo a excluir todo mérito da parte do pecador. Diz Smeaton: “O termo graça, que, na concepção agostiniana, sugeria o exercício interno do amor, despertado pelas operações do Espírito Santo (Rm 5.5), e que na teologia escolástica viera a indicar uma qualidade da alma, ou os dotes interiores e os hábitos infusos da fé, do amor e da esperança, agora veio a ser tomado no sentido mais escriturístico e mais amplo, como o livre, o eficaz favor que se acha na mente divina”.[3] Conquanto os Reformadores empregassem o termo graça em conexão com a justificação, noutros contextos usavam com freqüência a frase “a obra do Espírito Santo” em lugar do termo graça. Embora todos eles dessem ênfase à graça no sentido da operação interior e salvífica do Espírito Santo, particularmente Calvino desenvolveu a idéia da graça comum, isto é, uma graça que, embora sendo expressão do favor de Deus, não tem efeito salvífico. De acordo com o esplêndido estudo histórico-dogmático do dr. H. Kuyper sobre Calvino sobre a Graça Comum,[4] ele ainda distinguia três classes de graça comum, quais sejam, a graça comum universal, a graça comum geral e a graça comum pactual. Os arminianos afastaram-se da doutrina da Reforma sobre este ponto. Segundo eles, Deus dá a graça suficiente (comum) a todos os homens e, com isso, capacita-os a arrepender-se e crer. Se a vontade humana cooperar com o Espírito Santo e o homem realmente se arrepender e crer, Deus, em acréscimo, conferirá ao homem a graça da obediência evangélica e a graça da perseverança. Assim, este conceito torna a obra da graça dependente do consentimento da vontade do homem. O que se chama graça irresistível não existe. Diz Smeaton na obra já citada: “Afirmava-se que todo ser humano pode obedecer ou resistir; que a causa da conversão não é o Espírito Santo juntamente com a vontade humana concorrente ou cooperante; e que esta é a causa imediata da conversão”.[5] Amyraldus, da Escola de Saumur, na verdade não melhorou a posição arminiana com a sua suposição, com relação ao decreto geral de Deus, de que o pecador, embora sem qualquer capacidade moral, tem, todavia, a capacidade natural para crer – uma desafortunada distinção, que também foi introduzida na Nova Inglaterra por Edwards, Bellamy e Fuller. Pajon, discípulo de Amyraldus, negava a necessidade da obra do Espírito Santo na iluminação interna dos pecadores para a sua conversão salvadora. A única coisa que ele considerava necessária era que o entendimento, que tem em si mesmo idéias claras suficientes, deve ser atingido pela luz da revelação externa. O bispo Warburton, em sua obra sobre A Doutrina da Graça, ou Ofício e Operações do Espírito Santo (The Doctrine of Grace, or the Office and Operations of the Holy Spirit), não toma conhecimento de qualquer graça salvadora, na acepção geralmente reconhecida da expressão, mas limita a palavra “graça” às operações extraordinárias do Espírito na era apostólica. E Junckheim, em sua importante obra,negava o caráter sobrenatural da obra de Deus na conversão do pecador, e afirmava que o poder moral da palavra efetua tudo. O “Avivamento Metodista” na Inglaterra e o “Grande Despertamento” ocorrido nos Estados Unidos trouxeram consigo a restauração da doutrina da graça salvadora, embora nalguns casos mais ou menos matizada de arminianismo. Para Schleiermacher, o problema da culpa do pecado era praticamente inexistente, desde que ele negava a existência da culpa. E, conseqüentemente, ele pouco ou nada sabe da graça salvadora de Deus. Diz Mackintosh: “Esta verdade bíblica central (da misericórdia divina para com os pecadores), Schleiemacher quase sempre deixa passar em silêncio, ou menciona apenas perfuntoriamente, o que mostra quão pouco ele a compreende”.[6] A doutrina da graça divina também fica necessariamente obscurecida na teologia de Albrecht Ritschl. E se pode dizer que é característico de toda a teologia “liberal” moderna, com sua ênfase na bondade do homem, seu extremo distanciamento da necessidade da graça salvadora de Deus. A palavra “graça” aos poucos foi desaparecendo da palavra escrita e falada de muitos teólogos, e muita gente do povo dos nossos dias não liga nenhum outro sentido ao termo, além do de graciosidade. Mesmo Otto chama a atenção para isto, em sua obra sobre A idéia do Santo (The Idea of the Holy), dizendo que o povo não percebe o sentido mais profundo da palavra.[7] A teologia da crise merece crédito por ter salientado de novo a necessidade da graça divina, com o resultado que a palavra uma vez mais está entrando em uso.

QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. Sobre quais elementos da ordo salutis recai a ênfase nos três primeiros séculos? 2. em que estes séculos revelam um desvio rumo ao moralismo e ao cerimonialismo? 3. Como se entendia a doutrina da justificação? 4. Como a concebia Agostinho? 5. Qual era o seu conceito de fé? 6. Quantas e quais classes de graça ele distinguia? 7. Em seu sistema, a graça excluía todo mérito? 8. Ele concebia a graça salvadora como passível de perda? 9. Que fatores favoreceram o desenvolvimento da doutrina das boas obras? 10. Como os escolásticos apresentavam a doutrina da justificação? 11. Como andou a ordo salutis nas mãos dos antinomianos? 12. Como os neonomianos racionalistas e pietistas a conceberam? 13. Quais outras operações, além das operações salvadoras, são atribuídas ao Espírito Santo na Escritura? 14. Quais os diferentes sentidos da palavra “graça” na Escritura? 15. Que é que ela designa, em conexão com a obra de redenção? 16. Qual a relação entre as doutrinas do livre arbítrio e da graça na história?

BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm. III, p. 551-690; Kuyper, Dict. Dogm., De Salute, p. 15-20; McPherson, Chr. Dogm. P. 367-371; Kaftan, Dogmatik, p. 525-532, 651-661; Warfield, The Plan os Salvation; Seeberg, Heilsordnung (artigo na Realecyclopaedie de Hauck); Pieper, Christl. Dogm. II, p. 473-498; H. Schmid, Doct. Theol., p. 413-416; K. Dijk, Heilsord (artigo na Chr. Enc.); Pope, Chr. Theol. II, p. 348-367; Neil, Grace (artigo em A Protestant Dictionary); Easton, Grace (artigo na Intern. Standard Bible Enc.); Smeaton, The Doctrine of the Holy Spirit, p. 1-99, 291-414; Buchanan, The Doctrine of Justification, p. 339-364; Moffatt, Grace in the New Testament; Bryan, W. S., An Inquiry into the Need of the Grace of God.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 426)



[1] . Augustinism and Pelagianism, p, 179-183.
[2] Histoy of Doctrine I, p.382.
[3] The Doctrine of the Holy Spirit, p. 346.
[4] Calvin on Common Grace, p. 179 e segtes.
[5] P. 357.
[6] Types of Modern Theology, p. 96.
[7] P. 32 e segtes., 145.