Surge a questão sobre se a Palavra de Deus
é utilizada como meio no ato de regeneração ou não; ou, como muitas vezes a
questão é colocada, se a regeneração é mediata ou imediata.
1.
A LEGÍTIMA IMPORTÂNCIA DA QUESTÃO. Requer-se
cuidadosa discriminação, para evitar entendimento errôneo.
a. Quando os antigos teólogos reformados
(calvinistas) insistiam no caráter imediato da regeneração, muitas vezes
davam ao termo “imediato” uma conotação inexistente hoje. Alguns dos
representantes da escola de Saumur, como Cameron e Pajon, ensinavam que, na
regeneração, o Espírito ilumina e convence sobrenaturalmente a mente ou o
intelecto de maneira tão poderosa, que a vontade não pode deixar de seguir os
ditames dominantes do juízo prático. Ele opera imediatamente só no intelecto,
e, por meio deste, age mediatamente na vontade. Segundo eles, não há nenhuma
operação imediata do Espírito na vontade do homem. Em oposição a estes
homens, os teólogos reformados geralmente acentuavam o fato de que, na
regeneração, o Espírito opera também diretamente na vontade do homem, e
não apenas por intermédio do intelecto. Hoje, a questão da regeneração mediata
ou imediata é ligeiramente diversa, embora relacionada com o que acima foi
exposto. Trata-se da questão do uso da Palavra de Deus como um meio, na obra da
regeneração.
b. Deve-se observar cuidadosamente a forma
da questão. A questão não é se Deus opera a regeneração por meio de uma palavra
criadora. Admite-se geralmente que o faz. Tampouco é se Ele emprega a
palavra da verdade, a palavra da pregação, para o novo nascimento, como
distinta da geração divina do novo homem, isto é, para assegurar os
primeiros exercícios santos da nova vida. A questão real é se Deus, ao
implantar ou gerar a nova vida, emprega a palavra da Escritura ou a palavra da
pregação como instrumento ou meio. No passado, a discussão desta matéria muitas
vezes padeceu da falta de adequada discriminação.
2. CONSIDERAÇÕES QUE FAVORECEM UMA RESPOSTA
NEGATIVA. Diz o dr. Shedd: “A influência do Espírito Santo é distinguível da
influência da verdade; da do homem sobre o homem; e da de qualquer instrumento
ou meio, seja qual for. Sua energia age diretamente sobre a alma humana
propriamente dita. É influência de espírito sobre espírito; de uma das pessoas
trinitárias sobre uma pessoa humana. Nem a verdade, nem algum outro ser humano
pode operar assim, diretamente sobre a essência da alma”.[1]
As seguintes considerações dão respaldo a este conceito:
a. A regeneração é um ato criador, pelo
qual o pecador espiritualmente morto é devolvido à vida. Mas a verdade do
Evangelho só pode agir de maneira moral e persuasiva. Tal instrumento não tem
efeito sobre os mortos. Afirmar o seu uso pareceria implicar uma negação da
morte espiritual do homem; coisa que, naturalmente, não está na intenção dos
que tomam esta posição.
b. A regeneração tem lugar na esfera do
subconsciente, isto é, fora da esfera da atenção consciente, ao passo que a
verdade se dirige à consciência do homem. Ela só pode exercer a sua influência
persuasiva quando a atenção do homem está posta nela.
c. A Bíblia distingue entre a influência do
Espírito Santo e a da Palavra de Deus, e declara que aquela influência é
necessária para o recebimento próprio da verdade, Jo 6.64, 65; At. 16.14; 1 Co
2.12-15; Ef 1.17-20. Observe-se particularmente o caso de Lídia, de quem diz
Lucas: ela “nos escutava (ekouen, imperfeito); o Senhor lhe abriu (dienoixem,
aoristo, ato simples) o coração para atender (prosechein, infinito de
resultado ou propósito) às cousas que Paulo dizia”.
3. PASSAGENS BÍBLICAS QUE PARECEM PROVAR O
CONTRÁRIO.
a. Em Tg 1.18 lemos: “Pois, segundo o seu
querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que
primícias das suas criaturas”. Esta passagem não prova que a nova geração é
mediada pela Palavra de Deus, pois o termo ali empregado é apokyese, que
não se refere ao ato de gerar, mas, sim, ao ato de dar nascimento. Os que
acreditam na regeneração imediata não negam que o novo nascimento, em que a
nova vida se manifesta inicialmente, é assegurado pela Palavra.
