Distinguimos dois elementos na
justificação, um negativo e o outro positivo.
1. O ELEMENTO NEGATIVO. Há primeiramente um elemento negativo
na justificação, qual seja, a remissão dos pecados com base na obra expiatória
de Jesus Cristo. Este elemento se baseia mais particularmente, embora não
exclusivamente, na obediência passiva do Salvador. Calvino e alguns dos
teólogos reformados mais antigos falam ocasionalmente como se este elemento
constituísse a justificação completa. Isto se deve, em parte, à descrição
veterotestamentária, na qual este lado da justificação está decisivamente no
primeiro plano, Sl 32.1; Is 43.25; 44.22; Jr 31.34, e em parte à sua reação
contra Roma que não faz justiça ao elemento da graça e do perdão gratuito.
Contudo, em reação ao arminianismo, a teologia reformada sempre sustentou que a
justificação é mais que perdão. Tanto o Velho Testamento como o Novo dão prova
de que o perdão dos pecados é um elemento importante da justificação, como se
vê em passagens como Rm 4.5-8; 5.18, 19; Gl 2.17.
O perdão concedido na justificação
aplica-se a todos os pecados, passados, presentes e futuros, e, desse modo,
envolve a remoção de toda culpa e de toda penalidade. Isto decorre do fato de
que a justificação não admite repetição, e de passagens como Rm 5.21; 8.1,
32-34; Hb 10.14; Sl 103.12; Is 44.22, que nos asseguram que ninguém pode lançar
nada na conta do homem justificado, que isento da condenação, e que é
constituído da vida eterna. Também está implícito na resposta à pergunta n.º 60
do Catecismo de Heidelberg. Esta concepção de justificação, embora
eminentemente escriturística, não está livre de dificuldade. Os crentes
continuam a pecar depois de justificados, Tg 3.2; 1 Jo 1.8, e, como os exemplos
bíblicos mostram claramente, muitas vezes caem em pecados graves. Daí, não
admira que Barth goste de acentuar o fato de que o homem justificado continua
sendo um pecador, se bem que um pecador justificado. Cristo ensinou os Seus
discípulos a orar diariamente pelo perdão dos pecados, Mt 6.12, e os santos da
Bíblia estão freqüentemente suplicando e obtendo perdão, Sl 32.5; 51.1-4;
130.3, 4. Conseqüentemente, não é surpreendente que alguns se sintam
constrangidos a falar de uma justificação repetida. Dos dados para os quais
chamamos a atenção, a igreja de Roma infere que os crentes precisam, de algum
modo, expiar os pecados cometidos depois do batismo, e, daí, crê também numa
justificação crescente. Por outro lado, os antinomianos, desejando honrar a
ilimitada graça perdoadora de Deus, afirmam que os pecados dos crentes não são
atribuídos como tais ao novo homem, mas unicamente ao velho homem, e que lhes é
completamente desnecessário orar pelo perdão dos pecados. Por temor desta
posição, até alguns teólogos reformados sentiam escrúpulos quanto a ensinar que
os futuros pecados dos crentes também são perdoados na justificação, e falavam
de uma justificação repetida, e mesmo de uma justificação diária.[1]
Contudo, a posição usual da teologia reformada (calvinista) é que, na
justificação, Deus deveras remove a culpa, mas não a culpabilidade do pecado,
isto é, Ele remove a justa sujeição do pecador à punição, mas não a
culpabilidade inerente de quaisquer pecados que ele continue praticando. Esta
permanece e, portanto, produz sempre nos crentes um sentimento de culpa, de
separação de Deus, de tristeza, de arrependimento, e assim por diante. Daí,
eles sentem a necessidade de confessar os seus pecados, mesmo os pecados da sua
mocidade, Sl 25.7; 51.5-9. O crente que está realmente cônscio do seu pecado, sente
no íntimo uma compulsão que o impele a confessa-lo e a buscar a consoladora
segurança do perdão. Alem disso, tal confissão e oração não é apenas uma
necessidade sentida subjetivamente, mas também uma necessidade objetiva. A
justificação e, essencialmente, uma declaração acerca do pecador no tribunal de
Deus, mas não é meramente isso; é também um actus transiens (ato em
transição) que penetra a consciência do crente. A sentença divina de absolvição
é dada a conhecer ao pecador e desperta a jubilosa consciência do crente. A
sentença divina de absolvição é dada a conhecer ao pecador e desperta a
jubilosa consciência do perdão dos pecados e do favor de Deus. Ora, esta
consciência do perdão e de um renovado relacionamento filial muitas vezes é
perturbada e obscurecida pelo pecado, e de novo é despertada e fortalecida pela
confissão e oração, e por um renovado exercício da fé.
