quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Vocação em Geral e Vocação Externa

A. Razões Para Discutir Primeiro a Vocação.

A questão da ordem relativa da vocação e da regeneração tem sido discutida com freqüência, e muitas vezes a discussão foi prejudicada pela falta de discriminação e por um resultante entendimento errôneo. Os termos “vocação” e “regeneração” nem sempre foram usados no mesmo sentido. Conseqüentemente, foi possível sustentar, sem incoerência, por um lado, que a vocação precede à regeneração, e, por outro, que a regeneração é anterior à vocação. Consideraremos resumidamente (1) as representações que se acham na Escritura e em nossos padrões confessionais. (2) a ordem geralmente seguida pelos teólogos reformados (calvinistas); e (3) as razões que podem ser apresentadas em favor de uma discussão separada da vocação externa mediante a Palavra, considerada como precedendo tanto a regeneração como à vocação interna.

1. A REPRESENTAÇÃO BÍBLICA. A ordem bíblica é indicada principalmente por algumas passagens bem conhecidas. Vem primeiramente a visão dos ossos secos em Ez. 37.1-14. Enquanto Ezequiel profetizava sobre os ossos secos da casa de Israel, o sopro da vida os penetrou. Esta passagem se refere à restauração civil e ao avivamento espiritual da casa de Israel, e também, contem provavelmente uma alusão à ressurreição dos seus mortos. Ela apresenta a palavra como precedendo a origem da nova vida do povo de Israel. Naturalmente, isto não significa, todavia, que aquela se relaciona em termos causais com esta. ... Uma passagem muito instrutiva é a de At 16.14, que fala da conversão de Lídia. Durante a pregação de Paulo, o Senhor abriu o coração de Lídia para que esta desse atenção às coisas que o apóstolo falava. Dá-se a entender claramente que a abertura do coração é precedida pela vocação externa e é seguida pela vocação interna. Vê-se a unidade existente entre os dois aspectos da vocação. ... A declaração feita por Paulo em Rm 4.17 também é freqüentemente citada neste contexto, mas dificilmente pode ser considerada relevante, porque não se refere, nem à vocação externa, nem à vocação interna, mediante a pregação da Palavra, mas, sim, ou ao fiat criador de Deus, pelo qual as coisas foram chamadas à existência, ou à Sua ordem dada às coisas que não existem, como se existissem, e abrangendo até os mortos. ... Outra passagem é a de Tg 1.18, “Pois segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas”. Dificilmente se pode duvidar de que a palavra da verdade mencionada aí é a palavra da pregação, e a pressuposição é de que esta palavra precede ao novo nascimento e, nalgum sentido, é instrumento para a ocorrência desta. ... E, finalmente, há uma passagem muito conhecida, a de 1 Pe 1.23, em que o apóstolo fala que os crentes foram “regenerados, não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente”. Em vista do versículo 25, a palavra a que esta passagem se refere só pode ser a palavra do Evangelho, pregado aos destinatários da missiva. Esta passagem de Pedro também implica que a palavra da pregação precede à regeneração e está instrumentalmente relacionada com esta. Tendo em conta estas passagens, conclui-se com perfeita segurança que, no caso dos adultos, a vocação externa mediante a pregação da palavra geralmente precede à regeneração. Se elas também dão base para a asserção de que a vocação interna é anterior à implantação da nova vida, é uma questão que não é preciso considerar nesta altura.

2. O CONCEITO APRESENTADO EM NOSSOS PADRÕES CONFESSIONAIS. Os nossos padrões confessionais também implicam que, no caso dos adultos, a pregação da Palavra precede à regeneração, mas devemos ter em mente que eles não utilizam a palavra “regeneração” no sentido limitado em que é empregada hoje. A Confissão Belga diz, no artigo XXIV: “Cremos que esta fé verdadeira, produzida no homem pelo ouvir a Palavra de Deus e pela operação do Espírito Santo, regenera-o de fato e faz dele um novo homem, levando-o a viver uma vida nova e livrando-o da escravidão do pecado”. A fé é produzida no homem pelo ouvir a Palavra e, por sua vez, ela produz a regeneração, isto é, a renovação do homem na conversão e na santificação. Os Cânones de Dort contêm uma descrição um pouco mais detalhada nos capítulos III e IV, artigos 11 e 12: “Mas quando Deus leva a efeito o Seu beneplácito nos eleitos, ou produz neles a conversão verdadeira, Ele não só faz com que o Evangelho lhes seja pregado externamente, e ilumina poderosamente as suas mentes mediante o Seu Santo Espírito, para que eles possam compreender e discernir acertadamente as coisas do Espírito de Deus, mas, pela eficácia do mesmo Espírito regenerador, Ele penetra os mais íntimos recessos do homem .... E esta é a regeneração tão altamente celebrada na Escritura e denominada nova criação: uma ressurreição dos mortos; uma ação revivificadora que Deus opera em nós sem o nosso auxílio. Mas isto de modo algum é efetuado apenas pela pregação externa do Evangelho, pela persuasão moral, ou por um modo de operação que, após Deus ter realizado a Sua parte, ainda permanece em poder do homem o ser regenerado ou não, converter-se ou continuar inconverso”, etc. Nestes artigos, as palavras “regeneração” e “conversão” soa usadas uma pela outra. É mais que evidente, porém, que elas não denotam a mudança fundamental da disposição dominante da alma, como tampouco a mudança resultante das manifestações externas da vida. E esta mudança não é produzida inteiramente pela pregação do Evangelho, mas, ao menos em parte o é. Conseqüentemente, esta é anterior.

