terça-feira, 15 de outubro de 2013

CONVERSÃO

Da discussão da regeneração e da vocação eficaz é natural a transição para a da conversão. Pela operação do Espírito, aquelas redundam nesta. A conversão pode ser uma crise agudamente marcante, mas também pode vir na forma de um processo gradual. Na psicologia da religião, geralmente a regeneração e a conversão são identificadas. Tudo isso indica a estreita relação entre ambas.

A. Os Termos Bíblicos Para Conversão.


1. VOCÁBULOS DO VELHO TESTAMENTO. O Velho Testamento emprega especialmente duas palavras para a conversão, a saber:

a. Nacham, que serve para expressar um profundo sentimento, ou de tristeza (no niphal) ou de alívio (no piel). No niphal significa arrepender-se, e este arrependimento com freqüência é acompanhado por uma mudança de plano ou de ação, ao passo que no piel significa consolar-se. Como um designativo de arrependimento – e é este o sentido que nos interessa aqui – é empregado não somente com referência ao homem, mas também a Deus, Gn 6.6, 7; Ex 32.14; Jz 2.18; 1 Sm 15.11.

b. Shubh, que é a palavra mais comum para conversão, significa volver, voltar-se, virar e retornar. Muitas vezes foi utilizado num sentido literal, tanto com relação a Deus como com relação ao homem, mas logo adquiriu uma significação religiosa e ética. Este sentido é mais proeminente nos profetas, onde se refere ao retorno de Israel ao Senhor, depois de ter-se apartado dele. A palavra mostra claramente que aquilo que o Velho Testamento denomina conversão é uma volta para Deus, de quem o pecado separou o homem. Este é um importante elemento da conversão. Acha expressão nas palavras do filho pródigo; “Levantar-me-ei e irei ter com meu pai”, ou, na versão utilizada pelo Autor: “Voltarei, e irei a meu pai” (Lc 15.18).*

2. VOCÁBULOS DO NOVO TESTAMENTO. Há particularmente três palavras que requerem consideração aqui:

a. Metanoia (forma verbal, metanoeo). Esta é a palavra mais comum para conversão no Novo Testamento, e também é o mais fundamental dos termos empregados. A palavra é composta de meta e nous, que por sua vez é relacionado com o verbo ginosko (latim noscere; português, conhecer), tudo referente à vida consciente do homem. A tradução comum na Bíblia, “arrependimento”, não faz plena justiça ao original, visto que dá indevida proeminência ao elemento emocional. Trench assinala que no grego clássico a palavra significa: (1) conhecer depois, pós-conhecimento; (2) mudar a mente com resultado deste pós-conhecimento; (3) em conseqüência desta mudança da mente, lamentar o curso seguido; e (4) uma mudança da conduta quanto ao futuro, resultante de todos os fatores anteriores. Contudo, podia indicar uma mudança para pior, bem como para melhor, e não incluía necessariamente uma resipiscentia – um voltar a ser sábio. No Novo Testamento, o seu sentido é aprofundado, e denota primariamente uma mudança do entendimento, passando a ter uma visão mais sábia do passado, incluindo o pesar pelo mal praticado e levando a uma mudança da vida para melhor. Aqui o elemento de resipiscentia está presente. Em sua obra sobre O Grande Significado de Metanoia (The Great Meaning of Metanoia), Walden chega à conclusão de que o termo veicula a idéia de “uma mudança geral da mente que se torna, em se desenvolvimento mais completo, uma regeneração intelectual e moral”.[1] Embora sustentando que a palavra denota primariamente uma mudança da mente, não devemos perder de vista que os seu significado não s limita à consciência intelectual, teórica, mas também inclui a esfera moral, a consciência propriamente dita. Tanto a mente como a consciência estão corrompidas, Tt. 1.15, e quando a nous de uma pessoa é mudada, ela não só recebe novo conhecimento, mas também a direção da sua vida consciente, a sua qualidade moral, é mudada também. Para particularizar mais, a mudança indicada pela palavra metanoia tem que ver. (1) com a vida intelectual, 2 Tm 2.25, para um melhor conhecimento de Deus e da Sua verdade, e uma salvadora aceitação desta (idêntica à ação da fé); (2) com a vida volitiva consciente, At 8.22, para um voltar-se para Deus que esta mudança é acompanhada por uma tristeza segundo Deus, 2 Co 7.10, e abre novos campos de fruição para o pecador. Em todos estes aspectos metanoia inclui uma oposição consciente à anterior. Esta oposição constitui um elemento essencial seu e, portanto, merece cuidadosa atenção. Converte-se não é apenas passar de uma direção consciente para outra, mas fazê-lo com uma aversão claramente percebida para com a direção anterior. Noutras palavras, metanoia tem, não somente um lado positivo, mas também um lado negativo: olha retrospectivamente e também prospectivamente. A pessoa convertida torna-se consciente da sua ignorância e do seu erro, da sua obstinação e da sua loucura. Sua conversão inclui a fé e o arrependimento. É triste dizer, mas a igreja foi aos poucos perdendo de vista o sentido original de metanoia. Na teologia latina, Lactânio a traduziu “resipiscentista”, um voltar a ser sábio, como se a palavra derivasse de meta e anoia, e denotasse um retorno da loucura ou da insensatez. Contudo, a maioria dos escritores latinos nos preferiu traduzi-la por “poenitentia”, o vocábulo que denota a tristeza e o pesar que se seguem quando uma pessoa para a Vulgata como tradução de metanoia, e sob, a influência da Vulgata, os tradutores ingleses traduziram a palavra grega por “repentance” (arrependimento), dando assim, ênfase ao elemento emocional e fazendo de metanoia um termo equivalente a metameleia. Nalguns casos, a deterioração foi mais longe ainda. A Igreja Católica Romana exteriorizou a idéia de arrependimento em seu sacramento da penitência, de modo que o termo metaonoeite do Testamento Grego (Mt 3.2) tornou-se poenitentiam agite – “fazei penitência”, na Versão Latina.

b. Epistrophe (forma verbal, epistrepho). Esta palavra é a segunda em importância em seguida a metanoia. Enquanto na Septuaginta metanoia é uma das traduções de nacham, as palavras epistrophe servem para traduzir as palavras hebraicas teshubhah e shubh. São usadas constantemente no sentido de retornar ou voltar. As palavras gregas devem ser lidas à luz do hebraico, para extrair-se o importante ponto, que a virada indicada é em realidade um retorno. No Novo Testamento, o substantivo epistrophe é usado só uma vez, em At 15.3, ao passo que o verbo ocorre várias vezes. Tem significação um tanto mais ampla que metanoeo, e realmente indica ao ato final da conversão. Denota, não apenas uma mudança da nous (da mente), mas acentua o fato de que uma nova relação é estabelecida, que a vida ativa é levada a mover-se noutra direção. É preciso ter isto em mente na interpretação de At 3.19, onde os dois termos são usados um ao lado do outro. Às vezes metanoeo contém unicamente a idéia de arrependimento enquanto que epistrepho sempre inclui o elemento fé. Metanoeo e pisteuein podem ser usados um ao lado do outro; não assim com epistrepho e pisteuein.

c. Metameleia (forma verbal, metamelomi). Somente a forma verbal é utilizada no Novo Testamento, e significa literalmente vir a afligir-se depois. É uma das traduções do hebraico nacham na Septuaginta. No Novo Testamento acha-se somente cinco vezes, a saber, em Mt 21.29, 32; 27, 3; 2 Co 7.10; Hb 7.21. É evidente, graças a estas passagens, que a palavra faz sobressair o elemento de arrependimento, embora não seja necessariamente o arrependimento verdadeiro. Nele o elemento negativo, retrospectivo e emocional está acima de tudo mais, enquanto que metanoeo também inclui um elemento volitivo e denota uma enérgica virada da vontade. Enquanto metanoeo ás vezes é usado no imperativo, nunca acontece isso com metamelomai. Os sentimentos não se deixam comandar. Esta palavra corresponde mais de perto ao termo latino poenitentia do que a palavra metanoeo.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 480)



* No grego: anastas poreusomai, levantando-me, irei. Nota do tradutor.
[1] P. 107.

