a. Relação da fé com a justificação.
Diz a Escritura que somos justificados dia pisteos, ek pisteos, ou pistei
(dativo), Rm 3.25, 28, 30; Gl 2.16; Fp 3.9. A preposição dia salienta o
fato de que a fé é o instrumento pelo qual nos apropriamos de Cristo e Sua
justiça. A preposição ek indica que a fé precede logicamente à nossa
justificação pessoal, de sorte que, por assim dizer, esta tem sua origem na fé.
O dativo é empregado no sentido instrumental. A Escritura nunca diz que
justificados dia tem pistin, por causa da fé. Quer dizer que a fé nunca
é apresentada como a base da nossa justificação. Se fosse, a fé teria que ser
considerada como uma obra meritória do homem. E isto seria a introdução da
doutrina da justificação pelas obras, à qual o apostolo coerente e
consistentemente se opõe, Rm 3.21, 27, 28; 4.3, 4; Gl 2.16, 21; 3.11. Na
verdade se nos diz que a fé que Abraão tinha lhe foi imputada para justiça, Rm
4.3, 9, 22; Gl. 3.6, mas, em vista da argumentação completa, isto certamente
não pode significar que, no caso dele, a fé propriamente dita, como obra, tomou
o lugar da justiça de Deus em Cristo. O apostolo não deixa lugar a dúvida
quanto ao fato de que, estritamente falando, unicamente a justiça de Cristo, a
nós imputada, é a base da nossa justificação. Mas a fé é tão absolutamente
receptiva, na apropriação dos méritos de Cristo, que pode ser colocada
figuradamente no lugar dos méritos de Cristo, que ela recebe. A “fé”, então,
fica equivalendo ao conteúdo da fé, sito é, aos méritos da justiça de Cristo.
Muitas vezes se diz, porém que os
ensinamentos de Tiago conflitam com os de Paulo sobre este ponto, dando claro
apoio à doutrina da justificação pelas obras em Tg 2.14-26. Várias tentativas
têm sido feitas para harmonizar os dois. Alguns partem do pressuposto de que
tanto Paulo como Tiago falam da justificação do pecador, mas que Tiago acentua
o fato de que a fé que não se manifesta em boas obras não é a fé verdadeira, e,
portanto, não é a fé que justifica o pecador. Isto, sem dúvida, é certo. A
diferença entre as exposições de Paulo e Tiago inquestionavelmente se deve, em
parte, à natureza dos adversários que tiveram que defrontar. Paulo teve que
combater os legalistas, que procuravam basear a sua justificação, ao menos em
parte, nas obras da lei. Tiago, por outro lado, mediu forças com os
antinomianos, que alegavam ter fé, mas cuja fé era um simples assentimento
intelectual à verdade (2.19), e negavam a necessidade da prática de boas obras.
Portanto, ele dá ênfase ao fato de que a fé sem obras é uma fé morta, e,
conseqüentemente, não é, de modo algum, a fé que justifica. A fé que justifica
é frutífera, produzindo boas obras. Mas, pode ser que se objete que isto não
explica a dificuldade da toda, visto que Tiago diz explicitamente no versículo
24 que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé, e o ilustra
com o exemplo de Abraão, que “foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o
próprio filho Isaque” (versículo 21). “Vês”, diz Tiago no vers. 22, “como a fé
opera juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se
consumou”. Contudo, é mais que evidente que, neste caso, o escritor não está
falando da justificação do pecador, pois o pecador Abraão fora justificado
muito antes de oferecer Isaque em sacrifício (cf. Gn 15), mas sim, de uma
ulterior justificação do crente Abraão. A fé verdadeira se manifestará nas boas
obras, e estas darão testemunho diante dos homens da justiça (isto é, da
retidão no viver) daquele que possui tal fé. A justificação do justo pelas
obras confirma a justificação pela fé. Se Tiago quisesse de fato dizer, neste
trecho da carta, que Abraão e Raabe foram justificados com a justificatio
peccatoris (justificação do pecador) com base em suas obras, não somente
estaria em conflito com Paulo, mas também ele próprio seria contraditório, pois
ele afirma explicitamente que Abraão foi justificado pela fé (cf. o versículo
23).
b. Expressões teológicas empregadas para
descrever a relação da fé com a justificação. Consideraremos aqui
especialmente três expressões.
