Diversas objeções foram, e
ainda agora são, levantadas por alguns contra a doutrina da graça comum nos
termos em que foi exposta acima. Algumas das mais importantes são as seguintes:
1. Os arminianos não se
mostram satisfeitos com ela porque acham que ela não vai suficientemente longe.
Eles consideram a graça comum como uma parte integrante do processo salvífico.
É aquela graça suficiente que habilita o homem a arrepender-se e a crer em
Jesus Cristo para a salvação, e que no propósito de Deus visa a conduzir os
homens à fé e ao arrependimento, embora os homens a possam frustrar. Uma
graça que não vise à salvação dos homens e não auxilie realmente, é uma
contradição de termos. Daí Pope, um arminiano wesleyano, afirma que a graça
comum, no sistema calvinista, “é universal, e não particular; é
necessariamente, ou pelo menos fatualmente, inoperante para a salvação no
propósito de Deus”, e apelida isto de “influência desperdiçada”. Diz ele mais:
“A graça deixa de ser graça, se não inclui a intenção salvadora do Doador”.[1]
Mas o certo é que a Bíblia não limita desse jeito o uso do termo “graça”.
Passagens como Gn 6.8; 19.19; Ex 33.12, 16; Nm 32.5; Lc 2.40, e muitas outras
não se referem ao que denominamos “graça salvadora”, nem tampouco ao que o
arminiano denomina “graça suficiente”.
2. Às vezes argumentam que
a doutrina reformada da graça comum envolve a doutrina da expiação universal,
e, portanto, vai dar no campo arminiano. Mas não há boa base para esta
asserção. Ela nem diz nem implica que é propósito de Deus salvar todos os
homens por meio do sangue expiatório de Jesus Cristo. A objeção se baseia
particularmente na proclamação universal do Evangelho, que é considera possível
somente com base numa expiação universal. Ela já foi sugerida pelos próprios
arminianos por ocasião do Sínodo de Dort, quando eles asseveram que os
reformados, com sua doutrina da expiação particular, não podiam pregar o
Evangelho a todos os homens, indiscriminadamente. Mas o Sínodo de Dort não
reconheceu a contradição deduzida por eles. Os Cânones ensinam a expiação
particular, [2] e também exigem
a proclamação universal do Evangelho.[3]
E isso está em perfeita harmonia com a Escritura, que, por um lado, ensina que
Cristo fez expiação somente pelos eleitos, Jo 10.15; At 20.28; Rm 8.32, 33; cf.
também Jo 17.9; e, por outro lado, ensina que o Evangelho tem que ser propagado
a todos os homens, indiscriminadamente, Mt 22.2-14; 28.19; Mc 16.15, 16. Se se
objetar que não podemos harmonizar plenamente a indiscriminada e sincera oferta
da salvação condicionada pela fé e arrependimento com a doutrina da expiação
particular, pode-se admitir isto, mas com o definido entendimento de que a
verdade de uma doutrina não depende da nossa capacidade de harmonizá-la com
todas as doutrinas da Escritura.
3. Outra objeção à
doutrina da graça comum é que ela pressupõe certa disposição favorável de Deus
mesmo para com os pecadores reprovados, quando não temos nenhum direito de
supor que Deus tenha tal disposição. Esta crítica toma o seu ponto de partida
no conselho eterno de Deus, em Sua eleição e reprovação. Ao longo da linha da
Sua eleição, Deus revela Seu amor, Sua graça, Sua misericórdia e Sua
longanimidade levando à salvação; e na concretização histórica da Sua
reprovação, Ele dá expressão à Sua aversão, ao Seu desfavor, ao Seu ódio, à Sua
ira, levando à destruição. Mas isto parece uma simplificação exagerada e
racionalista da vida interior de Deus, simplificação que não leva em conta a
Sua auto-revelação. Ao falarmos deste assunto, devemos ser muito cuidadosos e
deixar-nos guiar pelas declarações explícitas da Escritura, e não por nossas
atrevidas inferências do secreto conselho de Deus. Há muito mais em Deus do que
aquilo que podemos reduzir às nossas categorias lógicas. Serão os eleitos nesta
vida unicamente objetos do amor de Deus, e nunca em nenhum sentido, objetos de
Sua ira? Estará Moisés pensando nos réprobos quando diz: “Pois somos consumidos
pela tua ira, e pelo teu furor, conturbados”? Sl 90.7. A afirmação de Jesus, de
que ira de Deus permanece sobre aqueles que não obedecem ao Filho, não
implica que ela é retirada dos outros quando se submetem ao benigno governo de
Cristo, e não até quando o fizerem? Jo 3.36. E não diz Paulo aos
crentes efésios que eles eram “por natureza filhos da ira, como também os
demais”? Ef 2.3. Evidentemente, os eleitos não podem ser considerados como sempre
e exclusivamente objetos do amor de Deus. E se aqueles que são
objetos do amor redentor de Deus também podem, nalgum sentido, ser considerados
objetos da Sua ira, por que seria impossível que aqueles que são objetos da Sua
ira também participem, nalgum sentido, do Seu divino favor? Um Pai que é também
juiz pode desgostar-se com o filho que é trazido à sua presença como criminoso,
e sentir-se constrangido a puni-lo com a sua ira judicial, mas pode, apesar
disso, apiedar-se dele e mostrar-lhe atos de bondade enquanto o filho está sob
condenação. Por que isto seria impossível em Deus? O general Washington odiou o
traidor que foi levado à sua presença, e o condenou à morte, mas, ao mesmo
tempo, mostrou-lhe compaixão servindo-lhe iguarias da sua mesa. Deus não pode
ter compaixão, mesmo do pecador condenado, e conceder-lhe favores? Não há por
que ser incerta a resposta, desde que a Bíblia ensina com clareza que Ele
derrama incontáveis bênçãos sobre todos os homens e também indica claramente
que elas são expressões de uma disposição favorável de Deus que, contudo, fica
muito aquém da volição positiva exercida para lhes perdoar, suspender a
sentença a eles imposta e assegurar-lhes a salvação. As seguintes passagens
indicam claramente aquela disposição favorável: Pv 1.24; Is 1.18; Ez 18.23, 32;
33.11; Mt 5.43-45; 23.37; Mc 10.21; Lc 6.35; Rm 2.4; I tm 2.4. Se tais
passagens não testificam uma disposição favorável de Deus, fica parecendo que a
linguagem perdeu o seu sentido, e que a revelação de Deus sobre este assunto
não é confiável.