A Idéia de Conversão. Definição

A doutrina da conversão, naturalmente, como toda as outras doutrinas cristã, baseia-se na Escritura, sobre esta base deve ser aceita. Desde que a conversão é uma experiência consciente ocorrida nas vidas de muitos, o testemunho da experiência pode ser acrescentado ao da Palavra de Deus, mas esse testemunho, por mais valioso que seja, nada acrescenta à segura veracidade da doutrina ensinada na Palavra de Deus. Podemos ser gratos ao fato de que nos últimos anos a psicologia da religião deu considerável atenção ao fato da conversão, mas sempre se deve ter em mente que, embota tenha trazido à nossa atenção alguns fato interessantes, pouco ou nada fez para explicar a conversão como um fenômeno religioso. A doutrina escriturística da conversão baseia-se, não somente nas passagens que contêm um ou mais dos termos mencionados na seção anterior, mas também em muitas outras nas quais o fenômeno da conversão é descrito ou apresentado concretamente com exemples vivos. Nem sempre a Bíblia fala de conversão no mesmo sentido. Podemos distinguir os seguintes sentidos:

1. CONVERSÕES NACIONAIS. Nos dias de Moisés, de Josué e dos juízes, repetidamente o povo de Israel dava as costas a Jeová e, depois de experimentar o desprazer de Deus, arrependia-se dos seus pecados e retornava ao Senhor; houve uma conversão de Jonas, os ninivitas se arrependeram dos seus pecados e foram poupados pelo Senhor, Jn 3.10. Estas conversões eram simplesmente da natureza de reformas morais. Podem ter sido acompanhadas de algumas conversões religiosas reais de indivíduos, mas ficavam muito aquém da verdadeira conversão de todos os que pertenciam à nação. Em regra, eram muito superficiais. Apareciam sob a liderança de governantes piedosos, e quando eram substituídos por homens ímpios, o povo logo recaía em seus velhos hábitos.

2. CONVERSÕES TEMPORÁRIAS. A Bíblia se refere também a conversões de indivíduos que não representam nenhuma mudança do coração e, portanto, só têm significação passageira. Na parábola do Semeador Jesus fala dos que ouvem a palavra e logo a recebem com alegria, mas não têm raízes em si mesmos e, portanto, duram pouco. Quando lhes sobrevêm as tribulações, provações e perseguições, depressa se ofendem e caem. Mt 13.20, 21. Paulo faz menção de Hiemeneu e Alexandre, que “vieram a naufragar na fé”, 1 Tm 1.19, 20. Cf. também 2 Tm 2.17, 18. E em 2 Tm 4.10 ele se refere a Demas que o abandonara porque o amor ao presente século o dominara. E o escritor de Hebreus fala de alguns que caíram, sendo que eles “uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro”, Hb 6.4-6. Finalmente, a respeito de alguns que tinham voltado as costas aos fiéis, diz João: “Eles saíram do nosso meio, entretanto não eram dos nossos; porque, se tivessem sido nossos, teriam permanecido conosco”, 1 Jo 2.19. Tais conversões temporárias podem, por algum tempo, ter a aparência de conversões verdadeiras.

3. CONVERSÃO VERDADEIRA (CONVERSIO ACTUALIS PRIMA). A verdadeira conversão nasce da tristeza segundo Deus, e redunda numa vida de devoção a Deus, 2 Co 7.10. É uma mudança que tem suas raízes na obra de regeneração, e que é efetuada na vida consciente do pecador pelo Espírito de Deus; mudança de pensamentos e opiniões, de desejos e volições, que envolve a convicção de que a direção anterior da vida era insensata e errônea, e altera todo o curso da vida. Há dois lados nesta conversão, um ativo e o outro passivo; o primeiro sendo o ato de Deus pelo qual Ele muda o curso consciente da vida do homem, e o último, o resultado desta ação como se vê na mudança que o homem faz no curso da sua vida e em seu voltar-se para Deus. Conseqüentemente, pode-se dar uma dupla definição de conversão: (a) A conversão ativa é o ato de Deus pelo qual Ele faz com que o pecador regenerado, em sua vida consciente, se volte para Ele com arrependimento e fé. (b) A conversão passiva é o resultante ato consciente do pecador pelo qual ele, pela graça de Deus, volta-se para Deus com arrependimento e fé. Esta conversão é a conversão que nos interessa primordialmente na teologia. A Palavra de Deus contém vários exemplares notáveis dela, como, por exemplo, as conversões de Naamã, 2 Rs 5.15; de Manasses, 2 Cr 33.12, 13; de Zaqueu, Lc 19.8, 9; do cego de nascença, Jo 9.38; da mulher samaritana, Jo 4.29; do eunuco, At 8.30 e segtes.; de Cornélio, At 10.44 e segtes.; de Paulo, At 9.5 e segtes.; de Lídia, At. 16.14; e outras.

4. A CONVERSÃO REPETIDA. A Bíblia fala também de uma conversão repetida, na qual a pessoa convertida, depois de uma queda nos caminhos do pecado, retorna a Deus. Strong prefere não usar a palavra “conversão” para esta mudança, empregando antes palavras e frases como “rompimento, abandono, volta, negligências e transgressões” e “retorno a Cristo, confiança novamente depositada nele”. Mas a própria Escritura usa a palavra “conversão” para esses casos, Lc 22.32; Ap 2.5, 16, 21, 22; 3.3, 19. Deve-se entender, que a conversão, no sentido estritamente soteriológico, nunca se repete. Os que experimentaram a verdadeira conversão podem cair temporariamente sob os falsos encantos do mal e cair em pecado; até podem, às vezes, perambular longe do lar; mas a nova vida forçosamente se reafirmará e por gim os levará a voltar para Deus com corações penitentes.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 482)

Características da Conversão

A conversão é simplesmente uma parte do processo salvífico. Mas, porque é parte de um processo orgânico, naturalmente está ligada de modo íntimo com cada uma das outras partes. Às vezes se vê a tendência, especialmente em nosso país, de identifica-la com alguma das outras partes do processo, ou de exalta-la como se se tratasse da parte muitíssimo mais importante do processo. É bem conhecido o fato de que alguns, ao falarem da sua redenção, nunca vão além da sua conversão, esquecendo-se de falar do seu crescimento espiritual, nos anos posteriores.Isto sem dúvida se deve ao fato de que na experiência deles, a conversão sobressai como uma crise incisivamente marcante, crise que exigiu da parte deles. Tendo-se em conta a tendência atual de se perder a percepção das linhas de demarcação presentes no processo de salvação, é bom lembrar-nos da veracidade do adágio latino: “Qui bene distinguet, bene docet” (“Quem distingue bem, ensina bem”). Devemos notar as seguintes características da conversão:

1. A conversão pertence aos atos recriadores de Deus, e não aos Seus atos judiciais. Ela não altera a posição, mas, sim, a condição do homem. Ao mesmo tempo, relaciona-se estreitamente com as operações divinas na esfera judicial. Na conversão, o homem toma consciência do fato de que ele merece a condenação, e também é levado ao reconhecimento desse fato. Conquanto isto já pressuponha fé, ela conduz também a maior manifestação da fé em Jesus Cristo, a uma segura confiança nele para a salvação. E esta fé, por sua vez, pela apropriação da justiça de Jesus Cristo, serve de instrumento para a justificação do pecador. Na conversão, o homem se desperta para a jubilosa segurança de que todos os seus pecados são perdoados com base nos méritos de Jesus Cristo.

2. Como a palavra metanoia claramente indica, a conversão tem lugar, não na vida subconsciente do pecador, mas em sua vida consciente. Isto não significa que ela não tem suas raízes na vida subconsciente. Sendo um efeito direto da regeneração, naturalmente inclui uma transição nas operações próprias da nova vida, do subconsciente para o consciente. Em vista disso, pode-se dizer que a conversão começa nas profundezas da personalidade, mas, como um ato completo, certamente está dentro das linhas abrangidas pela vida consciente. Isto põe em relevo a estrita conexão existente entre a regeneração e a conversão. A conversão que não esteja arraigada na regeneração, não é conversão verdadeira.

3. A conversão assinala o início, não só do despojamento do velho homem, da fuga do pecado, mas também do revestimento do novo homem, da luta pela santidade no viver. Na regeneração, o princípio pecaminoso da velha vida já é substituído pelo princípio santo da nova vida. Mas é somente na conversão que esta transição penetra a vida consciente, levando-a numa nova direção, rumo a Deus. O pecador abandona conscientemente a vida antiga e pecaminosa e se volta para uma vida em comunhão com Deus e a Ele devotada. Não quer dizer, porém, que a luta entre a velha e a nova está acabada de uma vez; ela continuará enquanto durar a vida do homem.

4. Tomando a palavra “conversão” em seu sentido mais específico, ela indica uma mudança instantânea, e não um processo como o da santificação. É uma mudança que se dá uma vez e não se pode repetir, embora, como acima exposto, a Bíblia também denomine conversão o retorno do cristão a Deus, depois de haver caído em pecado. Neste caso, é a volta do crente para Deus e para a santidade, depois de os haver perdido de vista temporariamente. Quanto à regeneração, não temos a menor possibilidade de falar em repetição; mas na vida consciente do cristão há altos e baixos, períodos de íntima comunhão com Deus e períodos de afastamento dele.

