1. ANTES DA REFORMA. Desde os primeiros
tempos da igreja cristã, a fé sobressaia nas mentes dos lideres como a
grandiosa condição da salvação. A seu lado, o arrependimento logo se tornou um
tanto proeminente. Ao mesmo tempo, houve pouca reflexão, a principio, sobre a
natureza da fé e apenas um ligeiro entendimento da relação da fé com as outras
partes da ordo salutis. Não havia uma definição da fé, que fosse de uso
comum. Conquanto houvesse a tendência de usar a palavra “fé” para denotar a
aceitação da verdade com base num testemunho, nalguns casos também era
empregada num sentido mais profundo, de molde a incluir a idéia de rendição
pessoal à verdade recebida intelectualmente. Os alexandrinos contrastavam pistis
com gnosis, e consideravam aquela primariamente como um conhecimento
incipiente e imperfeito. Tertuliano salientava o fato de que a fé aceita uma
coisa com base numa autoridade, e não porque fosse assegurada pela razão
humana. Ele também usava o termo num sentido objetivo, como designativo daquilo
que deve ser crido – a regula fidei (a regra da fé). Até ao tempo de
Agostinho, pouca atenção foi dada à natureza da fé, embora esta sempre fosse
reconhecida como o preeminente meio para a apropriação da salvação. Agostinho,
porém, deu maior medida de consideração à matéria. Ele falava da fé em mais de
um sentido. Às vezes a considerava como nada mais que o assentimento
intelectual à verdade. Mas concebia a fé evangélica ou justificadora como
incluindo também os elementos de rendição pessoal e amor. Esta fé é
aperfeiçoada pelo amor e, assim, vem a ser o princípio das boas obras. Todavia,
ele não tinha uma concepção apropriada da relação que há entre a fé e a
justificação. Isto se deve em parte ao fato de que ele não distinguia
cuidadosamente entre a justificação e a santificação. A concepção mais profunda
de fé que se acha em Agostinho não foi compartilhada pela igreja em geral.
Havia a tendência de confundir fé com ortodoxia, isto é, com a manutenção de
uma fé ortodoxa. Os escolásticos distinguiam entre uma fides informis
(fé informe), isto é, um simples assentimento intelectual à verdade ensinada
pela igreja, e uma fides formata (charitate) – (fé formada pelo
amor) – isto é, fé à qual foi dada uma forma característica pelo amor, e
considerava esta última como a única fé que justifica, visto que envolve uma
infusão da graça. É somente como fides formata que a fé se torna ativa
para o bem e se torna a primeira das virtudes teológicas pelas quais o homem é
posto na relação certa com Deus. Estritamente falando, é o amor, pelo qual a fé
é aperfeiçoada, que justifica. Assim, com a fé foi feito um alicerce para o
mérito humano. O homem é justificado, não exclusivamente pela imputação dos
méritos de Cristo, mas também pela graça inerente. Tomaz de Aquino define a
virtude da fé como um “hábito da mente, em razão do qual a vida eterna tem
início em nós, considerando que ela leva o intelecto a dar o seu consentimento
às coisas que se não vêem”.
