terça-feira, 9 de outubro de 2012

OBJEÇÕES AO PREMILENISMO

Na discussão do segundo advento, o conceito premilenista já foi submetido a pesquisas e críticas especiais, e os subseqüentes capítulos, sobre a ressurreição e o juízo final, oferecerão outra ocasião mais para uma consideração crítica da formulação premilenista desses eventos. Daí, as objeções levantadas neste ponto serão de natureza mais geral, e, mesmo assim, só poderemos dar atenção a algumas das mais importantes.
a. A teoria se baseia numa interpretação literal dos delineamentos proféticos do futuro de Israel e do reino de Deus, o que é inteiramente insustentável. Isso tem sido repetidamente assinalado em obras sobre profecia, como as de Fairbairn, Riehm e Davidson, na esplêndida obra de David Brown sobre O Segundo Advento (The Second Advent), no importante livro de Waldegrave sobre o Milenismo Neotestamentário (New Testament Millennarianism), e nas obras do doutor Aalders, mais recentes, sobre Os Profetas da Velha Aliança, e A Restauração de Israel Segundo o Velho Testamento (De Profeten dês Ouden Verbonds, e Het Herstel van Israel Volgens het Oude Testament). O último citado é dedicado inteiramente a um minucioso estudo exegético de todas as passagens do Velho Testamento que, de algum modo, falam da futura restauração de Israel. É um obra exaustiva, que merece estudo cuidadoso. Os premilenistas afirmam que nada menos que uma interpretação e um cumprimento literais satisfarão as exigências dessas previsões proféticas; mas os próprios livros dos profetas já contêm indicações que apontam para um cumprimento espiritual, Is 54.13; 61.6; Jr 3.16; 31.31-34; Os 14.2; Mq 6.6-8. A alegação de que os nomes “Sião” e “Jerusalém” nunca são empregados noutro sentido que no sentido literal de que o primeiro sempre denota uma montanha, e o segundo uma cidade, é claramente contrária aos fatos. Há passagens nas quais ambos os nomes são empregados para designar Israel, a igreja de Deus veterotestamentária, Is 49.14; 51.3; 52.1,2. E este emprego dos termos passa direto para o Novo testamento, Gl 4.26; Hb 12.22; Ap 3.12; 21.9. É notável que o Novo Testamento, que é cumprimento do Velho Testamento, não contém nenhum tipo de indicação do restabelecimento da teocracia do Velho Testamento por Jesus, nem tampouco uma única predição positiva e incontestável da sua restauração, ao passo que contém abundantes indicações do cumprimento espiritual das promessas feitas a Israel, Mt 21.43; At 2.29-36; 15.14-18; Rm 9.25, 26; Hb 8.8-13; 1 Pe 2.9; Ap 1.6; 5.10.
Para mais pormenores sobre a espiritualização que se vê na Escritura, pode-se consultar a obra do doutros Wijngaarden sobre O Futuro do Reino (The Future of the Kingdom). O Novo Testamento certamente não favorece o literalismo dos premilenistas. Além disso, esse literalismo os larga em toda sorte de absurdidades, pois envolve a restauração futura de todas as antigas condições históricas da vida de Israel: os grandes poderes mundiais do Velho Testamento (egípcios, assírios e babilônicos) e as nações vizinhas de Israel (moabitas, amonistas, edomitas e filisteus) deverão reaparecer em cena, Is 11.14; Am 9.12; Jl 3.19; Mq 5.5, 6; Ap 18. O templo terá que ser reconstruído, Is 2.2; Mq 4.1,2; Zc 14.16-22; Ez 40-48, os filhos de Zadoque terão que servir de novo como sacerdotes, Ez 44.15-41; 48.11-14, e até as ofertas pelos pecados e delitos terão que ser levadas outra vez ao altar, não para comemoração, (como o querem alguns premilenistas), mas para expiação, Ez 42.13; 43.18-27. E em acréscimo a isso tudo, a situação modificada tornaria necessário a todas as nações visitarem Jerusalém anos após ano, para celebrar a festa dos tabernáculos, Zc 14.16, e mesmo após a semana, para prestar culto a Jeová, Is 66.23.