(1) Causa instrumental. A princípio
este nome foi usado de maneira muito generalizada, mas posteriormente encontrou
considerável oposição. Foi levantada a questão sobre a fé é instrumento de Deus
ou do homem. E se dizia: De Deus não pode ser, desde que a fé referida não é de
Deus,; tampouco pode ser do homem, pois a justificação não é um feito do homem,
mas de Deus. Todavia, devemos ter em mente, (a) que, de acordo com o claro
ensino da Bíblia, somos justificados pela fé, dia pisteos, e que esta
preposição (dia) só pode ser entendida no sentido instrumental, Rm 3.28; Gl
3.8; (b) que a Bíblia diz explicitamente que Deus justifica o pecador pela fé,
e, portanto, apresenta a fé como instrumento de Deus, Rm 3.30; e (c) que a fé
também é apresentada como instrumento do homem, como o meio pelo qual ele
recebe a justificação, Gl 2.16. A fé pode ser considerada como instrumento de
Deus num sentido duplo. É um dom de Deus, sendo produzida no pecador para a
justificação. Além disso, produzindo a fé no pecador, Deus leva a declaração do
perdão ao seu coração ou à sua consciência. Mas a fé é também um instrumento do
homem, pelo qual ele se apropria de Cristo e de todos os Seus preciosos dons,
Rm 4.5; Gl 2.16. Esta é também a descrição da matéria que encontramos na
Confissão Belga,[1] e no catecismo
de Heidelberg.[2] Pela fé
abraçamos a Cristo e ficamos em contato com Ele, que é a nossa justiça. O nome
“causa instrumental” é normalmente utilizado nas confissões protestantes.* Todavia, os teólogos reformados
(calvinistas) preferem evitá-lo, para proteger-se do risco de darem a impressão
de que a justificação depende de algum modo da fé como obra do homem.
(2) Órgão de apropriação. Este nome
expressa a idéia de que, pela fé, o pecador se apropria da justiça de Cristo e
estabelece uma união consciente entre ele e Cristo. Os méritos de Cristo
constituem o dikaioma, a base legal sobre a qual a declaração formal de
Deus na justificação repousa. Pela fé o pecador se apropria da justiça do
Mediador já imputada idealmente a ele no pactum salutis; e, com base
nisto, ele agora é justificado formalmente perante Deus. A fé justificada na
medida em que toma posse de Cristo. O nome “órgão de apropriação” inclui a
idéia instrumental e, portanto, está em perfeita harmonia com as declarações
que se acham em nossos padrões confessionais. Tem uma vantagem sobre o nome
mais comum em que exclui a idéia de que a fé é, nalgum sentido, a base da
justificação. Pode-se-lhe chamar de órgão de apropriação em dois sentidos: (a)
É o órgão pelo qual tomamos os méritos de Cristo, deles nos apropriamos, e os
aceitamos como a base meritória da nossa justificação. Como tal, ela precede
logicamente à justificação. (b) É também o órgão pelo qual percebemos
conscientemente a nossa justificação e passamos a ter posse da justificação
subjetiva. De modo geral, este nome merece preferência, embora devamos ter em
mente que, estritamente falando, a fé é o órgão pelo qual nos apropriamos da
justiça de Cristo como base da nossa justificação, e não o órgão pelo qual nos
apropriamos da justificação propriamente dita.
(3) Conditio sine qua non (condição
indispensável). Este nome, sugerido por alguns teólogos reformados
(calvinistas), não teve muito apoio. Expressa a idéia, que em si mesma é
perfeitamente verdadeira, de que o homem não é justificado sem a fé, e de que a
fé é uma condição indispensável para a justificação. O nome nada expressa de
positivo e, ademais, está sujeito a mal-entendidos.
(Teologia Sistemática – Louis
Berkhof Pg. 523)
[1] Artigo
XXII.
[2]
Perguntas 60 e 61.
* Não assim, porém, os símbolos da fé da Igreja Presbiteriana
(Westminster). Cf. a Confissão de Fé, capítulo XI, Seções I e IIm o Catecismo
Maior, perguntas 71 a
73, e o Breve Catecismo, Perguntas 33 e 86. Nota do tradutor.