Ao falarmos dos diferentes
elementos da fé, não devemos perder de vista o fato de que a fé é uma atividade
do homem como um todo, e não de alguma parte dele. Além disso, no exercício da
fé, a alma funciona através das suas faculdades comuns, e não através de alguma
faculdade especial. É um exercício da alma que tem isto em comum com todos os
exercícios similares, que parece simples, e, contudo, num exame mais chegado,
vê-se que é complexo e intrincado. E portanto, para se obter uma apropriada
concepção da fé, é necessário distinguir entre os vários elementos que ela
compreende.
a. Um elemento intelectual (notitia,
conhecimento). Há um elemento de conhecimento na fé, com relação ao qual, os
seguintes pontos devem ser considerados:
(1) O caráter deste conhecimento. O
conhecimento que caracteriza a fé consiste de um reconhecimento positivo da
verdade, em que o homem aceita como verdadeiro tudo quanto Deus diz em Sua
Palavra, e especialmente o que Ele diz a respeito da profunda depravação do
homem e da redenção que há em Cristo Jesus. Contrariamente a Roma, deve-se
manter a posição de que este seguro conhecimento pertence à essência da fé; e
em oposição a teólogos tais como Sandeman, Wardlaw, Alexander, Chalmers e
outros, devemos afirmar que a aceitação intelectual da verdade não é a fé
completa. De um lado, seria valorizar exageradamente o conhecimento próprio da
fé, se fosse considerado como uma compreensão completa dos objetos da fé. Mas,
de outro lado, seria também uma depreciação dele, se fosse considerado como um
simples tomar conhecimento das coisas em que se crê, sem a convicção de que
elas são verdadeiras. Alguns “liberais” modernos têm este conceito e,
conseqüentemente, gostam de falar da fé como uma aventura. É um discernimento
espiritual das verdades da religião cristã que acha resposta no coração do
pecador.
(2) A certeza deste conhecimento.
Conhecimento próprio da fé não deve ser considerado como menos certo que outras
modalidades de conhecimento. O nosso Catecismo de Heidelberg nos assegura que a
fé verdadeira é, entre outras coisas, “um conhecimento certo (seguro,
incontestável)”.[1] Isto se
harmoniza com Hb 11.1, que fala dela como “certeza de cousas que se esperam, a
convicção de fatos que se não vêem”. Ela torna subjetivamente reais e certas
para o crente as coisas futuras e invisíveis. O conhecimento próprio da fé
é-nos mediado e comunicado pelo testemunho de Deus em Sua Palavra, e é aceito
por nós como certo e confiável, com base na veracidade de Deus. A certeza deste
conhecimento tem sua garantia em Deus mesmo e, conseqüentemente, nada pode ser
mais certo. E é absolutamente essencial que seja assim, pois a fé tem que ver
coisas espirituais e eternas, em que a fé é necessária, mais que em qualquer
outra circunstância. É preciso haver certeza quanto à realidade do objeto da
fé; se não houver, a fé será vã. Machen deplora o fato de que muitos não
enxergam este fato nos dias atuais. Diz ele: “O problema todo é que a fé está
sendo considerada como uma benéfica qualidade da alma, sem se levar em conta a
realidade ou irrealidade do seu objeto; e no momento em que se passa a
considerar a fé nestes termos, nesse momento ela é destruída”.[2]
(3)
A medida deste conhecimento. É impossível determinar com precisão quanto
conhecimento se requer absolutamente na fé salvadora. Se a fé salvadora é a
aceitação de Cristo como Ele é oferecido no Evangelho, naturalmente surge a
questão: Quanto do Evangelho o homem precisa conhecer para ser salvo? Ou,
colocadas nas palavras do dr. Machen : “Quais são, para dizê-lo em termos
rústicos, as exigências doutrinárias mínimas para que um homem possa ser
cristão?”[3]
Em geral se pode dizer que deve ser suficiente dar ao crente alguma idéia sobre
o objeto da fé. A verdadeira fé salvadora deve conter pelo menos algum
conhecimento, não tanto da revelação de Deus, como do Mediador e das operações
da Sua graça. Quanto maior conhecimento real a pessoa tiver das verdades da
redenção, mais rica e mais completa será a sua fé, se todas as outras
circunstâncias forem iguais. Naturalmente, aquele que aceita Cristo pela
verdadeira fé, estará igualmente pronto para aceitar o testemunho completo de
Deus, e o desejará. É da máxima importância, principalmente em nossos dias, que
as igrejas vejam que os seus membros tenham uma boa compreensão da verdade, e
não apenas um entendimento nebuloso dela. Particularmente nesta era
antidogmática, elas deveriam ser muito mais diligentes do que têm sido na
instrução doutrinária da sua juventude.
