Já
nos primeiros tempos da igreja cristã, havia a tendência de atribuir certo
mérito às boas obras, mas a doutrina dos méritos realmente se desenvolveu na
Idade Média. Ao tempo da Reforma, ela era muito proeminente na teologia
católica romana e foi impelida a ridículos extremos na vida prática. Os
Reformadores logo mediram forças com a igreja de Roma sobre este ponto.
a. A posição de Roma sobre o ponto em
questão. A Igreja Católica Romana distingue entre o meritum de condigno
(mérito por ser digno), que representa dignidade e valor inerentes, e o meritum
de congruo (mérito por ser apropriado, proporcional, conveniente), que é
uma espécie de semi-mérito, uma coisa boa para ser recompensada. O primeiro
liga-se unicamente a obras praticadas depois da regeneração, com o auxílio da
graça divina, e é um mérito que intrinsecamente merece a recompensa e a recebe
das mãos de Deus. O último liga-se àquelas disposições ou obras que o homem
pode desenvolver ou praticar antes da regeneração, em virtude de uma simples
graça preveniente, e é um mérito que torna côngruo ou próprio para Deus
recompensar o praticante dessas obras infundindo graça em seu coração. Contudo,
desde que as decisões do Concílio de Trento são dúbias sobre este ponto, há
alguma incerteza quanto à posição exata da igreja de Roma. Parece que a idéia
geral é que a capacidade para praticar boas obras, no sentido estrito da
palavra, provém da graça infundida no coração do pecador por amor a Cristo; e
que, depois, estas boas obras merecem, isto é, dão ao homem o justo direito à
salvação e à glória. A igreja de Roma vai até mesmo além, e ensina que os fiéis
podem praticar obras de supererrogação – podem fazer mais do que o necessário
para a sua própria salvação e, assim, podem estabelecer um depósito de boas
obras, que podem vir em benefício de outros.
b. A posição escriturística sobre este
ponto. A Escritura ensina claramente que as boas obras dos crentes não são
meritórias, no sentido próprio da palavra. Devemos ter em mente, porém, que a
palavra “mérito” é empregada com duplo sentido, o estrito e próprio, e o outro
livre. Estritamente falando, uma obra meritória é uma obra à qual, por causa do
seu valor e da sua dignidade intrínsecas, a recompensa é devida justamente, em
função da justiça comutativa. Falando de modo livre, porém, uma obra merecedora
de aprovação e à qual está ligada uma recompensa (por promessa, acordo ou de
outro modo), também às vezes é chamada meritória. Obras deste tipo são dignas
de louvor e são recompensadas por Deus. Mas, por mais que seja assim,
certamente elas não são meritórias no sentido estrito da palavra. Elas não
fazem, por seu valor moral intrínseco, de Deus um devedor àquele que as
pratica. Pela estrita justiça, as boas obras dos crentes não merecem nada. Eis
algumas passagens mais conclusivas para provar o ponto em foco: Lc 17.9, 10;Rm
5.15-18; 6.23; Ef 2.8-10; 2 Tm 1.9, Tt 3.5. Estas passagens mostram claramente
que os crentes não recebem a herança da salvação por ser esta devida a eles em
virtude das suas boas obras, mas unicamente como um dom gratuito de Deus.
Também atende à razão que tais obras não podem ser meritórias, pois: (1) Os
crentes devem toda a sua vida a Deus e, portanto, não podem ter merecimento de
coisa alguma por darem a Deus simplesmente o que lhe é devido, Lc 17.9, 10 (2)
Eles não podem praticar boas obras com suas próprias forças, mas somente com as
forças que Deus lhes transmite dia após dia; e, em vista disto, eles não podem
esperar crédito por essas obras, 1 co 15.10; Fp 2.13. (3) Mesmo as melhores
obras dos crentes continuam sendo imperfeitas nesta vida, e todas as obras juntas
representam apenas uma obediência parcial, ao passo que a lei requer obediência
perfeita, e nada menos que isso poderá satisfaze-la, Is 64.6; Tg 3.2. (4)
Ademais, as boas obras dos crentes estão totalmente fora de proporção em
relação à recompensa da glória eterna. Uma obediência temporal e imperfeita
nunca pode merecer uma recompensa eterna e perfeita.
(TEOLOGIA SISTEMÁTICA – LOUIS BERKHOF)