A. Razões
Para Discutir Primeiro a Vocação.
1. A REPRESENTAÇÃO
BÍBLICA. A ordem bíblica é indicada principalmente por algumas passagens bem
conhecidas. Vem primeiramente a visão dos ossos secos em Ez. 37.1-14. Enquanto
Ezequiel profetizava sobre os ossos secos da casa de Israel, o sopro da vida os
penetrou. Esta passagem se refere à restauração civil e ao avivamento
espiritual da casa de Israel, e também, contem provavelmente uma alusão à
ressurreição dos seus mortos. Ela apresenta a palavra como precedendo a origem
da nova vida do povo de Israel. Naturalmente, isto não significa, todavia, que
aquela se relaciona em termos causais com esta. ... Uma passagem muito
instrutiva é a de At 16.14, que fala da conversão de Lídia. Durante a pregação
de Paulo, o Senhor abriu o coração de Lídia para que esta desse atenção às
coisas que o apóstolo falava. Dá-se a entender claramente que a abertura do
coração é precedida pela vocação externa e é seguida pela vocação interna.
Vê-se a unidade existente entre os dois aspectos da vocação. ... A declaração
feita por Paulo em Rm 4.17 também é freqüentemente citada neste contexto, mas
dificilmente pode ser considerada relevante, porque não se refere, nem à
vocação externa, nem à vocação interna, mediante a pregação da Palavra, mas,
sim, ou ao fiat criador de Deus, pelo qual as coisas foram chamadas à
existência, ou à Sua ordem dada às coisas que não existem, como se existissem,
e abrangendo até os mortos. ... Outra passagem é a de Tg 1.18, “Pois segundo o
seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que
primícias das suas criaturas”. Dificilmente se pode duvidar de que a palavra da
verdade mencionada aí é a palavra da pregação, e a pressuposição é de que esta
palavra precede ao novo nascimento e, nalgum sentido, é instrumento para a
ocorrência desta. ... E, finalmente, há uma passagem muito conhecida, a de 1 Pe
1.23, em que o apóstolo fala que os crentes foram “regenerados, não de semente
corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é
permanente”. Em vista do versículo 25, a palavra a que esta passagem se refere só
pode ser a palavra do Evangelho, pregado aos destinatários da missiva. Esta
passagem de Pedro também implica que a palavra da pregação precede à
regeneração e está instrumentalmente relacionada com esta. Tendo em conta estas
passagens, conclui-se com perfeita segurança que, no caso dos adultos, a
vocação externa mediante a pregação da palavra geralmente precede à
regeneração. Se elas também dão base para a asserção de que a vocação interna é
anterior à implantação da nova vida, é uma questão que não é preciso considerar
nesta altura.
3. A ORDEM GERALMENTE
SEGUIDA PELOS TEÓLOGOS REFORMADOS (CALVINISTAS). Entre os reformados tem sido
costume colocar a vocação antes da regeneração, embora alguns poucos tenham
invertido a ordem. Mesmo Maccovius, Voetius e Comrie, supralapsários todos,
seguem a ordem usual. Várias considerações dispuseram os teólogos reformados em
geral a colocar a vocação antes da regeneração.*
A questão da ordem
relativa da vocação e da regeneração tem sido discutida com freqüência, e
muitas vezes a discussão foi prejudicada pela falta de discriminação e por um
resultante entendimento errôneo. Os termos “vocação” e “regeneração” nem sempre
foram usados no mesmo sentido. Conseqüentemente, foi possível sustentar, sem
incoerência, por um lado, que a vocação precede à regeneração, e, por outro,
que a regeneração é anterior à vocação. Consideraremos resumidamente (1) as
representações que se acham na Escritura e em nossos padrões confessionais. (2)
a ordem geralmente seguida pelos teólogos reformados (calvinistas); e (3) as
razões que podem ser apresentadas em favor de uma discussão separada da vocação
externa mediante a Palavra, considerada como precedendo tanto a regeneração
como à vocação interna.
