1. IMPERFEITA EM GRAU. Quando dizemos que a santificação é
imperfeita nesta vida, não queremos dizer que é imperfeita em partes, como se
somente uma parte do homem santo, que se origina na regeneração, fosse afetada.
É a totalidade do novo homem, mas ainda não desenvolvida, que deve crescer rumo
à plena estatura. Uma criança recém-nascida é, salvo exceções, perfeita em suas
partes, mas não está no grau de desenvolvimento ao qual foi destinada.
Justamente assim, o novo homem é perfeito em suas partes, mas, na presente
vida, continua imperfeito no grau de desenvolvimento espiritual. Os crentes
terão que combater o pecado enquanto viverem, 1 rs 8.46; Pv 20.9; Ec 7.20; Tg
3.2; 1 jo 1.8.
2. NEGAÇÃO DESTA IMPERFEIÇÃO PELOS PERFECCIONISTAS.
a. A doutrina do perfeccionismo. Falando em
termos gerais, esta doutrina pretende que se pode alcançar a perfeição
religiosa na presente existência. É ensinada em várias formas pelos pelagianos,
católicos romanos ou semipelagianos, arminianos, wesleyanos, seitas místicas
como as labadistas, dos quietistas, dos quacres e outras, por alguns dos
teólogos de Oberlin, como Mahan e Finney, e por Ritschl. Todos eles concordam
em sustentar que é possível aos crentes, nesta vida, atingir um estado em que
cumprem as exigências da lei, sob a qual agora vivem, ou sob essa lei nos
termos em que foi ajustada à sua capacidade e às suas necessidades atuais, e, conseqüentemente,
libertar-se do pecado. Eles diferem, porém: (1) Em sua idéia do pecado, sendo
que os pelagianos, em distinção de todos os demais, negam a corrupção inerente
do homem. Contudo, todos concordam na exteriorização do pecado. (2) Em sua concepção
da lei, que os crentes não estão obrigados a cumprir, sendo que os arminianos,
incluindo-se os wesleyanos, diferem de todos os outros na afirmação de que esta
não é a lei moral original, mas as exigências do Evangelho ou a nova lei da fé
e da obediência evangélica. Os católicos romanos e os teólogos de Oberlin
afirmam que se trata da lei original, mas admitem que as exigências desta lei
são ajustadas aos poderes deteriorados do homem e à sua capacidade atual. E
Ritschl descarta toda a idéia de que o homem está sujeito a uma lei imposta
externamente. Ele defende a autonomia da conduta moral, e afirma que não
estamos debaixo de nenhuma lei, senão a que evolui da nossa própria disposição
moral no transcurso das atividades exercidas para o cumprimento da nossa
vocação. (3) Em sua idéia da dependência em que o pecador está da graça
renovadora de Deus para ter capacidade para cumprir a lei. Todos, exceto os
pelagianos, admitem que, nalgum sentido, ele depende da graça divina para
alcançar a perfeição.
É muito significativo que todas as
principais teorias perfeccionistas (com a única exceção da pelagiana, que nega
a corrupção inerente do homem) julgam necessário abaixar o padrão de perfeição
e não responsabilizam o homem por muita coisa que indubitavelmente é exigida
pela lei moral original. E é igualmente significativo que eles sentem a
necessidade de exteriorizar a idéia de pecado, quando alegam que somente o mau
procedimento consciente pode ser considerado pecaminoso, e se recusam a
reconhecer como pecado grande parte daquilo que é exposto como tal na
Escritura.
b. Provas bíblicas aduzidas em prol da
doutrina do perfeccionismo [e as respectivas réplicas].
(1) A Bíblia ordena que os crentes sejam
santos, e até perfeitos, 1 Pe 1.16; Mt 5.48; Tg 1.4, e os insta a seguirem o
exemplo de Cristo, que não cometeu pecado, 1 Pe 2.21, 22. Tais ordens seriam
irrazoáveis, se não fosse possível alcançar a perfeição impecável. Mas o
mandado escriturístico para sermos santos e perfeitos vale tanto para os
regenerados como para os não regenerados, desde que a lei de Deus exige
santidade desde o princípio, e nunca foi revogada. Se o mandamento implica que
aqueles a quem ele chega podem cumprir a exigência, isso terá que valer para
todos os homens. Todavia, somente os que ensinam o perfeccionismo no sentido
pelagiano podem ter essa opinião. A medida da nossa capacidade não pode ser
inferida dos mandamentos bíblicos.
(2) Muitas vezes a santidade e a perfeição
são atribuídas aos crentes, na Escritura, Ct 4.7; 1 co 2.6; 2 Co 5.17; Ef 5.27;
Hb 5.14; Fp 4.13; Cl 2.10. – Contudo, quanto a Bíblia descreve os crentes como
santos e perfeitos, não significa necessariamente estão isentos de pecado,
visto que ambas as palavras muitas vezes são empregadas com sentido diferente,
não só no linguajar comum, mas também na Bíblia. A pessoas separadas para o
serviço especial de Deus a Bíblia chama santas, independentemente da sua
condição e vida moral. Os crentes podem ser chamados santos, porque são
objetivamente santos em Cristo, ou porque são, em princípio, subjetivamente
santificadas pelo Espírito de Deus. Em suas epístolas, Paulo invariavelmente se
dirige aos seus leitores como a santos, isto é, chama-lhe “os santos”, e em
seguida, em vários casos, põe-se a chamá-los a contas pelos pecados deles. E quando
os crentes são descritos como perfeitos, nalguns casos significa meramente que
alcançaram pleno desenvolvimento, 1 Co 2.6; Hb 5.14; e, noutros casos, que se
acham plenamente equipados para a sua tarefa, 2 Tm 3.17. Isso tudo certamente
não dá apoio à teoria da perfeição imune de pecado.