b. A teoria da posposição, assim chamada, que constitui um elo de ligação no esquema premilenista, é desprovida de toda base escriturística. Segundo ela, João e Jesus proclamaram que o Reino, isto é, a teocracia judaica, estava às portas. Mas, porque os judeus não se arrependeram e não creram, Jesus pospôs o seu estabelecimento até à Sua segunda vinda. O pivô da mudança é colocado por Scofield em Mt 11.20, por outros em Mt 12, e por outros, mais tarde ainda. Antes desse ponto decisivo Jesus não se preocupava com os gentios, mas pregava o Evangelho do Reino a Israel; e depois disso Ele não pregou mais o Reino, mas somente predizia a sua vinda futura e oferecia descanso aos cansados de Israel e dos gentios. Mas não se pode afirmar que Jesus não se preocupava com os gentios antes do suposto ponto decisivo, cf. Mt 8.5-13; Jo 4.1-42, nem que depois Ele deixou de pregar o Reino, Mt 13; Lc 10.1-11. Não há absolutamente prova nenhuma de que Jesus pregou dois evangelhos diferentes, primeiro o do Reino e depois o da graça de Deus; à luz da Escritura, esta distinção é insustentável. Jesus nunca teve em mente o restabelecimento da teocracia veterotestamentária, mas, sim, a introdução da realidade espiritual da qual o reino do Velho Testamento era apenas um tipo, Mt 8.11, 12; 13.31-33; 21.43; Lc 17.21; Jo 3.3; 18.36, 37 (comp. Rm 14.17). Ele não pospôs a tarefa para a qual tinha vindo ao mundo, mas de fato estabeleceu o Reino e se referiu a ele mais de uma vez como uma realidade presente, Mt 11.12; 12.28; Lc 17.21; Jo 18.36, 37 (comp. Cl 1.13).
Toda essa teoria de posposição é uma ficção relativamente recente, e deveras passível de objeção, porque destrói a unidade da Escritura e do povo de Deus de modo injustificável. A Bíblia apresenta a relação entre o Velho e o Novo Testamento como a de tipo e antítipo, de profecia e cumprimento; mas essa teoria sustenta que, embora fosse propósito do Novo Testamento ser o cumprimento do Velho Testamento, veio realmente a ser uma coisa inteiramente diferente. O Reino, isto é, a teocracia do Velho Testamento, foi predito e não foi restaurado, e a igreja não foi predita mas foi estabelecida. Assim, os dois ficam separados, e um deles vem a ser o livro do Reino, e o outro, com exceção dos evangelhos, o livro da igreja. Além disso, temos dois povos de Deus, um natural, e o outro espiritual, um terreno, e o outro celestial, como se Jesus não tivesse falado de “um rebanho e um pastor”, Jo 10.16, e como se Paulo não tivesse dito que os gentios foram enxertados na oliveira, Rm 11.17.
c. Essa teoria também está em flagrante oposição à descrição escriturística dos grandes eventos do futuro, a saber, a ressurreição, o juízo final e o fim do mundo. Como se mostrou anteriormente, a Bíblia apresenta esses grandes eventos como sincronizados. Não há mais a leve indicação de que estão separados por mil anos, à exceção do que se vê em Ap 20.4-6. Está patente que eles coincidem, Mt 13.37-43, 47-50 (separação do bem e do mal no fim, “na consumação do século”, e não mil anos antes); 24.29-31; 25.31-46; Jo 5.25-29; 1 Co 15.22-26; Fp 3.20, 21; 1 Ts 4.15, 16; Ap 20.11-15. Todos eles ocorrem quando da vinda do Senhor, que é também o dia do Senhor. Em resposta a esta objeção, muitas vezes os premilenistas insinuam que o dia do Senhor pode ter mil anos de duração, de maneira que a ressurreição dos santos e o juízo das nações têm lugar na manhã desse longo dia, e a ressurreição dos ímpios e o juízo do grande trono branco ocorrem no entardecer desse mesmo dia. Eles apelam para 2 Pe 3.8 “para com o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia”. Mas, dificilmente isso poderá provar o ponto, pois facilmente o feitiço poderia virar contra o feiticeiro aqui. Poder-se-ia usar a mesma passagem para provar que os mil anos de Ap 20 são apenas um só dia.