2. O CONCEITO APRESENTADO
EM NOSSOS PADRÕES CONFESSIONAIS. Os nossos padrões confessionais também
implicam que, no caso dos adultos, a pregação da Palavra precede à regeneração,
mas devemos ter em mente que eles não utilizam a palavra “regeneração” no
sentido limitado em que é empregada hoje. A Confissão Belga diz, no artigo
XXIV: “Cremos que esta fé verdadeira, produzida no homem pelo ouvir a Palavra
de Deus e pela operação do Espírito Santo, regenera-o de fato e faz dele um
novo homem, levando-o a viver uma vida nova e livrando-o da escravidão do
pecado”. A fé é produzida no homem pelo ouvir a Palavra e, por sua vez, ela
produz a regeneração, isto é, a renovação do homem na conversão e na
santificação. Os Cânones de Dort contêm uma descrição um pouco mais detalhada
nos capítulos III e IV, artigos 11 e 12: “Mas quando Deus leva a efeito o Seu
beneplácito nos eleitos, ou produz neles a conversão verdadeira, Ele não só faz
com que o Evangelho lhes seja pregado externamente, e ilumina poderosamente as
suas mentes mediante o Seu Santo Espírito, para que eles possam compreender e
discernir acertadamente as coisas do Espírito de Deus, mas, pela eficácia do
mesmo Espírito regenerador, Ele penetra os mais íntimos recessos do homem ....
E esta é a regeneração tão altamente celebrada na Escritura e denominada nova
criação: uma ressurreição dos mortos; uma ação revivificadora que Deus opera em
nós sem o nosso auxílio. Mas isto de modo algum é efetuado apenas pela pregação
externa do Evangelho, pela persuasão moral, ou por um modo de operação que,
após Deus ter realizado a Sua parte, ainda permanece em poder do homem o ser
regenerado ou não, converter-se ou continuar inconverso”, etc. Nestes artigos,
as palavras “regeneração” e “conversão” soa usadas uma pela outra. É mais que
evidente, porém, que elas não denotam a mudança fundamental da disposição
dominante da alma, como tampouco a mudança resultante das manifestações
externas da vida. E esta mudança não é produzida inteiramente pela pregação do
Evangelho, mas, ao menos em parte o é. Conseqüentemente, esta é anterior.
a. Sua doutrina da
aliança da graça. Eles consideravam a aliança da graça como o grande e
totalmente compreensivo bem que Deus, com infinita misericórdia, concede a
pecadores, um bem que inclui todas as bênçãos da salvação e, portanto, inclui a
regeneração. Mas esta aliança está inseparavelmente ligada ao Evangelho. Ela é
anunciada e dada a conhecer no Evangelho, do qual Cristo é o centro vivo, e,
portanto, não existe sem ele. Onde não se conhece o Evangelho, não se realiza a
aliança, mas onde se prega o Evangelho, Deus estabelece a Sua aliança e
glorifica a Sua graça. Tanto na pregação do Evangelho como a administração da
aliança precedem às operações salvíficas do Espírito Santo e a participação do
crente na salvação realizada por Cristo.
b. Sua concepção da
relação entre a obra de Cristo e a do Espírito Santo. Os anabatistas não
fizeram justiça a esta relação. Cristo e Sua obra redentora são-nos
apresentados no Evangelho. E é de Cristo, como o Mediador de Deus e do homem e
como a causa meritória da nossa salvação, que o Espírito Santo deriva tudo
quanto comunica aos pecadores. Conseqüentemente, Ele junta a Sua obra à
pregação do Evangelho e opera de maneira salvífica somente onde chega a
mensagem da redenção. O Espírito Santo não age sem o Cristo apresentado no
Evangelho.
