Os ensinos da Escritura acerca da graça de Deus
ressaltam o fato de que Deus distribui Suas bênçãos aos homens de maneira
livre e soberana, e não em consideração a algum mérito dos homens; que os
homens devem todas as bênçãos da vida a um Deus, perdoador e longânimo; e
especialmente que todas as bênçãos da obra de salvação são dadas gratuitamente
por Deus, e de maneira nenhuma são determinadas pelos supostos méritos dos
homens. Paulo o expressa claramente com as seguintes palavras: “Porque pela
graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus, não de
obras, para que ninguém se glorie”, Ef 2.8, 9. Ele dá forte ênfase ao fato de que
a salvação não é pelas obras, Rm 3.20-28; 4.16; Gl 2.16.
Esta doutrina não ficou
livre de contestação. Nalgumas dos chamados pais da igreja primitiva,
particularmente da igreja oriental, já encontramos um estilo moralista que não
se harmoniza com a ênfase paulina. A tendência que se tornou patente naquela
parte da igreja, finalmente culminou no pelagianismo. A concepção pelagiana da
graça era bastante incomum. Segundo Wiggers, para Pelágio a graça abrange: (a)
“O poder de fazer o bem (possibilitas boni) e, daí, especialmente o
livre arbítrio propriamente dito.” (b) “A revelação, a lei e o exemplo de
Cristo, que tornam a prática da virtude mais fácil para o homem.” (c) “A nossa
capacitação, pela nossa própria vontade, de abster-nos de pecar, e dar-nos Deus
o auxílio da Sua lei e dos Seus mandamentos, e Seu perdão prévio dos pecados
daqueles que voltam para Ele.” (d) “Influências sobrenaturais sobre o cristão,
pelas quais o entendimento recebe a iluminação e a prática da virtude se lhe
torna mais fácil.”[1] Ele não
reconhecia nenhuma operação direta do Espírito de Deus na vontade do
homem, mas somente uma operação indireta na vontade, mediante a
consciência iluminada. Em seu conceito, a operação da graça de Deus era
primordialmente, embora não exclusivamente, externa e natural. Em oposição ao
conceito pelagiano, o de Agostinho é freqüentemente denominado “teologia da
graça”. Conquanto Agostinho admitisse que a palavra “graça” podia ser utilizada
num sentido mais amplo (graça natural), e que mesmo no estado de integridade
era a graça de Deus que possibilitava a Adão reter a sua retidão, a sua maior
ênfase é sempre sobre a graça como dom de Deus ao homem decaído, graça que se
manifesta no perdão do pecado e na renovação e santificação da natureza humana.
Em vista da depravação total do homem, ele considera esta graça como
absolutamente necessária para a salvação. Ela é acionada no homem pela operação
do Espírito Santo, que habita e age nos eleitos e constitui o princípio de
todas as bênçãos da salvação. Ele distinguia entre a graça operante ou proveniente,
e a graça cooperante e subseqüente. A primeira habilita a vontade
a escolher o bem, e a segunda coopera com a vontade já habilitada, para a
prática do bem. Em sua luta com o semipelagianismo, Agostinho salientava o caráter
inteiramente gratuito e irresistível da graça de Deus.
Nos conflitos
subseqüentes, a doutrina agostiniana da graça foi vitoriosa apenas em parte.