4. Os anabatistas se opõem
à doutrina da graça comum porque ela envolve o reconhecimento de bons elementos
na ordem natural das coisas, o que é contrário à sua posição fundamental. Eles
vêem a criação natural com desprezo, acentuam que Adão era da terra e de terra,
e só enxergavam impureza na ordem natural como tal. Cristo estabeleceu uma nova
e sobrenatural ordem de coisas, e a esta ordem também pertence o homem
regenerado, que não é apenas renovado, mas, sim, um homem inteiramente novo.
Ele nada tem em comum com o mundo a seu redor e, portanto, não deve tomar parte
em sua vida: nunca fazer um juramento, não participar de nenhuma guerra, não
reconhecer as autoridades civis, evitar vestuário mundano, e assim por diante.
Para esta posição não existe nenhuma outra graça, além da graça salvadora. Este
conceito foi partilhado pelo labadismo,*
pelo pietismo, pelos irmãos morávios e por várias outras seitas. A negação da
graça comum por parte de Barth parece seguir estas mesmas linhas. Não é de
admirar, pois, que para ele também, a “criaturidade” (o ser criatura) e a
pecaminosidade sejam praticamente idênticas. Brunner dá o seguinte sumário do
conceito de Barth: “Decorre do reconhecimento de Cristo como a única e
exclusiva graça salvadora de Deus, que não existe nenhuma graça criadora e
sustentadora que esteja operando desde a criação do mundo e que se nos
manifeste na manutenção do mundo, visto que, neste caso, deveríamos reconhecer
duas ou até três espécies de graça, e isso estaria em contradição com a
singularidade da graça de Cristo. ...Semelhantemente, a nova criação não é, de
modo algum, um cumprimento, mas exclusivamente uma substituição realizada pela
aniquilação completa do que havia antes, uma substituição do velho homem pelo
novo. A proposição, gratia non tollit naturam sed perficit (a
graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa) não é verdadeira em nenhum
sentido, mas é uma arqui-heresia total”.[4]
Brunner rejeita o conceito em foco e, neste ponto, está mais de acordo com o
pensamento reformado.
QUESTIONÁRIO PARA
PESQUISA: 1. As palavras grega e hebraica para “graça” sempre indicam a graça
salvadora? 2. São elas utilizadas sempre como designativos do que denominamos
“graça comum”? 3. A
doutrina da graça comum pressupõe a doutrina da expiação universal? 4. Ela
implica uma negação do fato de que o homem está por natureza sujeito à ira de
Deus? 5. Ela envolve uma negação da depravação total do homem e da sua incapacidade
para a prática do bem espiritual? 6. O bem que o homem natural pode fazer só o
é à vista do homem, ou também à vista de Deus? 7. A doutrina da graça comum
destrói a antítese entre o mundo e o reino de Deus? 8. Se não, como explicar
isto?
BIBLIOGRAFIA PARA
CONSULTA: Calvin, Institutes II, 2 e 3; Kuyper, De Gemeene Gratie;
Bavinck, De Algemeene Genade; ibid., Calvin and Common Grace (em,
Calvin and the Reformation); Shedd, Calvinism Purê and Mixed, p.
96-106; ibid., Dogm. Theol. I, p. 432, 435; II, p. 483 e segtes.; Hodge,
Syst. Theol. II, p. 654-675; Vos, Geref. Dogm. IV, p. 11-17;
Alexander, Syst. of Bib. Theol. II, p. 343-361; Dabney, Syst. and
Polem. Theol., p. 583-588; ibid. Discussions, p. 282-313 (God’s
Indiscriminate Proposals of Mercy); H. Kuiper, Calvin on Common Grace;
Berkhof, De Drie Punten in Alle Deelen Gereformeerd; Hepp, artigo Gemeene
Gratie, na Christlijke Encyclopaedie.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof.
Pg. 442)
[1] . Christian Theology II, p.
387, 388.
[2] . II. 8.
[3] . II.5 e
III.8.
* Seita fundada pelo místico francês Jean de Labadie
(1610-74), ex-jesuíta que se uniu à igreja reformada em 1650. Para ele, a
igreja devia reproduzir a maneira de ser e de viver da comunidade cristã
primitiva. Nota do tradutor.
[4] Natur
und Gnade, p. 8.