5. Contrariamente aos que pensam na conversão unicamente como uma crise definida na vida, deve-se notar que, conquanto a conversão possa ser uma crise agudamente marcante, pode ser também uma mudança muito gradativa. A teologia mais antiga sempre distinguia entre conversões súbitas e graduais (como nos casos de Jeremias, João Batista e Timóteo); e em nossos dias, a psicologia da religião acentua a mesma distinção. As conversões marcadas por crise são mais freqüentes na épocas de declínio religioso, e nas vidas daqueles que não gozaram os privilégios de uma verdadeira educação religiosa, e que vagavam longe das veredas da verdade, da retidão e da santidade.

6. Finalmente, em nossos dias, quando muitos psicólogos mostram uma inclinação para reduzir a conversão a um fenômeno geral e natural do período da adolescência, é necessário assinalar que, quando falamos em conversão, temos em mente uma obra sobrenatural de Deus, resultando numa mudança religiosa. Os psicólogos às vezes insinuam que a conversão é apenas um fenômeno natural, chamando a atenção para o fato de que mudanças repentinas ocorrem também na vida moral e intelectual do homem. Alguns deles sustentam que a emergência da idéia de sexo desempenha um papel importante na conversão. Contra esta tendência racionalista e naturalista, é preciso afirmar o caráter específico da conversão religiosa.

(Teologia Sistemática de Louis Berkhof. Pg 484)

O SACRAMENTO DA PENITÊNCIA , DA IGREJA CATÓLICA ROMANA

 A Igreja de Roma exteriorizou inteiramente a idéia de arrependimento. Os elementos mais importantes do seu sacramento da penitência são a contrição, a satisfação e a absolvição. Destes quatro, a contrição é o único que pertence propriamente ao arrependimento, e mesmo deste o romanista exclui toda tristeza pelos pecados inatos, e só retém a tristeza pelas transgressões pessoais. E porque uns poucos experimentam a contrição real, ele também se satisfaz com a atrição. Esta é “a convicção mental de que o pecado merece punição, mas não inclui a confiança em Deus e o propósito de abandonar o pecado. É o medo do inferno”[1]. Confissão, na Igreja Católica Romana, é confissão ao sacerdote, que absolve o confessante, não declarativa, mas judicialmente. Além disso, a satisfação consiste na prática da penitência pelo pecador, isto é, suportando ele alguma coisa dolorosa, ou realizando alguma tarefa difícil ou desagradável. A idéia central é que tais práticas externas constituem realmente uma satisfação pelo pecado.


[1] Schaff, Our Father’s Faith and Ours, p. 358. Cf. edição em português, Nossa Crença e a de Nossos Pais, p. 332).

Elementos Diferentes na Conversão

Já transparece na seção anterior que a conversão compreende dois elementos, quais sejam, o arrependimento e a fé. Destes, o primeiro é retrospectivo e o segundo é prospectivo. O arrependimento relaciona-se diretamente com a santificação, enquanto que a fé está estreitamente, embora não exclusivamente, relacionada com a justificação. Em vista do fato que a fé será discutida num capítulo à parte, vamos limitar-nos ao arrependimento aqui, definindo-o como a mudança produzida na vida consciente do pecador, pela qual ele abandona o pecado.

1. ELEMENTOS DO ARREPENDIMENTO. Distinguimos três elementos no arrependimento:

a. Um elemento intelectual. Há uma mudança de conceito, um reconhecimento de que o pecado envolve culpa pessoal, contaminação e desamparo. Este elemento é designado na Escritura como epignosis hamartias (conhecimento do pecado), Rm 3.29, cf. 1.32. Se este não for acompanhado pelos elementos subseqüentes, poderá manifestar-se como temor do castigo, sem ódio ao pecado.

b. Um elemento emocional. Há uma mudança de sentimento que se manifesta em tristeza pelo pecado contra um Deus santo e justo, Sl 51.2, 10, 14. Este elemento do arrependimento é indicado pelo verbo metamelomai. Quando acompanhado pelo elemento subseqüente, é lupe kata theou (tristeza segundo Deus), mas se não for acompanhado por ele, será lupe tou kosmou (tristeza do mundo), que se manifesta em remorso e desespero, 2 Co 7.9, 10; Mt 27.3; Lc 18.23.

c. Um elemento volitivo. Há também um elemento volitivo, que consiste numa mudança de propósito, num abandono interior do pecado e numa disposição para a busca do perdão e da purificação, Sl 51.5, 7, 10; Jr 25.5. Este elemento inclui os outros dois, e, portanto, é o aspecto mais importante do arrependimento. É indicado na Escritura pela palavra metanoia, At 2.38; Rm 2.4.

2. O SACRAMENTO DA PENITÊNCIA , DA IGREJA CATÓLICA ROMANA. A Igreja de Roma exteriorizou inteiramente a idéia de arrependimento. Os elementos mais importantes do seu sacramento da penitência são a contrição, a satisfação e a absolvição. Destes quatro, a contrição é o único que pertence propriamente ao arrependimento, e mesmo deste o romanista exclui toda tristeza pelos pecados inatos, e só retém a tristeza pelas transgressões pessoais. E porque uns poucos experimentam a contrição real, ele também se satisfaz com a atrição. Esta é “a convicção mental de que o pecado merece punição, mas não inclui a confiança em Deus e o propósito de abandonar o pecado. É o medo do inferno”[1]. Confissão, na Igreja Católica Romana, é confissão ao sacerdote, que absolve o confessante, não declarativa, mas judicialmente. Além disso, a satisfação consiste na prática da penitência pelo pecador, isto é, suportando ele alguma coisa dolorosa, ou realizando alguma tarefa difícil ou desagradável. A idéia central é que tais práticas externas constituem realmente uma satisfação pelo pecado.

3. CONCEITO BÍBLICO DE ARREPENDIMENTO. Contra esse conceito externo de arrependimento, a idéia escriturística deve ser defendida. De acordo com a Escritura, o arrependimento é um ato totalmente interno, e não deve ser confundido com a mudança da vida que dele procede. A confissão do pecado e a reparação dos males praticados são frutos do arrependimento. O arrependimento é somente uma condição negativa, e não um meio positivo de salvação. Embora sendo o dever do atual pecador, não vale para as exigências da lei quanto às transgressões passadas. Além disso, o arrependimento jamais existe, senão em conjunção com a fé, ao passo que, por outro lado, onde quer que haja fé verdadeira, há também arrependimento verdadeiro. Ambos são apenas diferentes aspectos do mesmo movimento – movimento de abandono do pecado em direção a Deus. Lutero falava às vezes de um arrependimento que antecede à fé, mas, sem embargo, parece que concordava com Calvino em considerar o arrependimento verdadeiro como um dos frutos da fé. Os luteranos gostam de salientar o fato de que o arrependimento é produzido pela lei, e a fé pelo, Evangelho. Devemos ter em mente, porém, que os dois são inseparáveis; são simplesmente complementares do mesmo processo.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 485)



[1] Schaff, Our Father’s Faith and Ours, p. 358. Cf. edição em português, Nossa Crença e a de Nossos Pais, p. 332).

A Psicologia da Conversão

Durante os recentes anos os psicólogos fizeram um estudo especial dos fenômenos da conversão.