2. DEPOIS DA REFORMA. Enquanto os católicos
romanos davam ênfase ao fato de que a fé justificadora é simples assentimento a
tem sua sede no entendimento, os Reformadores geralmente a consideravam como fidúcia
(confiança), com sua sede na vontade. Contudo, sobre a importância relativa dos
elementos da fé tem havido divergências, mesmo entre os protestantes. Alguns
consideram a definição de Calvino superior à do Catecismo de Heidelberg. Diz
Calvino: “Teremos então uma completa definição da fé se dissermos que ela é um
firme e seguro conhecimento do favor de Deus para conosco, fundado na verdade
de uma promessa gratuita em Cristo, e revelada às nossas mentes e selada em
nossos corações pelo Espírito Santo”.[1]
Por outro lado, o Catecismo de Heidelberg introduz também um elemento de
confiança quando responde à pergunta, “Que é a verdadeira fé?”, como segue: “A
fé verdadeira não é somente um seguro conhecimento pelo qual tomo como verdade
tudo que Deus nos revelou em Sua Palavra, mas também uma firme confiança que o
Espírito Santo produz em meu coração pelo Evangelho, em que, não somente a
outros, mas a mim também, a remissão dos pecados a justiça e a salvação, são
dados gratuitamente por Deus, simplesmente pela graça, unicamente em atenção
aos méritos de Cristo”.[2]
Mas, pelo contexto fica evidente que Calvino pretende incluir o elemento de
confiança no “firme e seguro conhecimento” de que fala. Falando da ousadia com
que podemos aproximar-nos de Deus pela oração, diz ele: “Essa ousadia brota da
confiança no favor e na salvação divinos. Tanto é verdade, que o termo fé é
usado muitas vezes como equivalente de confiança“.[3]
Ele rejeita absolutamente a ficção dos teólogos que insistem em “que a fé é um
assentimento com que qualquer desprezador de Deus pode receber o que é dado na
Escritura”.[4] Mas há um ponto
de diferença mais importante ainda entre a concepção que os Reformadores tinham
da fé e a dos escolásticos. Estes reconheciam na fé mesma alguma eficácia real,
e até meritória (meritum ex congruo, mérito proveniente da
conformidade), ao se dispor para a justificação , procura-la e obtê-la. Por
outro lado, os Reformadores eram unânimes e explícitos ao ensinarem que a fé
justificadora não justifica por qualquer eficácia meritória ou inerente por si
própria, mas somente como o instrumento hábil para receber ou tomar o que Deus
proveu nos méritos de Cristo. Eles consideravam esta fé primariamente como dom
de Deus, e só secundariamente como uma atividade do homem na dependência de
Deus. Os arminianos revelaram uma tendência romanizante, quando conceberam a fé
como uma obra meritória do homem, com base na qual ele é bem aceito por Deus.
Schleiermacher, o pai da teologia moderna, mal menciona a fé salvadora e ignora
absolutamente a fé em termos de confiança como de criança em Deus. Diz ele que
a fé “nada mais é que a incipiente experiência da satisfação da nossa
necessidade espiritual por Cristo”. É Uma nova experiência psicológica, uma
nova tomada de consciência, arraigada numa percepção, não de Cristo, nem de
alguma doutrina, mas da harmonia do Infinito, da Totalidade das coisas, na qual
a alma encontra a Deus. Ritschl concordava com Schleiermacher na afirmação de
que a fé surge como resultado do contato com a realidade divina, mas encontra o
seu objeto, não em alguma idéia ou doutrina, nem na totalidade das coisas, mas
na Pessoa de Cristo, como a suprema revelação de Deus. Não é um assentimento
passivo, mas um princípio ativo. Nela o homem faz da finalidade de Deus, isto
é, o reino de Deus, a sua própria finalidade, começa a trabalhar pelo reino e,
ao faze-lo, acha a salvação. Os conceitos de Scheleiermacher e Ritschl
caracterizam grande parte da teologia “liberal” moderna. A fé, segundo esta
teologia, não é uma experiência trabalhada no céu, mas uma realização humana;
não o mero recebimento de um dom, mas uma ação meritória; não a aceitação de
uma doutrina, mas um ato de “fazer Cristo o Mestre”, numa tentativa de
padronizar a vida segundo o exemplo de Cristo. Este conceito encontrou, porem,
forte oposição na teologia da crise, que salienta o fato de que a fé salvadora
jamais é apenas uma experiência psicológica natural; é, estritamente falando,
um ato de Deus, e não do homem, jamais constitui uma possessão permanente do
homem e é, em si mesma, um simples hohlraum (espaço vazio),
completamente incapaz de efetuar a salvação. Barth e Brunner consideram a fé
simplesmente como a resposta divina, produzida por Deus no homem, à Palavra de
Deus em Cristo, isto é, não tanto a alguma doutrina como à ordem divina ou ao
ato divino na obra da redenção. A fé é a resposta afirmativa, o “sim” ao
chamamento de Deus, um “sim” extraído por Deus mesmo.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg 497)