Como
fenômeno psicológico, a fé, no sentido religioso, não difere da fé em geral. Se
a fé em geral é uma persuasão da verdade fundada no testemunho de alguém em
quem temos confiança e em quem descansamos, e, portanto, apóia-se numa
autoridade, a fé cristã, no sentido mais abrangente, é a persuasão do homem
quanto à veracidade da Escritura, com base na autoridade de Deus. Nem sempre a
Bíblia fala da fé religiosa no mesmo sentido, e isto deu surgimento às
seguintes distinções, na teologia.
a. Fé histórica. Pura e simples
apreensão da verdade, vazia de qualquer propósito moral ou espiritual. O nome
não implica que ela abrange somente fatos e eventos históricos, com a exclusão
das verdades morais e espirituais; nem tampouco que se baseia no testemunho da
história, pois ela pode referir-se a fatos ou eventos contemporâneos, Jo 3.2.
Expressa mais a idéia de que esta fé aceita as verdades da Escritura como uma
pessoa poderia aceitar um relato histórico no qual ela não está interessada
pessoalmente. Esta fé pode ser resultado da tradição, da educação, da opinião
pública, do discernimento da grandeza da Escritura, e doutros fatores mais,
acompanhados pelas operações gerais do Espírito Santo. Pode ser muito ortodoxa
e escriturística, mas não está arraigada no coração, Mt 7.26; At 26.27, 28; Tg
2.19. É uma fides humana, e não uma fides divina (fé humana, não
divina).
b. Fé miraculosa. A fé miraculosa,
assim chamada, é a persuasão produzida na mente de uma pessoa de que um milagre
será realizado por ela ou em favor dela. Deus pode dar a uma pessoa um trabalho
para fazer, que transcende os seus poderes naturais, e capacita-la para
fazê-lo. Toda tentativa de realizar uma obra dessa espécie requer fé. Isso é
bem patente nos casos em que o homem aparece apenas como instrumento de Deus ou
como alguém que anuncia que Deus vai fazer um milagre, pois tal homem precisa
ter plena confiança em que Deus não o deixará passar vergonha. Em última
instância, somente Deus faz milagres, embora possa faze-lo através da
instrumentalidade humana. Esta é a fé em milagres no sentido ativo, Mt
17.20; Mc 16.17, 18. Não é necessariamente acompanhada pela fé salvadora, mas
pode ser. A fé em milagres também pode ser passiva, a saber, a persuasão
de que Deus fará um milagre em favor de alguém. Esta também pode ser ou não
acompanhada pela fé salvadora, Mt 8.10-13; Jo 11.22 (comp. Versículos 25-27);
11.40; At 14.0. Com freqüência é levantada a questão sobre se tal fé tem um
lugar legítimo na vida do homem hoje. Os católicos romanos respondem
afirmativamente, enquanto que os protestantes estão inclinados a dar uma resposta
negativa. Eles assinalam que não há base escriturística para tal fé, mas não
negam que ainda podem ocorrer milagres. Deus é inteiramente soberano neste
aspecto também, e a Palavra de Deus nos induz a aguardar outro ciclo de
milagres no futuro.
c. Fé temporal. Esta é a persuasão
das verdades religiosas que vem acompanhada de algumas incitações da
consciência e de uma agitação dos afetos, mas não tem suas raízes num coração
regenerado. O nome é derivado de Mt 13. 20,21. É a chamada fé temporária porque
não é permanente e não se mantém nos dias de provação e perseguição. Não
significa que não pode durar a vida inteira da pessoa. É bem possível que só
pereça por ocasião da morte, mas então é certo que perecerá. Às vezes esta fé é
denominada fé hipócrita, mas isso não é inteiramente correto, pois ela não
envolve necessariamente hipocrisia consciente. Os que possuem esta fé,
usualmente acreditam que têm a fé verdadeira. Talvez pudéssemos chamar-lhe fé
imaginária, aparentemente genuína, mas de caráter evanescente. Ela difere da fé
histórica no interesse pessoal que mostra pela verdade e na reação dos
sentimentos à verdade. Pode-se experimentar grande dificuldade na tentativa de
distingui-la da verdadeira fé salvadora. Daquele que crê desse modo Cristo
falou: “não tem raiz em si mesmo”, Mt 13.21. É uma fé que não brota da raiz
implantada na regeneração, e, portanto, não é expressão da nova vida entalhada
nas profundezas da alma do pecador regenerado. Em geral pode dizer que a fé
temporal se baseia na vida emocional e busca satisfação pessoal, em vez da
glória de Deus.
d. A verdadeira fé salvadora. A
verdadeira fé salvadora tem sua sede no coração e suas raízes na vida
regenerada. Muitas vezes se faz distinção entre o habitus e o actus
da fé (entre o hábito e o ato da fé). Contudo, por trás destes acha-se a semen
fidei (semente da fé). Esta fé não é primeiramente uma atividade do homem,
mas uma potencialidade produzida por Deus no coração do pecador. A semente da
fé é implantada no homem quando da regeneração. Alguns teólogos falam disto
como habitus da fé, mas outros mais corretamente lhe chamam semen
fidei. Somente depois que Deus implantou a semente da fé no coração do
homem, é que ele pode exercer a fé. É isto, evidentemente, que Barth tem em
mente também, quando, em seu desejo de ressaltar o fato de que a salvação é
exclusivamente obra de Deus, afirma que Deus, e não o homem, é o sujeito da fé.
O exercício consciente da fé forma gradativamente o habitus, e este
adquire uma significação fundamental e determinante para o ulterior exercício
da fé. Quando a Bíblia fala da fé, geralmente se refere à fé como uma atividade
do homem, mas nascida da obra realizada pelo Espírito Santo. Pode-se definir a
fé salvadora como uma certa convicção, produzida pelo Espírito Santo no
coração, quanto à veracidade do Evangelho, e uma segurança (confiança) nas
promessas de Deus em Cristo. Em última análise, é certo, Cristo é o objeto
da fé salvadora, mas Ele nos é oferecido unicamente no Evangelho.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 502)