sábado, 4 de agosto de 2012

O Aspecto Duplo da Aliança

Quando falamos das partes contratantes da aliança da graça, já demos a entender que a aliança pode ser considerada segundo dois pontos de vista. Há dois aspectos diferentes da aliança, e agora surge a questão: Qual a relação mútua desses dois aspectos? Esta pergunta foi respondida de diferentes maneiras.

A. Uma Aliança Externa e uma Interna.

Há os que distinguem entre uma aliança externa e uma interna. Concebia-se a aliança externa como uma aliança na qual a posição da pessoa depende inteiramente da realização de certos deveres religiosos. Sua posição é inteiramente correta, se ela faz o que dela se requer, mais ou menos no sentido católico romano. Em Israel essa aliança assumiu forma nacional. Talvez ninguém tenha elaborado a doutrina de uma aliança externa com maior coerência do que o fez Thomas Blake. A linha divisória entre a aliança externa e a interna nem sempre foi apresentada da mesma maneira. Alguns ligavam o batismo à aliança externa, e a confissão de fé e a Ceia do Senhor à interna; outros entendiam que o batismo e a confissão de fé pertenciam à aliança externa, e que a Ceia do Senhor é o sacramento da aliança interna. Mas o problema é que toda essa explicação redunda em dualismo na concepção da aliança, dualismo não comprovado pela Escritura; seu produto é uma aliança externa não entrosada com a interna. Cria-se a impressão de que existe uma aliança na qual o homem pode assumir uma posição inteiramente correta sem a fé salvadora; mas a Bíblia ignora tal aliança. Há, na verdade, privilégios e bênçãos externos da aliança, e há pessoas que só gozam esses privilégios e bênçãos; ms casos como esses são anômalos, e não podem ser sistematizados. A distinção entre a aliança externa e a interna não tem sustentação.
Não se deve confundir esse conceito com outro, relacionado com ele, a saber, que há um aspecto externo e um aspecto interno da aliança da graça (Mastricht e outros). De acordo com essa idéia, alguns aceitam as suas responsabilidades pactuais de maneira verdadeiramente espiritual, de coração, enquanto outros as aceitam somente por uma profissão de fé externa, de boca, e, portanto, só estão aparentemente na aliança. Mastricht refere-se a Judas Iscariotes, a Simão o mágico, aos que tem fé temporal e outros. Mas o problema é que, segundo esse conceito, os não eleitos e não regenerados são apenas apêndices externos adicionados à aliança, e são considerados por nós como filhos da aliança, simplesmente devido à nossa visão estreita, mas absolutamente nenhum deles é filho da aliança aos olhos de Deus. Eles não estão realmente na aliança, e, portanto, tampouco poderão tornar-se verdadeiros infratores da aliança. Essa idéia não soluciona esta questão: Em que sentido os não eleitos e não regenerados, que sejam membros da igreja visível, são filhos da aliança também aos olhos de Deus e, portanto, podem tornar-se infratores da aliança?

B. A Essência e a Administração da Aliança.

Outros, como por exemplo Oleviano e Turretino, distinguem entre a essência e a administração da aliança. De acordo com Turretino, aquela corresponde à vocação interna e à igreja invisível formada por meio dessa vocação; e esta, à vocação externa e à igreja visível, composta pelos que são chamados externamente pela Palavra. A administração da aliança consiste somente da oferta da salvação na pregação da palavra e dos outros privilégios de que participam todos os que têm um lugar na igreja, incluindo-se os não eleitos. Todavia, a essência da aliança inclui também o recebimento espiritual de todas as bênçãos da aliança, a vida em união com Cristo, e, portanto, estende-se unicamente aos eleitos. É certo que esta distinção contem um elemento de verdade, mas não é inteiramente lógica e clara. Enquanto que a essência e a forma constituem uma antítese, a essência e a administração não constituem. Elas podem referir-se à igreja invisível e à visível, como Turretino parece pretender, ou ao fim ultimo ou à realização final e ao anuncio da aliança, como Oleviano entende a distinção. Mas, se tem em vista a primeira, seria melhor falar de essência e revelação; e se pretende a ultima, seria preferível falar do objetivo e do meio de sua realização. Aqui igualmente continua sem resposta a questão sobre se os não eleitos são filhos da aliança também aos olhos de Deus, e até que ponto o são.