1. NATUREZA DESTE ESTUDO. A natureza deste estudo pode ser mais bem compreendida pelo exame de obras como as de Coe, The Spiritual Life (A Vida Espiritual); de Starbuck, The Psichology of Religion (A Psicologia da Religião); de William James, Varieties of Religious Experience (Variedades da Experiência Religiosa); de Ames, The Psichology of Religious Experience (Psicologia da Experiência Religiosa); de Pratt, The Religious Conscieousness (A Consciência Religiosa); de Clark, The Psychology of Religious Awakening (Psicologia do Departamento Religioso); de Hughes, I (A Nova Psicologia e a Experiência Religiosa); e de Horton, The Psychological Approach to Theology (Abordagem Psicológica da Teologia). Por longo tempo a psicologia negligenciou completamente os fatos da vida religiosa, mas agora, nos últimos vinte e cinco anos, tomou conhecimento deles.* A princípio, a atenção foi dirigida primariamente – para não dizer exclusivamente – para aquilo que parecia constituir o grande fato central da experiência religiosa, a conversão. Os psicólogos estudaram muitos casos de conversão indutivamente e tentaram classificar as várias forças operantes na conversão, distinguir os diferentes tipos de experiência religiosa, determinar o período da vida em que a conversão tem maior probabilidade de ocorrer, e descobrir as leis que regem os fenômenos da conversão. Embora tenham apresentado o seu estudo como uma investigação puramente indutiva dos fenômenos como se vêem na experiência individual, e, nalguns casos, tenham expressado o louvável desejo e intenção de manter por trás as suas convicções filosóficas e religiosas, não obstante, revelaram claramente em vários casos a tendência de ver a conversão como um processo puramente natural, tão sujeito às leis ordinárias da psicologia como qualquer outro fato psíquico; e de passar por alto, senão negar explicitamente, o seu aspecto sobrenatural. Os mais cuidadosos especialistas dentre eles ignoram, mas não negam, o sobrenatural na conversão. Explicam o seu silêncio quanto aos aspectos mais profundos deste fato central da experiência religiosa chamando a atenção para as suas limitações como psicólogos. Eles só podem lidar com fatos observáveis e com as leis psíquicas que evidentemente governam, mas não têm direito de sondar a possível ou provável realidade espiritual subjacente, na qual estes fatos encontram a sua explicação. Eles assinalaram que a conversão não é um fenômeno especificamente cristão, mas também se acha noutras religiões; e que não é necessariamente um fenômeno religioso, ocorrendo também em esferas não religiosas. De fato, a conversão é apenas uma das mudanças que ocorrem no período da adolescência, “um súbito reajustamento a um ambiente espiritual mais amplo”, uma rendição do velho ego a outro mais verdadeiro. “No máximo”, diz Starbuck, “é o individuo entrando em harmonia com aquilo que ele acha que é a vontade divina”.[1] Como Pratt a entende, “o que há de essencial na conversão é a unificação da personalidade, a realização de um novo ego”.[2] Quanto à questão sobre se há algo de sobrenatural na conversão, há diferença de opinião entre os psicólogos. Coe indaga: “Concluiremos, então, que a conversão é praticamente uma realização automática?” E responde: “Não, a menos que definamos primeiramente a conversão em termos que ignoram a sua profunda relação com Deus e com o princípio de um bom viver. ..A substância das experiências religiosas transcende tanto as suas formas emocionais como o homem transcende as roupas que usa”.[3] James percebe que um cristão ortodoxo poderia perguntar-lhe se a relação que ele estabelece entre os fenômenos da conversão com a parte subliminar da personalidade não exclui completamente a noção da presença direta nela da Divindade; e responde com estas palavras: “Devo dizer francamente que o psicólogo não vê por que deveria necessariamente excluí-la”.[4] Acha ele que, “se existem poderes superiores capazes de influir em nós, eles só podem ter acesso pela porta subliminar”.[5] Os representantes da Nova Psicologia, isto é, da Escola Behaviorista e da Escola Psicanálise, tomam abertamente a posição de que a conversão pode vir a ocorrer de maneira perfeitamente natural, sem nenhuma influência sobrenatural. James e outros afirmam que o real segredo da súbita mudança que se dá na conversão está nalguma atividade da parte subliminar da personalidade, que pode ou não estar sujeita a alguma influência divina. Os estudiosos de psicologia geralmente concordam que há três passos distintos na conversão, que Ames descreve como segue: “Primeiro, um sentimento de perplexidade e intranqüilidade; segundo, um clímax e um ponto decisivo; e terceiro, uma descontração assinalada por repouso e alegria”.[6] Há acordo geral de que existem pelo menos dois tipos notáveis de conversão, os quais são designados de diversas maneiras. Falando destas duas espécies de conversão, diz Starbuck que a primeira é acompanhada por um violento sentimento de pecado, e a outra, por uma sensação de algo incompleto, pela luta por uma vida mais ampla, e pelo desejo de iluminação espiritual. Faz-se distinção entre a conversão de crianças e a de adultos, entre conversões gradativas e conversões repentinas (impetuosas), e entre conversões intelectuais e emocionais. São apenas nomes diferentes para os dois tipos reconhecidos de conversões. Embora a conversão em geral possa ser considerada como uma experiência normal, às vezes se vê que assume um aspecto anômalo, especialmente durante os avivamentos, e então se torna um fenômeno patológico. No que se refere ao tempo da conversão, assinala-se que a conversão não ocorre com a mesma freqüência em todos os períodos da vida, mas pertence quase exclusivamente aos anos que se situam entre os 10 e os 25 anos de idade, sendo extremamente rara depois dos 30. Quer dizer que ela é peculiarmente característica do período da adolescência. O ambiente, a educação e a instrução religiosa afetam a natureza e a freqüência da sua ocorrência.

2. AVALIAÇÃO DESSES ESTUDOS. Não há por que negar o valor desses estudos psicológicos da conversão. Seria tolice varre-los para um canto como tendo pouca ou nenhuma significação, ou ignora-los apenas por não levarem na devida conta o sobrenatural na conversão. Eles derramam uma grata luz sobre algumas leis aplicáveis à vida psíquica do homem, e sobre alguns dos fenômenos que acompanham a crise ocorrida na vida consciente do homem, e sobre diversos tipos de conversão e os fatores que os determinam. Eles aprofundam o nosso discernimento dos diferentes tipos de conversão, que sempre foram reconhecidos pela teologia reformada (calvinista), confirmam a nossa convicção a respeito dos três elementos que se acham na conversão tem suas raízes na vida subconsciente; embora não afirmem explicitamente, e nalguns casos até neguem que ela tem sua explicação numa obra divina – na obra do Espírito Santo – realizada nos umbrais da consciência, a ora da regeneração. Ao mesmo tempo, não devemos exagerar a importância desses estudos. Alguns deles, como, por exemplo, a obra de James, são decididamente unilaterais, desde que, no caso da obra de James, ela está baseada inteiramente no estudo de conversões extraordinárias, que ele achava mais interessantes. Além disso, eles não escaparam do perigo de levar longe demais a idéia de operação da lei psíquica na conversão, bem como o de passar por alto o lado divino e sobrenatural do importante processo de conversão. James trata disso tudo como se fosse uma mudança moral e a define de maneira geral como “o processo, gradual ou repentino, pelo qual uma personalidade até então dividida e conscientemente errada, inferior e infeliz, passa a ser unificada e conscientemente certa, superior e feliz em conseqüência do seu apego mais firme às realidades religiosas”.[7] Outras a reduzem a um fenômeno puramente natural, e até mesmo a explicam em termos materialistas, entendendo-a regida por leis físicas. Eles não descem, e, na verdade, pela própria natureza do caso, não podem descer à raiz da questão, não penetram e não podem penetrar as profundezas ocultas das quais brota a conversão. É patente a tendência de desafiar a antiga e ortodoxa idéia de conversão, achando que é anticientífico ensinar que a natureza religiosa do homem é implantada miraculosamente. Eles não aceitam a luz da Palavra de Deus, e, portanto, não contam com um padrão pelo qual julgar as coisas mais profundas da vida. Diz Sonwden: “Como alguns psicólogos tentaram produzir uma psicologia da alma sem alma, assim alguns se esforçaram para elaborar uma psicologia da religião sem religião. Sob a sua maneira de tratar disso, a religião evaporou-se, reduzindo-se a um sentimento ou uma ilusão meramente subjetiva, sem qualquer realidade objetiva, e tal psicologia da religião é destruída de fundamento e sem valor, como psicologia e como religião.”[8]

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 488)



* Nas décadas de 1920, 30 e 40. Nota do tradutor.
[1] The Psychology of Religion, p. 162.
[2] The Religious Consciouness, p. 123.
[3] The Spiritual Life, p. 140.
[4] The Vaieties of Religious Experience, p. 242.
[5] P. 243
[6] The Psychology of Religious Experience, p. 258.
[7] Op. cit., p. 189.
[8] The Psychology of Religion, p. 20.