b. Pedro exorta os crentes a se amarem uns
aos outros ardentemente, em vista do fato de que eles foram “regenerados, não
de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a
qual vive e é permanente”, 1 Pe 1.23. Não é correto dizer, como alguns têm
feito, que “a palavra”, neste versículo, é a palavra criadora, ou a segunda
pessoa da Trindade, pois o próprio Pedro nos informa que tem em mente a palavra
pregada aos destinatários da epístola, versículo 25. Mas é perfeitamente válido
assinalar que mesmo gennao (vocábulo usado na citada passagem) nem
sempre se refere ao gerar masculino, mas também indica o ato feminino de dar
nascimento a filhos. Isto é perfeitamente evidenciado por passagens como Lc
1.13, 57; 23.29; Jo 16.21; Gl 4.24. Conseqüentemente, não há base para a
asserção de que Pedro, na passagem em foco, refere-se ao ato inicial da
regeneração, a saber, à geração. E se se refere à regeneração num sentido mais
amplo, não oferece nenhuma dificuldade quanto à matéria aqui em consideração. A
idéia de que ele se refere ao novo nascimento é favorecida pelo fato de que os
destinatários da carta são apresentados como tendo nascido de novo de uma
semente que evidentemente já tinha sido implantada na alma, cf. Jo 1.13. Não é
necessário identificar a semente com a Palavra.
c. Às vezes a parábola do Semeador é
apresentada em favor da idéia de que a regeneração se dá por meio da Palavra.
Nesta parábola, a semente é a palavra do Reino. O argumento é que a vida está
na semente e brota da semente. Conseqüentemente, a nova vida brota da semente
da Palavra de Deus. Mas, em primeiro lugar, isto é errar o alvo, pois
dificilmente significa que o Espírito ou o princípio da nova vida está
encerrado na Palavra, exatamente como o germe vivo está encerrado na semente.
Isto lembra um pouco a concepção luterana da vocação, segundo a qual o Espírito
está na Palavra, de modo que a vocação seria sempre eficaz, se o homem não
pusesse uma pedra de tropeço no caminho. E, em segundo lugar, isto é forçar um
ponto que absolutamente não se acha no tertium comparationis (no
terceiro elemento de comparação). O Salvador quer explicar nesta parábola como
sucede que a semente da Palavra dá fruto nalguns casos, e noutros não. Só dá
fruto nos casos em que ela cai em bom terreno, em corações preparados de modo
tal que compreendem a verdade.
4. OS PERTINENTES ENSINOS DOS NOSSOS
PADRÕES CONFESSIONAIS. É bom considerar aqui os seguintes trechos: Confissão
Belga, artigos XXIV e XXXV; Catecismo de Heidelberg, perg. 54; os Cânones
de Dort III e IV, artigos 11, 12, 17 e, finalmente, as Conclusões de
Utrecht, adotados por nossa igreja em 1908. Nestas passagens é mais que
evidente que os nossos escritos confessionais falam de regeneração num sentido
amplo, incluindo tanto a origem da nova vida como a sua manifestação na
conversão. É-nos dito até que a fé regenera o pecador.[2]
Há trechos que parecem dizer que a Palavra de Deus serve de instrumento na obra
de regeneração.[3] Todavia, vêm
expressos em tal linguagem que permanece duvidoso se de fato ensinam que o
princípio da nova vida é implantado na alma pela instrumentalidade da Palavra.
Eles não discriminam cuidadosamente entre os vários elementos que distinguimos
na regeneração. Nas Conclusões de Utrecht lemos: “Quanto ao
terceiro ponto, o da regeneração imediata, o Sínodo declara que esta
expressão pode ser usada em bom sentido, como no que as nossas igrejas sempre
confessaram, contra os luteranos e a Igreja Católica Romana, que a regeneração
não é efetuada por meio da Palavra ou dos Sacramentos como tais, mas, sim, pela
toda-poderosa obra regeneradora do Espírito Santo; que, todavia, esta obra
regeneradora do Espírito Santo não pode, nesse sentido, ser dissociada da
pregação da Palavra, como se ambas fossem separadas uma da outra; pois apesar
de nossa Confissão ensinar que não temos por que duvidar quanto à salvação dos
nossos filhos que morrem na infância embora não tenham ouvido a pregação do
Evangelho, e apesar de nossos padrões confessionais em parte alguma se
expressarem sobre a maneira pela qual a regeneração é efetuada no caso destas
crianças e outras – não obstante é certo, por outro lado, que o Evangelho é
poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, e que, no caso dos
adultos, a obra regeneradora do Espírito Santo acompanha a pregação do
Evangelho”.[4]
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 474)
[1] Dogm
Theol. II p. 500.
[2] Confissão
Belga, artigo XXIV.
[3] Conf.
Belga, art. XXIV e especialmente o art. XXVI; Cânones de Dort III e
IV, artigos 12, 17.
[4] Os
seguintes escritos e teólogos reformados ensinam a regeneração imediata: Synopsis
Purioris Theologiae (dos professores de Leyden), 31:9; Mastricht,
Godgeleerdheit VI.3, 26; Brakel, Redelijke Godsdienst I, p.
738. Contudo, vê-se que estas três autoridades usam o termo “imediato” num
sentido diferente. Outros
mais: Turretino, Opera XV.4, 23, 24; Shedd, Dogm. Theol. II, p.
500, 501; Hodge, Syst. Theol. III, p. 31; Kuyper, Dict. Dogm., De
Salute, p. 74; Bavinck, Roeping en Wedergeboorte, p. 219 e segtes.;
Vos, Geref. Dogm. IV, p. 46 e segtes.