Seeberg expressa-se como segue: “Assim, a doutrina da ‘graça somente’ saiu
vitoriosa; mas a doutrina agostiniana da predestinação foi abandonada. A graça
irresistível da predestinação foi expulsa de campo pela graça sacramental do
batismo”.[2]
Durante a Idade Média, os escolásticos deram considerável atenção ao tema da
graça, mas nem sempre concordavam quanto aos pormenores da doutrina. Uns se
aproximaram da concepção agostiniana da graça, outros da concepção
semipelagiana. Em geral se pode dizer que eles entendiam que a graça é mediada
pelos sacramentos, e procuravam combinar com a doutrina da graça uma doutrina
do mérito que comprometia seriamente aquela. A ênfase não era à graça como o
favor de Deus demonstrado aos pecadores, mas à graça como uma qualidade da
alma, que tanto podia ser considerada como incriada (i.e., como o Espírito
Santo), como em-criada, ou produzida nos corações dos homens pelo Espírito
Santo. A graça infusa é básica para o desenvolvimento das virtudes cristãs, e
capacita o homem a adquirir méritos para com Deus, a merecer maior graça,
embora não possa merecer a graça da perseverança. Esta só se pode obter como um
livre dom de Deus. Diferentemente de Agostinho, os escolásticos não mantinham a
conexão lógica entre a doutrina da graça e a doutrina da predestinação.
Os Reformadores retornaram
à concepção agostiniana da graça, mas evitaram o seu sacramentalismo. Eles
passaram a dar de novo ênfase à graça como favor imerecido de Deus para com os
pecadores, e a descreviam de modo a excluir todo mérito da parte do pecador.
Diz Smeaton: “O termo graça, que, na concepção agostiniana, sugeria o
exercício interno do amor, despertado pelas operações do Espírito Santo (Rm
5.5), e que na teologia escolástica viera a indicar uma qualidade da alma, ou
os dotes interiores e os hábitos infusos da fé, do amor e da esperança, agora
veio a ser tomado no sentido mais escriturístico e mais amplo, como o livre, o eficaz
favor que se acha na mente divina”.[3]
Conquanto os Reformadores empregassem o termo graça em conexão com a
justificação, noutros contextos usavam com freqüência a frase “a obra do
Espírito Santo” em lugar do termo graça. Embora todos eles dessem ênfase
à graça no sentido da operação interior e salvífica do Espírito Santo,
particularmente Calvino desenvolveu a idéia da graça comum, isto é, uma graça
que, embora sendo expressão do favor de Deus, não tem efeito salvífico. De
acordo com o esplêndido estudo histórico-dogmático do dr. H. Kuyper sobre
Calvino sobre a Graça Comum,[4]
ele ainda distinguia três classes de graça comum, quais sejam, a graça comum
universal, a graça comum geral e a graça comum pactual. Os arminianos
afastaram-se da doutrina da Reforma sobre este ponto. Segundo eles, Deus dá a
graça suficiente (comum) a todos os homens e, com isso, capacita-os a
arrepender-se e crer. Se a vontade humana cooperar com o Espírito Santo e o
homem realmente se arrepender e crer, Deus, em acréscimo, conferirá ao homem a
graça da obediência evangélica e a graça da perseverança. Assim, este conceito
torna a obra da graça dependente do consentimento da vontade do homem. O que se
chama graça irresistível não existe. Diz Smeaton na obra já citada:
“Afirmava-se que todo ser humano pode obedecer ou resistir; que a causa da
conversão não é o Espírito Santo juntamente com a vontade humana concorrente ou
cooperante; e que esta é a causa imediata da conversão”.[5]
Amyraldus, da Escola de Saumur, na verdade não melhorou a posição arminiana com
a sua suposição, com relação ao decreto geral de Deus, de que o pecador, embora
sem qualquer capacidade moral, tem, todavia, a capacidade natural para crer –
uma desafortunada distinção, que também foi introduzida na Nova Inglaterra por
Edwards, Bellamy e Fuller. Pajon, discípulo de Amyraldus, negava a necessidade
da obra do Espírito Santo na iluminação interna dos pecadores para a sua
conversão salvadora. A única coisa que ele considerava necessária era que o