DEUS É O AUTOR DA CONVERSÃO

Somente Deus ode ser considerado o Autor da conversão. Este é o ensino claro da Escritura. No Sl 85.4 o poeta ora: “Restabelece-nos, ó deus da nossa salvação”, e em Jr 31.18 Efraim ora: “Converte-me, e serei convertido”. Encontra-se uma oração parecida em Lm 5.21. Em At 11.18 Pedro chama a atenção para o fato de que Deus concedeu aos gentios arrependimento para a vida. Uma declaração similar acha-se em 2 Tm 2.25. Há uma dupla operação de Deus na conversão dos pecadores, uma de natureza moral e a outra hiperfísica. Em geral se pode dizer que Ele produz o arrependimento por meio da lei, Sl 19.7; Rm 3.20, e a fé por meio do Evangelho, Rm 10.17. Contudo, não podemos separar estes dois elementos, pois a Lei também contém uma apresentação do Evangelho, e o Evangelho confirma a Lei e nos ameaça com os seus terrores, 2 Co 5.11. Mas Deus também age de maneira imediata e hiperfísica na conversão. O novo princípio da vida implantado no homem regenerado não redunda em ação consciente por seu próprio poder inerente, mas unicamente pela influência iluminadora e frutificativa do Espírito Santo. Cf. Jo 6.44; Fp 2.13. Ministrar outro ensino é acompanhar o luteranismo e o arminianismo.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 488)

 

O HOMEM COOPERA NA CONVERSÃO

Mas, apesar do fato de que Deus é o único Autor da conversão, é de grande importância salientar, contrariamente a uma falsa passividade, que há também uma certa cooperação do homem na conversão. O dr. Kuyper chama a atenção para o fato de que no Velho Testamento shubh é empregado 74 vezes com referência à conversão como ação do homem, e somente 15 vezes como ato gracioso de Deus; e que o Novo Testamento descreve a conversão como um feito do homem 26 vezes, e fala dela só 2 ou 3 vezes como ato de Deus.[1] Todavia, devemos ter em mente que esta atividade do homem é sempre resultante de uma prévia obra de Deus realizada no homem, Lm 5.21; Fp 2.13. Que o homem é ativo na conversão é mais que evidente em passagens como Is 55.7; Jr 18.11; Ez 18.23, 32; 33.11; At 2.38; 17.30, e outras.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 487)



[1] Dict. Dogm., De salute, p. 94.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Necessidade da Conversão

A Bíblia fala em termos absolutos da necessidade da regeneração; não assim da necessidade da conversão. Ela nos diz explicitamente que, “se alguém não nascer de novo (ou de cima), não pode ver o reino de Deus”, Jo 3.3, mas não fala da necessidade da conversão dessa maneira geral, que não admite exceções. Naturalmente, quem identifica as duas, não pode admitir esta distinção. Indubitavelmente, há passagens da Escritura que contêm um chamamento para a conversão, para o gozo das bênçãos de Deus, como Ez 33.11; Is 55.7, e estas implicam a necessidade da conversão no caso dos aí visados ou mencionados. A passagem que mais perto chega de uma declaração absoluta acha-se em Mt 18.3, “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”. Mas mesmo neste caso se pode insistir em que isto se refere somente às pessoas às quais o texto é dirigido. As exortações explícitas ou implícitas à conversão, que se acham na Escritura, só vêm àqueles a quem são dirigidas e não significam necessariamente que todos e cada um têm que passar por uma conversão consciente para serem salvos. A questão quanto à necessidade da conversão deve ser respondida com criteriosa discriminação. Os que morrem na infância têm que ser regenerados para serem salvos, mas não podem experimentar devidamente a conversão, um consciente voltar-se do pecado para Deus. No caso dos adultos, porém, a conversão é absolutamente essencial, mas não necessita aparecer na vida de cada um como uma crise fortemente assinalada. Uma crise definida assim só se pode esperar, em regra, nas vidas daqueles que, após uma vida de pecado e vergonha, são tomados em seu curso mau pelo poder regenerador do Espírito Santo e pela vocação eficaz para a conversão. Neles a vida de inimizade consciente é logo transformada numa vida de amizade com Deus. Contudo, dificilmente se pode buscar essa experiência na vida daqueles que, como João Batista e Timóteo, serviram ao Senhor desde a primeira juventude. Ao mesmo tempo, a conversão é necessária no caso de todos os adultos, no sentido de que os seus elementos, a saber, o arrependimento e a fé, têm que estar presentes em suas vidas. Quer dizer que, de algum modo, eles precisam experimentar a essência da conversão.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 489)

Termos Bíblicos Para Fé

 1. OS TERMOS DO VELHO TESTAMENTO E O SEU SIGNIFICADO. O Velho Testamento não contém nenhum substantivo para fé, a não ser que emunah seja assim considerado em Hc 2.4. Esta palavra significa ordinariamente “fidelidade”, Dt 32.4; Sl 36.5; 37.3; 40.11, mas o modo pelo qual a afirmação de Habacuque é aplicada no Novo Testamento, Rm 1.17; Gl. 3.11; Hb 10.38, parece indicar que o profeta empregou o termo no sentido de fé. A palavra mais comum no Velho Testamento para “crer” é he’emin, forma hiphil de ‘amam. No qal significa “amamentar”, “cuidar de” ou “nutrir”, no niphal, “ser (ou estar) firme”, ou “estabelecido”, ou “constante”; e no hiphil, “considerar estabelecido”, “ter como verdadeiro”, ou “crer”. A palavra é usada em construções gramaticais com as preposições beth e lamedh. Com a primeira, evidentemente se refere a um confiante descanso numa pessoa ou coisa ou testemunho; com a segunda, significa o assentimento dado a um testemunho aceito como verdadeiro, – A segunda palavra em importância é batach, que se constrói com beth e quer dizer “confiar-se a”, “apoiar-se em”, “confiar”. Ela não da ênfase ao elemento intelectual do assentimento, mas, antes, ao da entrega confiante. Em distinção do he’emin, geralmente traduzida por pisteuo na septuaginta, essa palavra é geralmente traduzida por elpizo ou peithomai. O homem que confia em Deus é alguém que fixa nele toda a sua esperança quanto ao presente e ao futuro. – Há mais uma palavra, a saber, chasah, que é usada menos freqüentemente e significa “esconder-se” ou “fugir em busca de refúgio”. Também nesta é evidente que o elemento de confiança está em primeiro plano.

2. OS TERMOS DO NOVO TESTAMENTO E O SEU SIGNIFICADO. Duas palavras são empregadas em todo o Novo Testamento, a saber, pistis e o verbo cognato pisteuein. Nem sempre elas têm a mesma conotação.

a. Os diferentes sentidos de pistis. (1) No grego clássico. A palavra pistis tem dois sentidos no grego clássico. Ela indica: (a) uma convicção baseada na confiança numa pessoa e no seu testemunho, que, como tal, distingue-se do conhecimento apoiado numa investigação pessoal; e (b) a confiança propriamente dita, na qual essa convicção descansa. Esta é mais que uma simples convicção intelectual de que uma pessoa é fidedigna; pressupõe uma relação pessoal com o objeto da confiança, um sair de si mesmo para descansar noutrem. Os gregos não se utilizavam ordinariamente desta palavra neste sentido, para expressar a relação deles com os deuses, visto que os consideravam hostis aos homens e, portanto, mais como objetos de termo que de confiança. – (2) Na septuaginta. A transição do emprego da palavra pistis no grego clássico para o uso do Novo Testamento, no qual o sentido de “confiança” é da máxima importância, acha-se no uso que a septuaginta faz do verbo pisteuein, e não no do substantivo pistis, que ocorre nela apenas uma vez com um sentido um pouco parecido com o do Novo Testamento. O verbo pisteuein geralmente serve como tradução da palavra he’emin, e assim expressa a idéia de fé tanto no sentido de assentimento à Palavra de Deus, como de real confiança nele. – (3) No Novo Testamento. Há uns poucos exemplos em que a palavra tem sentido passivo, a saber, o de “fidelidade”, que é o seu significado usual no Velho Testamento, Rm 3.3; Gl 5.22, Tt 2.10. Geralmente é empregada com significação ativa. Devemos distinguir os seguintes sentidos especiais: (a) uma crença ou convicção intelectual, apoiada no testemunho de outrem, e, portanto, baseada na confiança nesta outra pessoa, e não numa investigação feita pessoalmente, Fp 1.27; 2 Co 4.13; 2 Ts 2.13, e especialmente, nos escritos de João; e (b) uma completa confiança em Deus, ou, mais particularmente, em Cristo, com vistas à redenção do pecado e à bem-aventurança futura. Assim se vê especialmente nas epístolas de Paulo, Rm 3.22, 25; 5.1, 2; 9.30, 32; Gl 2.16; Ef 2.8; 3.12, e muitas outras passagens. Deve-se distinguir esta confiança daquela na qual a confiança intelectual mencionada no item (a) acima repousa. A ordem dos estágios sucessivos da fé é como segue: (a) confiança geral em Deus e em Cristo; (b) aceitação do seu testemunho com base nessa confiança; e (c) submissão a Cristo e confiança nele para a salvação da alma. A última é especificamente denominada fé salvadora.