2. O ELEMENTO POSITIVO. Há também um elemento positivo na
justificação, o qual se baseia mais particularmente na obediência ativa de Cristo.
Naturalmente, aqueles que, como Piscator e os arminianos, negam a imputação da
obediência ativa de Cristo ao pecador, com isso negam também o elemento
positivo da justificação. De acordo com eles, a justificação deixa o homem sem
nenhum direito à vida eterna, coloca-o simplesmente na situação de Adão antes
da Queda, embora, segundo os arminianos, debaixo de uma lei diferente, a lei da
obediência evangélica, e deixa a cargo do homem fazer por merecer a aceitação
da parte de Deus e a vida eterna, pela fé e obediência. Mas é evidente, na
Escritura, que a justificação é mais que o perdão puro e simples. A Josué, o
sumo sacerdote, que, como representante de Israel, estava perante o Senhor
usando vestes sujas, disse Jeová: “Eis que tenho feito que passe de ti a tua
iniqüidade (elemento negativo), e te vestirei de finos trajes” (elemento
positivo), Zc 3.4. Segundo At 26.18, obtemos pela fé “remissão de pecados e
herança entre os que são santificados”. Romanos 5.1, 2 nos ensina que a fé
nos traz não somente paz com Deus, mas também acesso a Deus e alegria na
esperança da glória. E segundo Gl 4.5, Cristo nasceu sob a lei também “a
fim de que recebêssemos a adoção de filhos”. Neste elemento positivo podemos
distinguir duas partes:
a. A adoção de filhos. Os crentes são,
antes de tudo, filhos de Deus por adoção. Isto implica, naturalmente, que eles
não são filhos de Deus por natureza, como os “liberais” modernos gostariam de
fazer-nos acreditar, pois ninguém iria adotar os seus próprios filhos. Esta
adoção é um ato legal, pelo qual Deus coloca o pecador no estado de filho, mas
não o transforma interiormente, como tampouco os pais mudam, pelo mero ato de
adoção, a vida interior de um filho adotado. A mudança efetuada tem que ver com
a relação em que o homem se acha com Deus. Em virtude da sua adoção, os crentes
são, por assim dizer, iniciados na própria família de Deus, ficam sob a lei da
obediência filial e, ao mesmo tempo, passam a ter direito a todos os
privilégios da filiação. Devemos distinguir cuidadosamente a doação da filiação
moral dos crentes, filiação resultante da regeneração e da santificação. Eles
não são somente adotados por Deus para serem Seus filhos, mas também são
nascidos de Deus. Naturalmente, as duas coisas não podem separar-se. São
mencionadas juntas em Jo 1.12; Rm 8.15, 16; Gl 3.26, 27; 4.5, 6. Em Rm 8.15 é
empregado o termo hyothesia (de hyios e tithenai), que
significa “colocar ou posicionar como filho”, e no grego clássico é sempre
empregado para denotar uma colocação objetiva na posição de filho. O versículo
subseqüente contém a palavra tekna (de tikto, “gerar”), que
qualifica os crentes como gerados por Deus. Em Jo 1.12 a idéia de adoção é
expressa pelas palavras: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder (exousian
edoken) de serem feitos filhos de Deus”. A expressão aí empregada significa
“dar direito legal”. Imediatamente após, no versículo 13, o escritor fala da
filiação ética, devida à regeneração. A conexão entre ambas é exposta
claramente em Gl 4.5, 6...”a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. E,
porque vós sois filhos (por adoção), enviou Deus aos nossos corações o Espírito
de seu Filho, que clama: Aba, Pai”. O Espírito de Cristo nos regenera e nos
santifica e nos move a dirigir-nos a Deus cheios de confiança, vendo-o como o Pai
que é.
(Teologia Sistemática –
Louis Berkhof Pg. 516)