3. A ORDEM GERALMENTE SEGUIDA PELOS TEÓLOGOS REFORMADOS (CALVINISTAS). Entre os reformados tem sido costume colocar a vocação antes da regeneração, embora alguns poucos tenham invertido a ordem. Mesmo Maccovius, Voetius e Comrie, supralapsários todos, seguem a ordem usual. Várias considerações dispuseram os teólogos reformados em geral a colocar a vocação antes da regeneração.*

a. Sua doutrina da aliança da graça. Eles consideravam a aliança da graça como o grande e totalmente compreensivo bem que Deus, com infinita misericórdia, concede a pecadores, um bem que inclui todas as bênçãos da salvação e, portanto, inclui a regeneração. Mas esta aliança está inseparavelmente ligada ao Evangelho. Ela é anunciada e dada a conhecer no Evangelho, do qual Cristo é o centro vivo, e, portanto, não existe sem ele. Onde não se conhece o Evangelho, não se realiza a aliança, mas onde se prega o Evangelho, Deus estabelece a Sua aliança e glorifica a Sua graça. Tanto na pregação do Evangelho como a administração da aliança precedem às operações salvíficas do Espírito Santo e a participação do crente na salvação realizada por Cristo.

b. Sua concepção da relação entre a obra de Cristo e a do Espírito Santo. Os anabatistas não fizeram justiça a esta relação. Cristo e Sua obra redentora são-nos apresentados no Evangelho. E é de Cristo, como o Mediador de Deus e do homem e como a causa meritória da nossa salvação, que o Espírito Santo deriva tudo quanto comunica aos pecadores. Conseqüentemente, Ele junta a Sua obra à pregação do Evangelho e opera de maneira salvífica somente onde chega a mensagem da redenção. O Espírito Santo não age sem o Cristo apresentado no Evangelho.

c. Sua reação contra o misticismo dos anabatistas. Os anabatistas partiam da suposição de que a regeneração efetua, não apenas uma renovação da natureza humana, mas, sim, uma criação inteiramente nova. Sendo assim, eles achavam impossível que qualquer coisa pertencente a esta criação natural, como, por exemplo, a linguagem humana com a qual a Palavra de Deus é trazida ao homem, servisse de instrumento para a comunicação da nova vida aos pecadores. Como eles a viam, a regeneração eo ipso (por isso mesmo) exclui o uso da Palavra como meio, uma vez que, afinal de contas, esta é apenas letra morta. Esta tendência mística foi vigorosamente combatida pelos teológicos reformados (calvinistas).

d. Sua experiência com relação à renovação espiritual dos adultos. Conquanto fosse, opinião firmada que os filhos da aliança que morrem na infância são renascidos e, portanto, são salvos, não havia opinião unânime quanto à época em que os que crescem se tornam partícipes da graça da regeneração. Alguns partilhavam a opinião de Voetius, de que todas as crianças eleitas são regeneradas no batismo, e que a nova vida, mesmo nos adultos, pode permanecer oculta por muitos anos. Contudo, a grande maioria relutava em tomar essa posição, e sustentava que a nova vida, se presente, revelar-se-á de algum modo. A experiência lhes ensinara que muitos não dão provas da nova vida senão depois de ouvirem o Evangelho durante anos.

4. RAZÕES PARA UMA DISCUSSÃO SEPARADA DA VOCAÇÃO EXTERNA COMO ANTERIOR À REGENERAÇÃO.

a. Clareza da apresentação. A vocação externa e a interna são essencialmente uma só; todavia, podem e devem ser distinguidas cuidadosamente. Pode surgir um debate a respeito de uma delas, sem nenhum interesse quanto à outra. Pode ser posto em dúvida se a vocação interna precede logicamente à regeneração, no caso dos adultos, conquanto não haja nenhuma incerteza nesta questão quanto à vocação externa mediante o Evangelho. Daí, pode-se considerar desejável tratar primeiro da vocação externa, e depois empreender a discussão da vocação interna em conexão com a da regeneração.

b. Natureza preparatória da vocação externa. Se partirmos do pressuposto de que a ordo salutis trata da aplicação efetiva da redenção realizada por Cristo, logo acharemos que a vocação externa mediante a Palavra de Deus dificilmente poderá, estritamente falando, ser chamada um dos seus estágios. Enquanto esta vocação não se tornar, pela acompanhante operação do Espírito Santo, uma vocação interna e eficaz, só tem significação preliminar e preparatória. Vários teólogos reformados falam dela como uma espécie de graça comum, visto que ela não flui da eleição eterna e da graça salvadora de Deus, mas antes, da Sua bondade comum e visto que, apesar de produzir às vezes certa iluminação da mente, não enriquece o coração com a graça salvadora de Deus.[1]

c. Natureza geral da vocação externa. Enquanto que todos os outros movimentos do Espírito Santo que constam na ordo salutis terminam somente nos eleitos, a vocação externa mediante o Evangelho tem maior amplitude. Onde quer que se pregue o Evangelho, o chamamento é dirigido igualmente aos eleitos e ao réprobos. Atende ao propósito, não somente de levar os eleitos à fé e à conversão, mas também de revelar o grande amor de Deus aos pecadores em geral. Por seu intermédio, Deus defende o Seu direito à obediência de todas as Suas criaturas racionais, restringe a manifestação do pecado e promove a justiça cívica, a moralidade externa e até mesmo exercícios religiosos externos.[2]

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 453)



* A Confissão de Westmisnter trata da vocação eficaz e da regeneração no capítulo X, intitulado Da Vocação Eficaz, sem utilizar o termo “regeneração” e seus cognatos, exceto na seção III, sobre a salvação das crianças. Nota do tradutor.
[1] Cf. referências acima, 4ª parte, III, A4 e B2, e também a Marck, Godgeleerdheid XXIII. 3.
[2] Cf. Bavinck, Geref. Dogm. IV, p. 7, 8.