b. As diferentes construções gramaticais de pisteuein e seu significado. Temos as seguintes construções: (1) Pisteuein com o dativo. Geralmente significa assentir crendo. Se o objeto é uma pessoa, a construção é empregada ordinariamente num sentido um tanto denso, fértil, incluindo a idéia profundamente religiosa de uma confiança devotada. Quando o objeto é uma coisa, usualmente é a Palavra de Deus, e quando é uma pessoa, ou é Deus ou é Cristo, Jo 4.50; 5.47; At 16.34; Rm 4.3; 2 Tm 1.12. – (2) Pisteuein seguido de Hoti. Nesta construção, a conjunção geralmente serve para introduzir aquilo em que se crê. De modo geral, esta construção é mais fraca que a anterior. Das vinte passagens em que se encontra, catorze ocorrem nos escritos de João. Num par de casos, o objeto em que se crê dificilmente se eleva à esfera religiosa, Jo 9.18; At 9.26, enquanto que nalguns dos outros casos, é decididamente de significação soteriológica, Mt 9.28; Rm 10.9; 1 Ts 4.14. – (3) Pisteuein com preposição. Aqui o sentido mais profundo da palavra, o de firme e confiante entrega, alcança os seus plenos direitos. Consideremos as seguintes construções com preposições: (a) Construção com en. Esta é a construção mais freqüente na septuaginta, embora esteja pouco menos que ausente do Novo Testamento. O único caso de que se tem certeza é Mc 1.15, onde o objeto da fé é o Evangelho. Outros possíveis exemplos são Jo 3.15; Ef 1.13, onde o objeto seria Cristo. Ao que parece, a implicação desta construção gramatical é a de uma confiança firmemente posta em seu objeto.. (b) Construção com epi e o dativo. Acha-se somente na citação de Is 28.16, que aparece em três passagens, quais sejam, Rm 9.33; 10.11; 1 Pe 2.6, e em Lc 24.25; 1 Tm 1.16. Ela expressa a idéia de uma serenidade segura e repousante, uma confiante segurança em seu objeto. (c) Construção com epi e o acusativo. É usada sete vezes no Novo Testamento. Num par de casos o objeto é Deus, quando opera na salvação da alma em Cristo; em todos os demais é Cristo. Esta construção inclui a idéia de movimento moral, de um mover-se mental em direção ao objeto. A principal idéia é a de um voltar-se com segura confiança para Jesus Cristo. (d) Construção com eis. Esta é a construção mais característica do Novo Testamento. Ocorre quarenta e nove vezes. Cerca de catorze destes exemplos são joaninos, e o restante Paulino. Exceto num caso, o objeto da fé é sempre uma pessoa, raramente Deus, e muito comumente Cristo. Esta construção tem um sentido muito denso e fértil, expressando, como expressa, “uma absoluta transferência da confiança em nós para outro, uma completa rendição pessoal a Deus”. Cf. Jo 2.11; 3.16, 18, 36; 4.39; 14.1; Rm 10.14; Gl 2.16; Fp 1.29.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof Pg.494)

Relação da Conversão com Outros Estágios do Processo de Salvação

1. COM A REGENERAÇÃO. Esta relação já foi iniciada em certa medida. As duas palavras, “regeneração” e “conversão”, são empregadas sinonimamente por alguns. Todavia, na teologia dos dias atuais elas geralmente se referem a matérias diferentes, se bem que estreitamente interrelacionadas. O princípio da nova vida implantado na regeneração vem a expressar-se na vida consciente do pecador, quando este se converte. A mudança efetuada na vida subconsciente, quando da regeneração, passa para a vida consciente, na conversão. Logicamente, a conversão se segue à regeneração. Nos casos dos que são regenerados na infância, há necessariamente uma separação temporal das duas, mas no caso dos que são regenerados depois de atingirem os anos da discrição, geralmente as duas coincidem. Na regeneração o pecador é inteiramente passivo, mas na conversão ele é passivo e ativo. Aquela nunca pode repetir-se, mas esta pode, até certo ponto, embora a conversio actualis ocorra somente uma vez.
2. COM A VOCAÇÃO EFICAZ. A conversão é resultado direto da vocação interna. Como um efeito no homem, a vocação interna e o começo da conversão realmente coincidem. A situação não é bem como se Deus chamasse o pecador e, então, este, por suas próprias forças, se voltasse para Deus. É exatamente na vocação interna que o homem se torna cônscio do fato de que Deus está operando nele a conversão. O homem verdadeiramente convertido perceberá, ao longo de toda a ação, que a sua conversão é obra realizada por Deus. Isto o distingue do homem que visa a um melhoramento moral superficial. Este último age com as suas próprias forças.
3. COM A FÉ. Como já foi indicado, a conversão consiste de arrependimento e fé, de sorte que a fé é realmente uma parte da conversão. Contudo, devemos fazer distinção aqui. Há duas espécies de fé verdadeira, cada qual tendo um objeto diferente, a saber, (a) um reconhecimento da veracidade da revelação divina da redenção, não meramente num sentido isolado e histórico, mas de modo tal que é vista como uma realidade que não pode ser ignorada com impunidade, porque afeta a vida de maneira vital; e (b) um reconhecimento e aceitação da salvação oferecida em Jesus Cristo, que é a fé salvadora no sentido próprio da expressão. Agora, não há dúvida de que a fé, no primeiro sentido acima, está presente na conversão, desde o início. O Espírito Santo faz com que o pecador veja a verdade como esta é aplicável à sua vida, de modo que ele fica sob “convicção”, * e assim se torna cônscio do seu pecado. Mas ele pode permanecer neste estágio por algum tempo, de modo que é difícil dizer até que ponto a fé salvadora, isto é, a confiança em Cristo para a salvação, está logo de início incluída na conversão. Não há dúvida de que, logicamente, o arrependimento e o conhecimento do pecado precedem a fé que leva o pecador a render-se a Cristo, cheio de confiante amor.
QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. Por que Beza preferia denominar a conversão resipiscentia, em vez de poenitentia? 2. Por que o termo “arrependimento” é inadequado para expressar a idéia de conversão? 3. Como a Concepção que Lutero tinha do arrependimento deferia da de Calvino? 4. A conversão é sempre precedida pela “convicção do pecado”? 5. Podemos falar em graça proveniente, relativamente à conversão? 6. A conversão é um ato instantâneo, ou um processo? 7. Que se quer dizer com a expressão “conversão diária”? 8. Qual é o conceito válido da necessidade da conversão? 9. A pregação baseada na aliança tem a tendência de silenciar o chamamento para a conversão? 10. Qual a concepção metodista da conversão? 11. São recomendáveis os métodos das reuniões de avivamento? 12. Que dizer do caráter duradouro das conversões das quais os seus participantes se ufanam? 13. As estatísticas da psicologia da conversão dão-nos alguma informação sobre esse ponto?
BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm. IV, p. 127-181; Kuyper, Dict. Dogm., De Salute, p. 93-97; ibid., Het Werk van den Helligen Geest II, p. 197-203; A. A. Hodge, Outlines of Theology, p. 487-495; Strong, Syst. Theol., p. 829-849; McPherson, Chr. Dogm., p. 393-397; Shedd, Dogm. Theol. II, p. 529-537; Alexander, Syst. Of Bib. Theol.. II, p. 380-384; Litton, Introd. to Dogm Theol., p. 249-258; Vos, Geref. Dogm. IV, p. 66-81; Pope, Chr. Dogm. II, p. 367-376;Schmid, Doct. Theol. of the Ev. Luth. Chrch, p. 465, 466, 470-484; Drummond, Studies in Chr. Doct., p. 488-491; Macintosh, Theol. as an Empirical Science, p. 134-136; Mastricht, Godgeleerdheit IV, 4; Walden, The Great Meaning of Metanoia; Jackson, The Fact of Conversion; Coe, The Spiritual Life; Starbuck, The Psycology of Religion; James, The Varieties of Religious Experience, p. 189-258; Ames, The Psycology of Religious Experience, p. 257-276; Clark, The Psycology of Religious Awakening; Pratt, The Religious Consciousness, p. 122-164; Steven, The Psychology of the Christian Soul, p. 142-298; Hughes, The New Psychology and Religious Experience, p. 213-241; Snowden, The Psychology of Religion, p. 143-199.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 491)


* No sentido forense em que se fala da convicção de um réu, como na expressão “réu convicto”. Nota do tradutor.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

No capítulo anterior tratamos da conversão em geral, e também demos uma breve descrição do elemento negativo da conversão, qual seja, o arrependimento. O presente capítulo será dedicado a uma discussão do elemento positivo, que é a fé. Esta é de significação tão central na soteriologia, que requer um tratamento separado. É melhor faze-lo nesta altura, não somente porque a fé é uma parte da conversão, mas também porque ela está relacionada instrumentalmente com a justificação. Sua discussão constitui uma transição para a doutrina da justificação pela fé.