b. Um elemento emocional (assensus,
assentimento). Barth chama a atenção para o fato de que a hora em que o homem
aceita a Cristo pela fé é o momento existencial da sua vida, quando ele pára de
considerar de modo desligado e desinteressado o objeto da fé, e começa a sentir
vívido interesse por ele. Não é necessário adotar a peculiar elaboração que
Barth faz da doutrina da fé, para admitir a verdade do que ele diz sobre este
ponto. Quando alguém abraça a Cristo pela fé, tem uma profunda convicção da
veracidade e da realidade do objeto da fé, sente que ele preenche uma
importante necessidade da sua vida, e tem consciência de um absorvente
interesse por ele – e isto é assentimento. É muito difícil distinguir este
assentimento do conhecimento próprio da fé recém-descrito, porque, como vimos,
exatamente a característica distintiva do conhecimento próprio da fé salvadora
está em que leva consigo uma convicção da verdade e da realidade do seu objeto.
Daí alguns teólogos terem mostrado certa inclinação para limitar o conhecimento
característico da fé a um mero tomar conhecimento do objeto da fé; mas (1) isto
contraria a experiência, pois na verdadeira fé não há conhecimento que não
inclua uma sincera convicção da verdade e da realidade do seu objeto e um
interesse por ele; e (2) isto tornaria o conhecimento que há na fé salvadora
idêntico ao que se vê numa fé puramente histórica, sendo que a diferença entre
a fé histórica e a salvadora está em parte exatamente neste ponto. Porque é tão
difícil fazer uma clara distinção, alguns teólogos preferem falar de apenas
dois elementos da fé salvadora, quais sejam, o conhecimento e a confiança
pessoal. São estes os dois elementos mencionados no Catecismo de Heidelberg,
quando afirma que a verdadeira fé “não é apenas um certo conhecimento pelo qual
eu tenho como verdadeiro tudo que Deus nos revelou em Sua Palavra, mas também
uma confiança sincera que o Espírito Santo produz em mim pelo Evangelho”.[4]
Provavelmente é preferível considerar o conhecimento e o assentimento
simplesmente como dois aspectos do mesmo elemento da fé. Caso em que o
conhecimento poderá ser considerado como a sua faceta mais passiva e receptiva,
e o assentimento como a sua faceta mais ativa e transitiva.
c. Um elemento volitivo (fidúcia,
confiança). Este é o elemento culminante da fé. A fé não é apenas questão de
intelecto, nem de intelecto e sentimentos combinados: também é questão de
vontade, determinando a direção da alma, um ato da alma que parte ao seu objeto
e dele se apropria. Sem esta atividade, o objeto da fé, que o pecador reconhece
como verdadeiro e real, e como inteiramente aplicável às suas necessidades
presentes, permanece fora dele. E na fé salvadora é questão de vida ou morte
que a pessoa se aproprie do objeto da fé. Este terceiro elemento consiste de
uma confiança pessoal em Cristo como Salvador e Senhor, incluindo a rendição da
alma, culpada e corrupta, a Cristo, e o recebimento e apropriação de Cristo
como a fonte de perdão e da vida espiritual. Levando todos estes elementos em
consideração, fica mais que evidente que a sede da fé não pode ser colocada nem
no intelecto, nem nos sentimentos, nem na vontade, de modo exclusivo, mas
unicamente no coração, o órgão central do ser espiritual, do qual procedem as
fontes da vida. Em resposta à indagação se esta fidúcia (confiança)
inclui necessariamente um elemento de segurança pessoal, pode-se dizer, em
oposição aos católicos romanos e aos arminianos, que este é indubitavelmente o
caso. Ela leva consigo, naturalmente, um certo sentimento de segurança e
certeza, de gratidão e alegria. A fé, que em si mesma é certeza, tende a
despertar na alma um senso de garantia e um sentimento de segurança. Na maioria
dos casos, a princípio isto é mais implícito e mal chega a penetrar na esfera
do pensamento consciente; é algo sentido vagamente, e não claramente percebido.
Mas, à medida que a fé se desenvolve e que as atividades da fé aumentam, a
consciência da garantia e segurança que ela traz também se avoluma. Mesmo
aquilo que os teólogos geralmente chamam de “confiança que busca refúgio” (toevluchtnemend
vertrouwen) comunica à alma certa medida de segurança. Isto difere
completamente da posição de Barth, que salienta o fato de que, segundo ele, a
fé é um ato repetido constantemente, é sempre um salto de desespero e um salto
no escuro, e jamais se torna possessão permanente do homem; e que, portanto,
elimina a possibilidade de qualquer segurança subjetiva da fé.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 505)