1. NO VELHO TESTAMENTO. É evidente que os
escritores do Novo Testamento, ao salientarem a fé como o princípio fundamental
da vida religiosa, não estavam querendo substituir as bases e abandonar o
ensino do Velho Testamento. Eles consideravam Abraão como tipo de todos os
crentes (Rm 4; Gl 3; Hb 11; Tg 2), e os da fé como verdadeiros filhos de Abraão
(Rm 2.28, 29; 4.12, 16; Gl 3.9). A fé nunca é tratada como novidade da nova aliança,
nem tampouco se traça alguma linha de distinção ente a fé das duas
dispensações, Jo 5.46; 12.38, 39; Hc 2.4; Rm 1.17; 10.16; Gl 3.11; Hb 10.38. Em
ambos os Testamentos a fé é a mesma entrega pessoal a Deus, sendo Este visto
não meramente como o supremo bem da alma, mas como o gracioso Salvador do
pecador. A única diferença notória deve-se ao caráter progressivo da obra de
redenção, e isto já é mais ou menos evidente mesmo dentro dos limites do
próprio Velho Testamento.
a. No período patriarcal. Nas primeiras
partes do Velho Testamento há escassas declarações abstratas a respeito do
método de salvação. A essência da religião dos patriarcas é-nos demonstrada
pela ação. A promessa de Deus ocupa o primeiro plano e, no caso de Abraão, se
destina a expor a idéia de que a resposta adequada a ela é a da fé. Toda a vida
de Noé foi determinada pela confiança em Deus e em Suas promessas, mas é
especialmente Abraão que é colocado diante de nós como o crente típico, que se
entrega a Deus com inabalável confiança em Suas promessas e é justificado pela
fé.
b. No período da Lei. A dádiva da
Lei não efetuou uma mudança fundamental na religião de Israel, mas apenas
introduziu uma alteração em sua forma externa. A Lei não substituiu a Promessa;
tampouco foi a fé suplantada pelas obras. Na verdade, muitos israelitas viam a
Lei com espírito puramente legalista e procuravam basear o seu direito à
salvação num escrupuloso cumprimento da lei vista como um corpo de preceitos
externos. Mas, no caso dos que compreenderam a sua natureza real, que
perceberam a interioridade e a espiritualidade da Lei, esta serviu para
aprofundar o sentimento de pecado e para aguçar a convicção de que só da graça
de Deus se podia esperar salvação. Vê-se que a essência da vida piedosa real
consistia crescentemente na confiança sem reserva no Deus da salvação. Embora o
Velho Testamento acentue claramente o temor do Senhor, numerosas expressões,
como, esperar, confiar, buscar refúgio em Deus, olhar para Ele, por nele a
confiança, por nele o coração, e unir-se a Ele, patenteiam que esse temor não é
o medo covarde, mas, sim, o temor reverente e singelo, como de criança, e
salientam a necessidade da amorosa entrega pessoal a Deus, que constitui a
essência da fé salvadora. Mesmo no período da Lei, a fé é distintamente
soteriológica, olhando para a salvação messiânica. É uma confiança no Deus da
salvação, uma firme segurança em Suas promessas quanto ao futuro.
2. NO NOVO TESTAMENTO. Quando o Messias
veio, cumprindo as profecias, trazendo a esperada salvação, tornou-se
necessário que os veículos da revelação de Deus guiassem o povo de Deus para a
pessoa do Redentor. Isto era absolutamente necessário, em vista do fato de que
o cumprimento deu-se de uma forma que muitos não esperavam, e que aparentemente
não correspondia à Promessa.
a. Nos Evangelhos. A exigência de fé
em Jesus como o Redentor prometido e esperado, apareceu como algo
característico da nova era. “Crer” significava tornar-se cristão. Esta
exigência parecia criar um abismo entre a velha dispensação e a nova. O
princípio desta é até descrito como a vinda da fé, Gl 3.23, 25. O que
caracterizava os evangelhos é que neles Jesus está constantemente se oferecendo
como objeto de fé, e isto em conexão com os mais altos interesses da alma. Mais
do que os sinóticos, João dá ênfase aos aspectos mais elevados desta fé.
b. Em Atos. Em Atos dos Apóstolos
requer-se fé no mesmo sentido geral. Pela pregação dos apóstolos, os homens são
levados à obediência da fé em Cristo; e esta fé vem a ser o princípio normativo
da nova comunidade. Diferentes tendências se desenvolveram na igreja e deram
surgimento às diferentes maneiras de tratar a fé que se tornaram manifestas nos
escritos neotestamentários.
c. Na Epístola de Tiago. Tiago teve
que censurar a tendência judaica de conceber a fé agradável a Deus como um
simples assentimento intelectual à verdade, fé que não dava o fruto apropriado.
Sua idéia da fé que justifica não difere da de Paulo, mas ele ressalta o fato
de que esta fé tem que se manifestar em boas obras. Se não, é fé morta e, de
fato, é inexistente.
d. Nas Epístolas de Paulo. Paulo
teve que contender particularmente com o legalismo inveterado do pensamento
judaico. Os judeus jactavam-se da justiça da Lei. Conseqüentemente, o apóstolo
teve que reivindicar o lugar da fé com o único instrumento da salvação. Ao
faze-lo, naturalmente se demorava longamente em Cristo como o objeto da fé,
desde que é unicamente deste objeto que fé deriva a sua eficácia. A fé
justifica e salva somente porque ela se agarra a Jesus Cristo.
e. Na Epístola aos Hebreus. O
escritor de Hebreus também considera Cristo como o objeto próprio da fé
salvadora, e ensina que não há justiça senão pela fé, 10.38; 11.7. Mas o perigo
do qual o escritor desta carta precisava proteger-se não era o de escorregar da
fé para as obras, mas, antes, o de cair da fé, indo parar no desespero. Ele
fala da fé como a “certeza de cousas que se esperam, a convicção de fatos que
se não vêem”, 11.1. Ele exorta os leitores a uma atitude de fé, que os
capacitará a elevar-se do visível para o invisível, do presente para o futuro,
do temporal para o eterno, e que os capacitará a serem pacientes em meio às
tribulações.
f. Nas Epístolas de Pedro. Pedro
também escreve a destinatários que corriam o perigo de cair no desânimo, embora
não de cai de novo no judaísmo. As circunstâncias em que eles se achavam
moveram-no a dar ênfase especial à relação da fé com a salvação consumada, a
fim de avivar dentro dos seus corações a esperança que os sustentaria em suas
presentes provações, a esperança de um glória invisível e eterna. A Segunda
Epístola acentua a importância do conhecimento da fé como uma salvaguarda
contra os erros dominantes.
g. Nos Escritos de João. João teve
que contender com um gnosticismo incipiente, que falsamente salientava o conhecimento
(gnosis) e desprezava a fé simples. Supunha-se que aquele levava consigo
bem-aventurança muito maior que a propiciada por esta. Daí João estabelece como
um dos seus objetivos engrandecer as bênçãos da fé. Ele insiste, não tanto na
certeza e na glória da herança vindoura que a fé garante, como na plenitude do
presente gozo da salvação que ela traz, a fé envolve conhecimento como uma
firme convicção e torna os crentes imediatamente possuidores da nova vida e da
salvação eterna. Nesse ínterim, João não negligencia ao fato de que a fé também
tem alcance futuro.’
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 499)