A. Termos Bíblicos Para Fé.


1. OS TERMOS DO VELHO TESTAMENTO E O SEU SIGNIFICADO. O Velho Testamento não contém nenhum substantivo para fé, a não ser que emunah seja assim considerado em Hc 2.4. Esta palavra significa ordinariamente “fidelidade”, Dt 32.4; Sl 36.5; 37.3; 40.11, mas o modo pelo qual a afirmação de Habacuque é aplicada no Novo Testamento, Rm 1.17; Gl. 3.11; Hb 10.38, parece indicar que o profeta empregou o termo no sentido de fé. A palavra mais comum no Velho Testamento para “crer” é he’emin, forma hiphil de ‘amam. No qal significa “amamentar”, “cuidar de” ou “nutrir”, no niphal, “ser (ou estar) firme”, ou “estabelecido”, ou “constante”; e no hiphil, “considerar estabelecido”, “ter como verdadeiro”, ou “crer”. A palavra é usada em construções gramaticais com as preposições beth e lamedh. Com a primeira, evidentemente se refere a um confiante descanso numa pessoa ou coisa ou testemunho; com a segunda, significa o assentimento dado a um testemunho aceito como verdadeiro, – A segunda palavra em importância é batach, que se constrói com beth e quer dizer “confiar-se a”, “apoiar-se em”, “confiar”. Ela não da ênfase ao elemento intelectual do assentimento, mas, antes, ao da entrega confiante. Em distinção do he’emin, geralmente traduzida por pisteuo na septuaginta, essa palavra é geralmente traduzida por elpizo ou peithomai. O homem que confia em Deus é alguém que fixa nele toda a sua esperança quanto ao presente e ao futuro. – Há mais uma palavra, a saber, chasah, que é usada menos freqüentemente e significa “esconder-se” ou “fugir em busca de refúgio”. Também nesta é evidente que o elemento de confiança está em primeiro plano.

2. OS TERMOS DO NOVO TESTAMENTO E O SEU SIGNIFICADO. Duas palavras são empregadas em todo o Novo Testamento, a saber, pistis e o verbo cognato pisteuein. Nem sempre elas têm a mesma conotação.

a. Os diferentes sentidos de pistis. (1) No grego clássico. A palavra pistis tem dois sentidos no grego clássico. Ela indica: (a) uma convicção baseada na confiança numa pessoa e no seu testemunho, que, como tal, distingue-se do conhecimento apoiado numa investigação pessoal; e (b) a confiança propriamente dita, na qual essa convicção descansa. Esta é mais que uma simples convicção intelectual de que uma pessoa é fidedigna; pressupõe uma relação pessoal com o objeto da confiança, um sair de si mesmo para descansar noutrem. Os gregos não se utilizavam ordinariamente desta palavra neste sentido, para expressar a relação deles com os deuses, visto que os consideravam hostis aos homens e, portanto, mais como objetos de termo que de confiança. – (2) Na septuaginta. A transição do emprego da palavra pistis no grego clássico para o uso do Novo Testamento, no qual o sentido de “confiança” é da máxima importância, acha-se no uso que a septuaginta faz do verbo pisteuein, e não no do substantivo pistis, que ocorre nela apenas uma vez com um sentido um pouco parecido com o do Novo Testamento. O verbo pisteuein geralmente serve como tradução da palavra he’emin, e assim expressa a idéia de fé tanto no sentido de assentimento à Palavra de Deus, como de real confiança nele. – (3) No Novo Testamento. Há uns poucos exemplos em que a palavra tem sentido passivo, a saber, o de “fidelidade”, que é o seu significado usual no Velho Testamento, Rm 3.3; Gl 5.22, Tt 2.10. Geralmente é empregada com significação ativa. Devemos distinguir os seguintes sentidos especiais: (a) uma crença ou convicção intelectual, apoiada no testemunho de outrem, e, portanto, baseada na confiança nesta outra pessoa, e não numa investigação feita pessoalmente, Fp 1.27; 2 Co 4.13; 2 Ts 2.13, e especialmente, nos escritos de João; e (b) uma completa confiança em Deus, ou, mais particularmente, em Cristo, com vistas à redenção do pecado e à bem-aventurança futura. Assim se vê especialmente nas epístolas de Paulo, Rm 3.22, 25; 5.1, 2; 9.30, 32; Gl 2.16; Ef 2.8; 3.12, e muitas outras passagens. Deve-se distinguir esta confiança daquela na qual a confiança intelectual mencionada no item (a) acima repousa. A ordem dos estágios sucessivos da fé é como segue: (a) confiança geral em Deus e em Cristo; (b) aceitação do seu testemunho com base nessa confiança; e (c) submissão a Cristo e confiança nele para a salvação da alma. A última é especificamente denominada fé salvadora.

b. As diferentes construções gramaticais de pisteuein e seu significado. Temos as seguintes construções: (1) Pisteuein com o dativo. Geralmente significa assentir crendo. Se o objeto é uma pessoa, a construção é empregada ordinariamente num sentido um tanto denso, fértil, incluindo a idéia profundamente religiosa de uma confiança devotada. Quando o objeto é uma coisa, usualmente é a Palavra de Deus, e quando é uma pessoa, ou é Deus ou é Cristo, Jo 4.50; 5.47; At 16.34; Rm 4.3; 2 Tm 1.12. – (2) Pisteuein seguido de Hoti. Nesta construção, a conjunção geralmente serve para introduzir aquilo em que se crê. De modo geral, esta construção é mais fraca que a anterior. Das vinte passagens em que se encontra, catorze ocorrem nos escritos de João. Num par de casos, o objeto em que se crê dificilmente se eleva à esfera religiosa, Jo 9.18; At 9.26, enquanto que nalguns dos outros casos, é decididamente de significação soteriológica, Mt 9.28; Rm 10.9; 1 Ts 4.14. – (3) Pisteuein com preposição. Aqui o sentido mais profundo da palavra, o de firme e confiante entrega, alcança os seus plenos direitos. Consideremos as seguintes construções com preposições: (a) Construção com en. Esta é a construção mais freqüente na septuaginta, embora esteja pouco menos que ausente do Novo Testamento. O único caso de que se tem certeza é Mc 1.15, onde o objeto da fé é o Evangelho. Outros possíveis exemplos são Jo 3.15; Ef 1.13, onde o objeto seria Cristo. Ao que parece, a implicação desta construção gramatical é a de uma confiança firmemente posta em seu objeto.. (b) Construção com epi e o dativo. Acha-se somente na citação de Is 28.16, que aparece em três passagens, quais sejam, Rm 9.33; 10.11; 1 Pe 2.6, e em Lc 24.25; 1 Tm 1.16. Ela expressa a idéia de uma serenidade segura e repousante, uma confiante segurança em seu objeto. (c) Construção com epi e o acusativo. É usada sete vezes no Novo Testamento. Num par de casos o objeto é Deus, quando opera na salvação da alma em Cristo; em todos os demais é Cristo. Esta construção inclui a idéia de movimento moral, de um mover-se mental em direção ao objeto. A principal idéia é a de um voltar-se com segura confiança para Jesus Cristo. (d) Construção com eis. Esta é a construção mais característica do Novo Testamento. Ocorre quarenta e nove vezes. Cerca de catorze destes exemplos são joaninos, e o restante Paulino. Exceto num caso, o objeto da fé é sempre uma pessoa, raramente Deus, e muito comumente Cristo. Esta construção tem um sentido muito denso e fértil, expressando, como expressa, “uma absoluta transferência da confiança em nós para outro, uma completa rendição pessoal a Deus”. Cf. Jo 2.11; 3.16, 18, 36; 4.39; 14.1; Rm 10.14; Gl 2.16; Fp 1.29.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 494)

Expressões Figuradas Empregadas Para Descrever a Atividade da Fé

Há na Escritura várias expressões figuradas da atividade da fé. As seguintes são algumas das mais importantes.

1. É descrita como um olhar para Jesus, Jo 3.14, 15 (comp. Nm 21.9). è uma figura muito apropriada, porquanto abrange vários elementos da fé, especialmente quando esta se refere a um firme olhar para alguém, como na passagem indicada. Há nesta expressão um ato de percepção (elemento intelectual), uma fixação deliberada dos olhos no objeto (elemento volitivo) e uma certa satisfação que a referida concentração testifica (elemento emocional).

2. É representada também por fome e sede, comer e beber, Mt 5.6; Jo 6.50-58; 4.14. Quando os homens têm de fato fome e sede espiritualmente, sentem que algo está faltando, têm consciência do caráter indispensável daquilo que está faltando, e se esforçam para obtê-lo. Tudo isso é típico da atividade da fé. Quando comemos e bebemos, não só temos a convicção de que o alimento e a bebida necessários estão presentes, mas também a confiante expectativa de que eles nos satisfarão, juntamente como, ao apropriar-se de Cristo pela fé, temos certa medida de confiança em que Ele nos salvará.