d. Não há qualquer fundamento bíblico para o conceito premilenista de uma dupla ou até tripla ou quádrupla ressurreição, como a sua teoria requer, nem para espalhar o juízo final por um período de mil anos, dividindo-o em três juízos. É, para dizer o mínimo, muito duvidoso que as palavras. “Esta é a primeira ressurreição”, em Ap 20.5, se refiram a uma ressurreição física. O contexto não requer, e nem mesmo favorece esta idéia. O que poderia favorecer a teoria de uma dupla ressurreição é o fato de que os apóstolos muitas vezes falam unicamente da ressurreição dos crentes, e de modo nenhum se referem à dos ímpios. Mas isto se deve ao fato de que eles estão escrevendo para as igrejas de Jesus Cristo, aos contextos em que levantam o assunto da ressurreição, e ao fato de que desejam dar ênfase ao seu aspecto soteriológico, 1 Co 15; 1 Ts 4.13-18. Outras passagens falam claramente da ressurreição dos justos e dos ímpios num só fôlego, Dn 12.2; Jo 5.28, 29; At 24.15. Voltaremos a considerar esta matéria no próximo capitulo.
e. A teoria premilenista se enreda em todas as espécies de dificuldades insuperáveis, com a sua doutrina do milênio. É impossível entender como uma parte da velha terra e da humanidade pecadora poderá coexistir com uma parte da nova terra e de uma humanidade já glorificada. Como poderão os santos em corpos glorificados ter comunhão com pecadores na carne? Como poderão os santos glorificados viver nesta atmosfera sobrecarregada de pecado e em cenário de morte e decadência? Como poderá o Senhor da glória, o Cristo glorificado, estabelecer o Seu trono na terra enquanto esta não for renovada? O capítulo vinte e um de Apocalipse nos informa que Deus e a igreja dos remidos tomarão como seu lugar de habitação a terra depois que forem feitos novos céus e nova terra; então, como se pode afirmar que Cristo e os santos habitarão ali mil anos antes dessa renovação? Como poderão os santos e os pecadores na carne manter-se na presença do Cristo glorificado, sabendo-se que mesmo Paulo e João foram completamente esmagados pela visão dele. At 26.12-14; Ap. 1.17? Diz com verdade Beet: “Não podemos conceber misturados no mesmo planeta uns que ainda terão que morrer e outros que já passaram pela morte e não morrerão mais. Tal confusão da era atual com a era por vir é extremamente improvável”.[1] E Brown exclama: “Que confuso estado de coisas é este! Que detestável mistura de coisas totalmente incoerentes umas com as outras!”[2]
f. A única base escriturística para essa teoria é Ap 20.1-6, depois de se ter despejado aí um conteúdo veterotestamentário. É uma base muito precária, por várias razões. (1) esta passagem ocorre num livro eminentemente simbólico e é reconhecidamente muito obscura, como se pode inferir das diferentes interpretações dela feitas. (2) A interpretação literal desta passagem, como dada pelos premilenistas, leva a uma conceituação que não encontra suporte em nenhum outro lugar da Escritura, mas é até contraditada pelo restante do Novo Testamento. Esta é uma objeção fatal. Uma boa exegese requer que as passagens obscuras da Escritura sejam lidas à luz doutras mais claras, e não vice-versa. (3) Mesmo a interpretação literal dos prémilenistas não é coerentemente literal, pois entende a corrente do versículo 1 e também, conseqüentemente, a prisão do versículo 2 figuradamente, muitas vezes concebe os mil anos como um longo mas indefinido período, e transforma as almas do versículo 4 em santos ressurretos. (4) Estritamente falando, a passagem não diz que as classes referidas (os santos mártires e os que não adoraram a besta) ressuscitaram dos mortos, mas simplesmente que viveram e reinaram com Cristo. E se declara que este viver e reinar com Cristo constitui a primeira ressurreição. (5) Não há absolutamente nenhuma indicação nestes versículos de que Cristo e os Seus santos estão exercendo governo na terra. À luz de passagens como Ap 4.4 e 6.9, é muito mais provável que a cena se passa no céu. (6) Também merece nota que a passagem não faz menção nenhuma da Palestina, de Jerusalém, do templo e dos judeus, os cidadãos naturais do reino milenar. Não há nenhuma insinuação de que esses elementos estejam de algum modo relacionados com este reinado de mil anos. Para uma interpretação minuciosa desta passagem, do ponto de vista amilenista, remetemos o leitor a Kuyper, Bavinck, De Moor, Dijk, Greydanus, Vos e Hendriksen.
(Berkhof, L – Teologia Sistemática Pg720)



[1] The Last Things,  pg. 88.
[2] The Second Advent,  p. 384.