c. Sua reação contra o
misticismo dos anabatistas. Os anabatistas partiam da suposição de que a
regeneração efetua, não apenas uma renovação da natureza humana, mas, sim, uma
criação inteiramente nova. Sendo assim, eles achavam impossível que qualquer
coisa pertencente a esta criação natural, como, por exemplo, a linguagem humana
com a qual a Palavra de Deus é trazida ao homem, servisse de instrumento para a
comunicação da nova vida aos pecadores. Como eles a viam, a regeneração eo
ipso (por isso mesmo) exclui o uso da Palavra como meio, uma vez que,
afinal de contas, esta é apenas letra morta. Esta tendência mística foi
vigorosamente combatida pelos teológicos reformados (calvinistas).
d. Sua experiência com
relação à renovação espiritual dos adultos. Conquanto fosse, opinião
firmada que os filhos da aliança que morrem na infância são renascidos e,
portanto, são salvos, não havia opinião unânime quanto à época em que os que
crescem se tornam partícipes da graça da regeneração. Alguns partilhavam a
opinião de Voetius, de que todas as crianças eleitas são regeneradas no
batismo, e que a nova vida, mesmo nos adultos, pode permanecer oculta por
muitos anos. Contudo, a grande maioria relutava em tomar essa posição, e
sustentava que a nova vida, se presente, revelar-se-á de algum modo. A
experiência lhes ensinara que muitos não dão provas da nova vida senão depois
de ouvirem o Evangelho durante anos.
4. RAZÕES PARA UMA DISCUSSÃO SEPARADA DA
VOCAÇÃO EXTERNA COMO ANTERIOR À REGENERAÇÃO.
a. Clareza da
apresentação. A vocação externa e a interna são essencialmente uma só;
todavia, podem e devem ser distinguidas cuidadosamente. Pode surgir um debate a
respeito de uma delas, sem nenhum interesse quanto à outra. Pode ser posto em
dúvida se a vocação interna precede logicamente à regeneração, no caso dos
adultos, conquanto não haja nenhuma incerteza nesta questão quanto à vocação
externa mediante o Evangelho. Daí, pode-se considerar desejável tratar primeiro
da vocação externa, e depois empreender a discussão da vocação interna em
conexão com a da regeneração.
b. Natureza
preparatória da vocação externa. Se partirmos do pressuposto de que a ordo
salutis trata da aplicação efetiva da redenção realizada por Cristo, logo
acharemos que a vocação externa mediante a Palavra de Deus dificilmente poderá,
estritamente falando, ser chamada um dos seus estágios. Enquanto esta vocação
não se tornar, pela acompanhante operação do Espírito Santo, uma vocação
interna e eficaz, só tem significação preliminar e preparatória. Vários
teólogos reformados falam dela como uma espécie de graça comum, visto que ela
não flui da eleição eterna e da graça salvadora de Deus, mas antes, da Sua
bondade comum e visto que, apesar de produzir às vezes certa iluminação da
mente, não enriquece o coração com a graça salvadora de Deus.[1]
c. Natureza geral da
vocação externa. Enquanto que todos os outros movimentos do Espírito Santo
que constam na ordo salutis terminam somente nos eleitos, a vocação externa mediante
o Evangelho tem maior amplitude. Onde quer que se pregue o Evangelho, o
chamamento é dirigido igualmente aos eleitos e ao réprobos. Atende ao
propósito, não somente de levar os eleitos à fé e à conversão, mas também de
revelar o grande amor de Deus aos pecadores em geral. Por seu intermédio, Deus
defende o Seu direito à obediência de todas as Suas criaturas racionais,
restringe a manifestação do pecado e promove a justiça cívica, a moralidade
externa e até mesmo exercícios religiosos externos.[2]
(Teologia Sistemática –
Louis Berkhof. Pg. 453)
* A Confissão de Westmisnter trata da vocação eficaz e
da regeneração no capítulo X, intitulado Da Vocação Eficaz, sem utilizar
o termo “regeneração” e seus cognatos, exceto na seção III, sobre a salvação
das crianças. Nota do tradutor.
[1] Cf.
referências acima, 4ª parte, III, A4 e B2, e também a Marck, Godgeleerdheid
XXIII. 3.
[2] Cf. Bavinck, Geref. Dogm.
IV, p. 7, 8.