3. Finalmente, há também as figuras do vir a Cristo e recebe-lo, Jo 5.40; 7.37 (cf. o vers. 38); 6.44, 65; 1.12. A figura do vir a Cristo retrata a fé como uma ação na qual o homem olha para longe de si e dos seus próprios méritos, para ser revestido da justiça de Jesus Cristo; e a do receber a Cristo ressalta o fato de que a fé é um órgão de apropriação.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 494)

A Doutrina da Fé na História

1. ANTES DA REFORMA. Desde os primeiros tempos da igreja cristã, a fé sobressaia nas mentes dos lideres como a grandiosa condição da salvação. A seu lado, o arrependimento logo se tornou um tanto proeminente. Ao mesmo tempo, houve pouca reflexão, a principio, sobre a natureza da fé e apenas um ligeiro entendimento da relação da fé com as outras partes da ordo salutis. Não havia uma definição da fé, que fosse de uso comum. Conquanto houvesse a tendência de usar a palavra “fé” para denotar a aceitação da verdade com base num testemunho, nalguns casos também era empregada num sentido mais profundo, de molde a incluir a idéia de rendição pessoal à verdade recebida intelectualmente. Os alexandrinos contrastavam pistis com gnosis, e consideravam aquela primariamente como um conhecimento incipiente e imperfeito. Tertuliano salientava o fato de que a fé aceita uma coisa com base numa autoridade, e não porque fosse assegurada pela razão humana. Ele também usava o termo num sentido objetivo, como designativo daquilo que deve ser crido – a regula fidei (a regra da fé). Até ao tempo de Agostinho, pouca atenção foi dada à natureza da fé, embora esta sempre fosse reconhecida como o preeminente meio para a apropriação da salvação. Agostinho, porém, deu maior medida de consideração à matéria. Ele falava da fé em mais de um sentido. Às vezes a considerava como nada mais que o assentimento intelectual à verdade. Mas concebia a fé evangélica ou justificadora como incluindo também os elementos de rendição pessoal e amor. Esta fé é aperfeiçoada pelo amor e, assim, vem a ser o princípio das boas obras. Todavia, ele não tinha uma concepção apropriada da relação que há entre a fé e a justificação. Isto se deve em parte ao fato de que ele não distinguia cuidadosamente entre a justificação e a santificação. A concepção mais profunda de fé que se acha em Agostinho não foi compartilhada pela igreja em geral. Havia a tendência de confundir fé com ortodoxia, isto é, com a manutenção de uma fé ortodoxa. Os escolásticos distinguiam entre uma fides informis (fé informe), isto é, um simples assentimento intelectual à verdade ensinada pela igreja, e uma fides formata (charitate) – (fé formada pelo amor) – isto é, fé à qual foi dada uma forma característica pelo amor, e considerava esta última como a única fé que justifica, visto que envolve uma infusão da graça. É somente como fides formata que a fé se torna ativa para o bem e se torna a primeira das virtudes teológicas pelas quais o homem é posto na relação certa com Deus. Estritamente falando, é o amor, pelo qual a fé é aperfeiçoada, que justifica. Assim, com a fé foi feito um alicerce para o mérito humano. O homem é justificado, não exclusivamente pela imputação dos méritos de Cristo, mas também pela graça inerente. Tomaz de Aquino define a virtude da fé como um “hábito da mente, em razão do qual a vida eterna tem início em nós, considerando que ela leva o intelecto a dar o seu consentimento às coisas que se não vêem”.

2. DEPOIS DA REFORMA. Enquanto os católicos romanos davam ênfase ao fato de que a fé justificadora é simples assentimento a tem sua sede no entendimento, os Reformadores geralmente a consideravam como fidúcia (confiança), com sua sede na vontade. Contudo, sobre a importância relativa dos elementos da fé tem havido divergências, mesmo entre os protestantes. Alguns consideram a definição de Calvino superior à do Catecismo de Heidelberg. Diz Calvino: “Teremos então uma completa definição da fé se dissermos que ela é um firme e seguro conhecimento do favor de Deus para conosco, fundado na verdade de uma promessa gratuita em Cristo, e revelada às nossas mentes e selada em nossos corações pelo Espírito Santo”.[1] Por outro lado, o Catecismo de Heidelberg introduz também um elemento de confiança quando responde à pergunta, “Que é a verdadeira fé?”, como segue: “A fé verdadeira não é somente um seguro conhecimento pelo qual tomo como verdade tudo que Deus nos revelou em Sua Palavra, mas também uma firme confiança que o Espírito Santo produz em meu coração pelo Evangelho, em que, não somente a outros, mas a mim também, a remissão dos pecados a justiça e a salvação, são dados gratuitamente por Deus, simplesmente pela graça, unicamente em atenção aos méritos de Cristo”.[2] Mas, pelo contexto fica evidente que Calvino pretende incluir o elemento de confiança no “firme e seguro conhecimento” de que fala. Falando da ousadia com que podemos aproximar-nos de Deus pela oração, diz ele: “Essa ousadia brota da confiança no favor e na salvação divinos. Tanto é verdade, que o termo fé é usado muitas vezes como equivalente de confiança“.[3] Ele rejeita absolutamente a ficção dos teólogos que insistem em “que a fé é um assentimento com que qualquer desprezador de Deus pode receber o que é dado na Escritura”.[4] Mas há um ponto de diferença mais importante ainda entre a concepção que os Reformadores tinham da fé e a dos escolásticos. Estes reconheciam na fé mesma alguma eficácia real, e até meritória (meritum ex congruo, mérito proveniente da conformidade), ao se dispor para a justificação , procura-la e obtê-la. Por outro lado, os Reformadores eram unânimes e explícitos ao ensinarem que a fé justificadora não justifica por qualquer eficácia meritória ou inerente por si própria, mas somente como o instrumento hábil para receber ou tomar o que Deus proveu nos méritos de Cristo. Eles consideravam esta fé primariamente como dom de Deus, e só secundariamente como uma atividade do homem na dependência de Deus. Os arminianos revelaram uma tendência romanizante, quando conceberam a fé como uma obra meritória do homem, com base na qual ele é bem aceito por Deus. Schleiermacher, o pai da teologia moderna, mal menciona a fé salvadora e ignora absolutamente a fé em termos de confiança como de criança em Deus. Diz ele que a fé “nada mais é que a incipiente experiência da satisfação da nossa necessidade espiritual por Cristo”. É Uma nova experiência psicológica, uma nova tomada de consciência, arraigada numa percepção, não de Cristo, nem de alguma doutrina, mas da harmonia do Infinito, da Totalidade das coisas, na qual a alma encontra a Deus. Ritschl concordava com Schleiermacher na afirmação de que a fé surge como resultado do contato com a realidade divina, mas encontra o seu objeto, não em alguma idéia ou doutrina, nem na totalidade das coisas, mas na Pessoa de Cristo, como a suprema revelação de Deus. Não é um assentimento passivo, mas um princípio ativo. Nela o homem faz da finalidade de Deus, isto é, o reino de Deus, a sua própria finalidade, começa a trabalhar pelo reino e, ao faze-lo, acha a salvação. Os conceitos de Scheleiermacher e Ritschl caracterizam grande parte da teologia “liberal” moderna. A fé, segundo esta teologia, não é uma experiência trabalhada no céu, mas uma realização humana; não o mero recebimento de um dom, mas uma ação meritória; não a aceitação de uma doutrina, mas um ato de “fazer Cristo o Mestre”, numa tentativa de padronizar a vida segundo o exemplo de Cristo. Este conceito encontrou, porem, forte oposição na teologia da crise, que salienta o fato de que a fé salvadora jamais é apenas uma experiência psicológica natural; é, estritamente falando, um ato de Deus, e não do homem, jamais constitui uma possessão permanente do homem e é, em si mesma, um simples hohlraum (espaço vazio), completamente incapaz de efetuar a salvação. Barth e Brunner consideram a fé simplesmente como a resposta divina, produzida por Deus no homem, à Palavra de Deus em Cristo, isto é, não tanto a alguma doutrina como à ordem divina ou ao ato divino na obra da redenção. A fé é a resposta afirmativa, o “sim” ao chamamento de Deus, um “sim” extraído por Deus mesmo.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 497)



[1] Inst. III. 2, 7.
[2] Perg. 21.
[3] Ibid. III. 2, 15.
[4] Ibid. III 2, 8.