entendimento, que tem em si mesmo idéias claras suficientes, deve ser atingido
pela luz da revelação externa. O bispo Warburton, em sua obra sobre A
Doutrina da Graça, ou Ofício e Operações do Espírito Santo (The Doctrine of
Grace, or the Office and Operations of the Holy Spirit), não toma
conhecimento de qualquer graça salvadora, na acepção geralmente reconhecida da
expressão, mas limita a palavra “graça” às operações extraordinárias do
Espírito na era apostólica. E Junckheim, em sua importante obra,negava o
caráter sobrenatural da obra de Deus na conversão do pecador, e afirmava que o
poder moral da palavra efetua tudo. O “Avivamento Metodista” na Inglaterra e o
“Grande Despertamento” ocorrido nos Estados Unidos trouxeram consigo a restauração
da doutrina da graça salvadora, embora nalguns casos mais ou menos matizada de
arminianismo. Para Schleiermacher, o problema da culpa do pecado era
praticamente inexistente, desde que ele negava a existência da culpa. E,
conseqüentemente, ele pouco ou nada sabe da graça salvadora de Deus. Diz
Mackintosh: “Esta verdade bíblica central (da misericórdia divina para com os
pecadores), Schleiemacher quase sempre deixa passar em silêncio, ou menciona
apenas perfuntoriamente, o que mostra quão pouco ele a compreende”.[6]
A doutrina da graça divina também fica necessariamente obscurecida na teologia
de Albrecht Ritschl. E se pode dizer que é característico de toda a teologia
“liberal” moderna, com sua ênfase na bondade do homem, seu extremo
distanciamento da necessidade da graça salvadora de Deus. A palavra “graça” aos
poucos foi desaparecendo da palavra escrita e falada de muitos teólogos, e
muita gente do povo dos nossos dias não liga nenhum outro sentido ao termo,
além do de graciosidade. Mesmo Otto chama a atenção para isto, em sua obra
sobre A idéia do Santo (The Idea of the Holy), dizendo que o povo não
percebe o sentido mais profundo da palavra.[7]
A teologia da crise merece crédito por ter salientado de novo a necessidade da
graça divina, com o resultado que a palavra uma vez mais está entrando em uso.
QUESTIONÁRIO PARA
PESQUISA: 1. Sobre quais elementos da ordo salutis recai a ênfase nos
três primeiros séculos? 2. em que estes séculos revelam um desvio rumo ao
moralismo e ao cerimonialismo? 3. Como se entendia a doutrina da justificação?
4. Como a concebia Agostinho? 5. Qual era o seu conceito de fé? 6. Quantas e
quais classes de graça ele distinguia? 7. Em seu sistema, a graça excluía todo
mérito? 8. Ele concebia a graça salvadora como passível de perda? 9. Que
fatores favoreceram o desenvolvimento da doutrina das boas obras? 10. Como os
escolásticos apresentavam a doutrina da justificação? 11. Como andou a ordo
salutis nas mãos dos antinomianos? 12. Como os neonomianos racionalistas e
pietistas a conceberam? 13. Quais outras operações, além das operações
salvadoras, são atribuídas ao Espírito Santo na Escritura? 14. Quais os
diferentes sentidos da palavra “graça” na Escritura? 15. Que é que ela designa,
em conexão com a obra de redenção? 16. Qual a relação entre as doutrinas do
livre arbítrio e da graça na história?
BIBLIOGRAFIA PARA
CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm. III, p. 551-690; Kuyper, Dict. Dogm.,
De Salute, p. 15-20; McPherson, Chr. Dogm. P. 367-371; Kaftan, Dogmatik,
p. 525-532, 651-661; Warfield, The Plan os Salvation; Seeberg, Heilsordnung
(artigo na Realecyclopaedie de Hauck); Pieper, Christl. Dogm. II,
p. 473-498; H. Schmid, Doct. Theol., p. 413-416; K. Dijk, Heilsord
(artigo na Chr. Enc.); Pope, Chr. Theol. II, p. 348-367; Neil, Grace
(artigo em A Protestant Dictionary); Easton, Grace (artigo na Intern.
Standard Bible Enc.); Smeaton, The Doctrine of the Holy Spirit,
p. 1-99, 291-414; Buchanan, The Doctrine of Justification, p. 339-364;
Moffatt, Grace in the New Testament; Bryan, W. S., An Inquiry into
the Need of the Grace of God.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof.
Pg. 426)