(3) Há, segundo se diz, exemplos de santos
que levaram vida perfeita, como Noé, Jó e Asa, Gn 6.9; Jó 1.1; 1 Rs 15.14. Mas
seguramente, exemplos que tais não provam o ponto, pela simples razão de que
eles não são exemplos de perfeição sem pecado. Mesmo os santos mais notáveis da
Bíblia são retratados como homens que tiveram seus deslizes e pecaram, nalguns
casos, gravemente. Isto vale para Noé, Moisés, Jó, Abraão e todos os demais. É
certo que isto não prova que as sua vidas continuaram sendo pecaminosas
enquanto viveram na terra, mas é notável o fato de que não nos é apresentado um
único personagem sem pecado. A interrogação de Salomão ainda é pertinente:
“Quem pode dizer: Purifiquei o meu coração, limpo estou do meu pecado?” – Pv
20.9. Ademais, diz João: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós
mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós”, 1 Jo 1.8.*
(4) O apóstolo declara explicitamente que
os nascidos de Deus não pecam, 1 Jo 3.6, 8, 9; 5.18. – Mas quando João declara
que os nascidos de Deus não pecam, está pondo em contraste dois estados,
representados pelo velho homem e pelo novo, quanto à sua natureza e princípio
essencial. Uma das características essenciais do novo homem é que ele não peca.
Tendo em vista que João emprega invariavelmente o presente para expressar a
idéia de que aquele que nasceu de Deus não peca, é possível que ele deseje
expressar a idéia de que o filho de Deus não vive pecando, habitualmente,
como o diabo faz, 1 Jo 3.8.[1]** Por certo que ele não pretende
asseverar que o crente jamais pratica um ato pecaminoso, cf. 1 Jo 1.8-10.
Ademais, o perfeccionista não pode fazer bom uso destas passagens para provar o
ponto que defende, visto que provariam demais, para o seu propósito. Ele não
corre o risco de dizer que todos os crentes são de fato isentos de pecado, mas
somente afirma que eles podem chegar a um estado de perfeição imune de pecado.
Contudo, as passagens joaninas provariam, na interpretação perfeccionista, que
todos os crentes são imunes de pecado. E, mais que isso, provariam também que
os crentes jamais caem do estado de graça (pois isto é pecar); e, todavia, são
justamente os perfeccionistas que acreditam que até o cristão perfeito pode
cair.
c. Objeções à teoria do perfeccionismo.
(1) À luz da Escritura, a doutrina do
perfeccionismo é absolutamente insustentável. A Bíblia nos dá a explícita e mui
definida segurança de que não existe ninguém na terra que não peque, 1 Rs 8.46;
Pv 20.9; Ec 7.20; Tg 3.2; 1 Jo 1.8. Em vista destas claras afirmações da
Escritura, é difícil enxergar como alguém que se diz crente na Bíblia como
sendo a infalível Palavra de Deus, pode afirmar que aos crentes é possível ter
vida sem pecado, e que alguns conseguem realmente evitar todo pecado.
(2) Segundo a Escritura, há uma guerra
constante entre a carne e o Espírito nas vidas dos filhos de Deus, e mesmo os
melhores deles ainda estão lutando por perfeição, em sua existência terrena.
Paulo nos dá uma extraordinária descrição desta luta em Rm 7.7-26, passagem que
certamente se refere a ele em seu estado regenerado. Em Gl 5.16-24 ele fala
dessa mesma luta como sendo uma luta que caracteriza todos os filhos de Deus. E
em Fp 3.10-14 ele fala de si próprio, praticamente no final de sua carreira,
como alguém que ainda não alcançara a perfeição, prosseguindo avante para a
meta.
(3) Exigem-se continuamente a confissão de
pecados e a oração pelo perdão. Jesus ensinou todos os Seus discípulos, sem
exceção nenhuma, a orar pelo perdão de pecados e pela libertação da tentação do
maligno, Mt 6.12, 13. E João diz: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é
fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça”, 1
Jo 1.9. Além disso, os santos da Bíblia são constantemente descritos
confessando os seus pecados, Jó 9.3, 20; Sl 32.5; 130.3; 143.2; Pv 20.9; Is
64.6; Dn 9.16; Rm 7.14.
(4) Os próprios perfeccionistas julgam
necessário rebaixar o padrão da lei e exteriorizar a idéia de pecado, a fim de
manterem a sua teoria. Ademais, alguns deles têm modificado repetidamente o
ideal a que, em sua opinião, os crentes podem chegar. A princípio, o ideal era
“estar livre de todo o pecado”; depois, “estar livre de todo o pecado
consciente”; em seguida, “inteira consagração a Deus; e, finalmente, “segurança
cristã”. Isto, já por si, é suficiente condenação da sua teoria. Naturalmente,
nós não negamos que o cristão pode alcançar a segurança da fé.
(TEOLOGIA SISTEMÁTICA – LOUIS BERKHOF Pg.541)