C. Uma Aliança Condicional e uma Absoluta.

Ainda outros, como por exemplo Koelman, falam de uma aliança condicional e uma absoluta. Koelman acentua o fato de que, quando se faz distinção entre uma aliança externa e uma interna, só se tem em vista uma aliança, e os termos “externa” e “interna” servem simplesmente para salientar o fato de que nem todos estão na aliança exatamente do mesmo modo. Alguns se acham nela por uma confissão meramente externa, para usufruto dos privilégios externos, e outros por aceitá-la de coração, para gozo das bênçãos da salvação. Semelhantemente, ele deseja que se compreenda claramente que, quando afirma que alguns estão na aliança externa e condicionalmente, não pretende dizer que eles não estão realmente na aliança, mas somente que eles não podem obter as bênçãos da aliança prometidas, exceto pelo cumprimento da condição da aliança. É indubitável que esta descrição também contém um elemento de verdade, mas em Koelman ela está de tal modo ligada à noção de uma aliança externa e uma interna, que ele se aproxima perigosamente do erro de aceitar duas alianças, especialmente quando alega que durante a dispensação do Novo Testamento Deus incorpora todas as nações e reinos na aliança.

D. A Aliança como Relação Puramente Legal e como Comunhão de Vida.

Teólogos reformados da estirpe de Kuyper, Bavinck e Honing falam de dois lados da aliança, um externo e o outro interno. O dr. Vos emprega expressões mais específicas, quando distingue entre a aliança como uma relação e um lado moral. Pode-se considerar a aliança como um acordo entre duas partes, com condições e estipulações mútuas, e, portanto, como algo pertencente à esfera legal. Nesse sentido, a aliança pode existir, mesmo quando não se faz nada para realizar o seu propósito, a saber, a condição indicada por ela e para a qual ela chama, tendo-a como o verdadeiro ideal. As partes que vivem sob este acordo estão na aliança, visto que estão sujeitas às estipulações mútuas sobre as quais concordam. Na esfera legal tudo é considerado e regulado de maneira puramente objetiva. O fator determinante nessa esfera é simplesmente a relação que foi estabelecida, e não a atitude que se assume para com essa relação. A relação existe independentemente da inclinação ou falta de inclinação, gostos e aversões da pessoa quanto a ela. Parece que, à luz desta distinção, é preciso responder a pergunta: Quem faz parte da aliança da graça? Se se a pergunta com a relação legal em mente, e só com esta em mente, e realmente culminar na interrogativa, Quem são os que têm o dever de viver na aliança, e de quem se pode esperar que o façam? – a resposta será: Os crentes e seus filhos. Mas se a pergunta for feita com vistas à aliança como comunhão de vida, e assumir esta forma completamente diversa, em quem esta relação legal resulta numa viva comunhão com Cristo? – a resposta só poderá ser: Unicamente nos regenerados, que são dotados do princípio da fé; quer dizer, nos eleitos.
Esta distinção tem base na Escritura. Quase não é necessário citar passagens que provam que a aliança é um pacto na esfera legal, pois é mais que evidente que temos um pacto dessa natureza sempre que duas partes concordam, na presença de Deus, em fazer certas coisas que afetam a sua relação mútua, ou que uma parte promete conferir certos benefícios à outra, pressupondo-se que a última cumpre as condições estabelecidas. Há na Escritura copiosas evidências de que a aliança da graça é um pacto dessa natureza. Há a condição da fé, Gn 15.6, comparado com Rm 4.3 em diante e 20 em diante; Hc 2.4; Gl 3.14-28; Hb 11; e há também a promessa de bênçãos espirituais e eternas, Gn 12.3; 17.7; Is 43.25; Ez 36.27; Rm 4.5 em diante; Gl 3.14, 18. Mas também é evidente que a aliança, em sua plena realização, é mais que isso, a saber, é comunhão de vida. Esta já pôde ser expressa simbolicamente no ato de passar entre as partes do animal imolado quando do estabelecimento da aliança com Abraão, Gn 15.9-17. Além disso, é indicada em passagens como Sl 25.14; 89.33, 34; 103.17, 18; Jr 31.33, 34 (Hb 8.10-12); Ez 36.25-28; 2 Co 6.16; Ap 21.2, 3.
Surge agora a questão quanto à relação entre a permanência do pecador sob a “disciplina da aliança”, como uma relação legal, e sua vida na comunhão da aliança. Não se pode conceber a coexistência de ambas sem alguma ligação interna, mas ambas devem ser consideradas como sendo intimamente relacionadas uma com a outra, a fim de evitar-se todo dualismo. Quando alguém assume a relação pactual voluntariamente, naturalmente as duas devem ir juntas; do contrário, o resultado será uma relação falsa. Mas no caso dos que nascem na aliança a questão é mais difícil. Será então possível uma sem a outra? A aliança será, nesse caso, uma pura e simples relação legal na qual aquilo que devia ser- mas não é – toma o lugar das gloriosas realidades que constituem a razão de ser da aliança? Haverá alguma base razoável para esperar-se que a relação pactual resultará numa comunhão viva; que para o pecador, que por si mesmo é incapaz de crer, a aliança se tornará de fato uma viva realidade? Em resposta a essa questão pode-se dizer que, sem dúvida nenhuma, Deus deseja que a relação pactual redunde numa vida pactual. E Ele próprio garante, com Suas promessas ligadas à semente dos crentes, que isto se efetuará, não no caso de cada indivíduo, mas na semente da aliança, coletivamente. Com base na promessa de Deus, podemos crer que, sob uma fiel administração da aliança, a relação pactual, como regra geral, se concretizará plenamente numa vida pactual.

E. Participação na Aliança como uma Relação Legal.

Ao discutir a participação como membros da aliança como uma relação legal, deve-se ter em mente que a aliança, neste sentido, não é meramente um sistema de exigências e promessas, exigências que devem ser satisfeitas e promessas que devem ser cumpridas; mas que inclui também uma razoável expectativa de que a relação legal e externa levará consigo a gloriosa realidade de uma vida de íntima comunhão com o Deus da aliança. Esta é a única maneira pela qual a idéia da aliança se realiza plenamente.
1. OS ADULTOS NA ALIANÇA. Os adultos só podem entrar nesta aliança voluntariamente, pela fé e confissão. Segue-se disto que, no caso, deles, se a sua confissão não for falsa, a entrada na aliança como uma relação legal coincide com a entrada nela como uma comunhão de vida. Eles não assumem apenas a responsabilidade de cumprir certos deveres externos; tampouco meramente prometem, em acréscimo a isso, que exercerão a fé salvadora no futuro; mas confessam que aceitam a aliança com uma fé viva, e que o seu desejo e intenção é continuar nesta fé. Portanto, eles entram imediatamente na plena vida pactual, e esta é a única maneira pela qual podem entrar na aliança. Esta verdade é implícita ou explicitamente negada por todos aqueles que ligam a confissão de fé a uma aliança meramente externa.
2. OS FILHOS DOS CRENTES NA ALIANÇA. Com respeito aos filhos dos crentes, que entram na aliança por nascimento, naturalmente a situação é tanto diversa. A experiência ensina que, embora entrem por nascimento na aliança como uma relação legal, não significa necessariamente que também entram imediatamente na aliança como comunhão de vida. Nem sequer significa que a relação pactual alguma vez chegara à sua plena realização em suas vidas. Todavia, mesmo no caso deles deve haver razoável segurança de que a aliança não é ou não continuara sendo mera relação legal, com deveres e privilégios externos, apontando para aquilo que devia ser, mas também é, ou com o tempo vira a ser uma realidade viva. Esta segurança esta baseada na promessa de Deus, que é absolutamente confiável, de que Ele agira nos corações dos jovens ligados à aliança com a Sua graça salvadora e os transformara em vivos membros da aliança. A aliança é mais que mero oferecimento da salvação, mais até que o oferecimento da salvação acrescido da promessa de fé no Evangelho. Ela também traz consigo a certeza, baseada nas promessas de Deus, que opera nos filhos da aliança “quando, onde e como lhe apraz”, que a fé salvadora será produzida nos corações. Enquanto os filhos da aliança não revelarem o contrário, temos que partir do pressuposto de que estão de posse da vida pactual. Naturalmente, o curso dos acontecimentos poderá provar que esta vida ainda não está presente; poderá até provar que ela nunca se realizou em suas vidas. As promessas de Deus são dadas à semente dos crentes coletivamente, não individualmente. A promessa de Deus, de continuar a Sua aliança e de leva-la à plena realização nos filhos dos crentes, não significa que Ele dotará da fé salvadora cada um deles, até o último. E se alguns deles permanecerem na incredulidade, deveremos ter em mente o que Paulo diz em Rm 9.6-8: “Nem todos os de Israel são de fato israelitas”; nem todos os filhos de crentes são filhos da promessa. Daí, é necessário lembrar constantemente, mesmo aos filhos da aliança, a necessidade de regeneração e conversão. O simples fato de que alguém está na aliança não traz segurança da salvação. Quando os filhos dos crentes crescem e chegam à idade da discrição, compete-lhes, é claro, aceitar voluntariamente as suas responsabilidades pactuais, com uma sincera confissão de fé. Deixar de faze-lo é, estritamente falando, uma negação da sua relação pactual. Pode-se dizer, pois, que a relação legal em que se acham os filhos dos crentes precede à aliança como comunhão de vida e é um meio para a sua realização. Mas, ao acentuar a significação da aliança como meio para um fim, não devemos frisar exclusivamente, e nem mesmo primordialmente, as exigências de Deus e o resultante dever do homem, mas especialmente a promessa da eficaz operação nos corações dos filhos da aliança. Se salientarmos única ou excessivamente as responsabilidades da aliança, e deixarmos de dar a devida proeminência ao fato de que na aliança Deus dá tudo quanto requer de nós, noutras palavras, que as Suas promessas cobrem todas as Suas exigências, corremos o risco de cair na armadilha do arminianismo.
3. OS NÃO REGENERADOS NA ALIANÇA. Do que acima foi dito infere-se que mesmo pessoas não regeneradas e inconversas podem estar na aliança. Ismael e Esaú estiveram originalmente na aliança, os ímpios filhos de Eli eram filhos da aliança, e a grande maioria dos judeus dos dias de Jesus e dos apóstolos pertencia ao povo da aliança e partilhava as promessas pactuais, apesar de não seguir a fé que caracterizara o seu pai Abraão. Daí surge a questão: Em que sentido essas pessoas podem ser consideradas como pertencentes à aliança? Diz o dr. Kuyper que eles não são partícipes essenciais da aliança, embora estejam realmente nela; e diz o dr. Bavinck que eles estão in foedere (na aliança), mas não são de foedere (da aliança). Pode –se dizer o seguinte, sobre a posição dos não regenerados na aliança.
a. Estão na aliança no que se refere à sua responsabilidade. Porque se acham numa relação pactual legal com Deus, têm o dever de arrepender-se e crer. Se não se converterem a Deus e não aceitarem a Cristo pela fé, quando chegarem à idade da discrição, serão julgados como infratores da aliança. Portanto, a relação especial com Deus em que estão postos, significa responsabilidade adicional.
b. Estão na aliança no sentido de que podem reivindicar as promessas que Deus lhes fez quando estabeleceu a Sua aliança com os crentes e sua semente. Paulo chega a dizer dos seus ímpios compatriotas: “pertence-lhes a adoção, e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas” (Rm 9.4). Como regra geral, Deus reúne os Seus eleitos dentre os que se acham nesta relação pactual.
c. Estão na aliança no sentido de que estão sujeitos às ministrações da aliança. São constantemente admoestados e exortados a viverem de acordo com as exigências da aliança. A igreja os trata como filhos da aliança, oferece-lhes os selos da aliança, e os exorta a fazerem apropriado uso deles. São eles os primeiros convidados a serem chamados para a ceia, os Filhos do reino, aos quais a palavra deve ser pregada primeiramente, mt 8.12; Lc 14.16-24; At 13.46.
d. estão na aliança também na medida em que as bênçãos da aliança constituem objeto de interesse. Embora não experimentem a influência regeneradora do Espírito Santo, estão não obstante, sujeitos a certas operações e influências especiais do Espírito Santo. O Espírito peleja com eles de maneira especial, convence-os do pecado, ilumina-os em certa medida, e os enriquece com as bênçãos da graça comum, Gn 6.3; Mt 13.18-22; Hb 6.4-6.
Deve-se notar que, enquanto que a aliança é eterna e inviolável, aliança que Deus jamais anula, é possível aos que se acham na aliança quebrá-la. Se alguém que se acha na relação pactual legal não ingressar na vida pactual, será ainda considerado membro da aliança. O fato de não cumprir as exigências da aliança envolve culpa e faz dele um infrator da aliança, Jr 31.32; Ez 44.7. isto explica como pode haver, não apenas uma fração temporária, mas uma infração definitiva e final da aliança, se bem que não há nenhuma queda definitiva dos santos.

(Teologia Sistemática - Louis Berkhof)