quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Nome e Conceito da Graça Comum

1. NOME. O nome “graça comum”, como designativo da graça ora em discussão, não se pode dizer que deve a Calvino a sua origem. Diz o dr. H. Kuiper, em sua obra sobre Calvino Sobre a Graça Comum (Calvin on Common Grace), que encontrou quatro trechos das obras de Calvino em que o adjetivo “comum” é empregado junto com o substantivo “graça”, e em duas delas o Reformador está falando da graça salvadora.[1] Na teologia reformada posterior, porém, o nome gratia communis entrou em uso geral para expressar a idéia de que esta graça se estende a todos os homens, em contraste com a gratia particularis, que se limita a uma parte da humanidade, a saber, aos eleitos. No transcurso do tempo, ficou evidente que o termo “communis” permitia várias interpretações. Na teologia holandesa ele é freqüentemente considerado como equivalente a “geral” e, como resultado, veio a ser costumeiro falar em “graça geral” (algemeene genade) na Holanda. Estritamente falando, porém, o termo communis, como aplicado à graça, embora implicando que é geral nalgum sentido da palavra, salienta o fato de que esta graça é comunal, isto é, é possuída em comum por todas as criaturas, ou por todos os homens, ou por aqueles que vivem sob a administração do Evangelho. Pelo que, o dr. H. Kuiper classifica a graça comum da qual fala Calvino sob três títulos, quais sejam: (1) Graça comum universal, que se estende a todas as criaturas; (2) Graça comum geral, que se aplica à comunidade em geral e a cada membro da raça humana; (3) Graça comum pactual, comum aos que vivem na esfera da aliança, pertençam aos eleitos ou não. É mais que evidente que os teólogos reformados (calvinistas) subordinaram também a expressão “graça comum” uma graça que não é geral, a saber, os privilégios dos que vivem sob a administração do Evangelho, a vocação universal externa inclusive. Ao mesmo tempo, eles assinalam que esta graça, em distinção da graça comum geral, pertence à economia da redenção.[2] Finalmente, deve-se notar que a expressão gratia communis é suscetível de receber, e de fato tem recebido, interpretação não somente quantitativa, mas também qualitativa. Pode denotar uma graça que é comum no sentido de ordinária. As operações ordinárias do Espírito Santo, em distinção das Suas operações especiais, são chamadas comuns. Suas operações naturais ou usuais se contrastam com as que são invulgares e sobrenaturais. É este o sentido do termo “comum” na Confissão de Westminster X.4, e no Catecismo Maior de Westminster, perg. 60.* A respeito da graça comum desfrutada pelos que vivem sob o Evangelho, declara W.L.Alexander: “A graça deste modo concedida é comum, não no sentido de ser dada a todos os homens em comum, mas no sentido de produzir efeitos ordinários, podendo ficar aquém da real eficácia salvífica”.[3] Assim entendida, a graça de Deus pode ser comum sem ser geral ou universal.

2. CONCEITO. A distinção entre a graça comum e a graça especial não se aplica à graça como atributo de Deus. Não há duas espécies de graça em Deus, mas somente uma. É a perfeição de Deus em virtude da qual ele mostra imerecido favor ao homem, favor de que este fora privado com justiça. Contudo, esta graça específica de Deus se manifesta em diferentes dons e operações. Sua mais rica manifestação se vê naquelas grandiosas operações que visam à remoção da culpa, da corrupção e da punição do pecado, e à salvação última dos pecadores, e redunda nessas bênçãos. Mas, se bem que este é o coroamento da obra da graça de Deus, não é sua única manifestação. Ela aparece também nas bênçãos naturais que Deus derrama sobre o homem na presente vida, apesar do fato de que o homem perdeu o direito a elas e se acha sob sentença de morte. A obra da graça divina se vê em tudo que Deus faz para restringir a devastadora influência e desenvolvimento do pecado no mundo, e para manter, enriquecer e desenvolver a vida da humanidade em geral e dos indivíduos componentes da raça humana. Deve-se ressaltar que estas bênçãos são manifestações da graça de Deus ao homem em geral. Alguns preferem dizer que elas são expressões da Sua bondade, benignidade, benevolência, misericórdia ou longanimidade, mas eles parecem esquecer que Deus não poderia ser bondoso, benigno ou benevolente para com o pecador, a menos que primeiramente fosse gracioso. Deve-se ter em mente, porém, que a expressão gratia communis, embora designando geralmente uma graça que é comum à humanidade toda, é também empregada para indicar uma graça que é comum aos eleitos e aos não eleitos que vivem sob o Evangelho, que inclui bênçãos como o chamamento externo do Evangelho, que é feito igualmente a ambos os grupos, e aquela iluminação interna e aqueles dons do Espírito a respeito dos quais lemos em Hb 6.4-6. Entende-se, porém, que estes privilégios só podem ser chamados comuns no sentido que são usufruídos pelos eleitos e pelo réprobo indiscriminadamente, e de que não constituem graça especial, no sentido de graça salvadora. Em distinção das manifestações mais gerais da graça comum, esses privilégios, embora não constituam parte da graça de Deus que leva necessariamente à salvação, são, não obstante, relacionados com o processo soteriológico. Às vezes recebem o nome de “especiais”, mas, neste caso, “especiais” não equivale a “salvadores”. Em geral se pode dizer que, quando falamos de “graça comum”, temos em mente, ou (a) as operações gerais do Espírito Santo pelas quais Ele, sem renovar o coração, exerce tal influência sobre o homem por meio da Sua revelação geral ou especial, que o pecado sofre restrição, a ordem é mantida na vida social, e a justiça civil é promovida; ou (b) as bênçãos gerais, como a chuva e o sol, a água e alimento, roupa e abrigo, que Deus dá a todos os homens indiscriminadamente, onde e quanto Lhe parece bom faze-lo.

Devemos notar os seguintes pontos de distinção entre a graça especial (no sentido de graça salvadora) e a graça comum:

a. A extensão da graça especial é determinada pelo decreto da eleição. Esta graça limita-se aos eleitos, ao passo que a graça comum não sofre esta limitação, mas é outorgada indiscriminadamente a todos os homens. O decreto da eleição e da reprovação não tem influência determinante sobre ela. Nem sequer se pode dizer que os eleitos recebem maior proporção da graça comum do que os não eleitos. É matéria de conhecimento geral, e muitas vezes se observou, que, com freqüência, os ímpios possuem maior medida da graça comum e têm maior participação nas bênçãos naturais do que os justos.

b. A graça especial remove a culpa e a penalidade do pecado, muda a vida interior do homem, e gradativamente o purifica da corrupção do pecado pela operação sobrenatural do Espírito Santo. Sua atividade invariavelmente redunda na salvação do pecador. Por outro lado, a graça comum jamais remove a culpa do pecado, não renova a natureza humana, mas apenas tem um efeito restringente sobre a influência corruptora do pecado e, em certa media, suaviza os seus resultados. Não efetua a salvação do pecador, embora nalgumas das suas formas (vocação externa e iluminação moral) esteja estreitamente relacionada com a economia da redenção e tenha uma aparência soteriológica.

c. A graça especial é irresistível. Não significa que seja uma força determinista a compelir o homem a crer contra a sua vontade, mas significa que, pela mudança do coração do homem, torna-o perfeitamente desejoso de aceitar a Jesus Cristo para a salvação e de prestar obediência à vontade de Deus. A graça comum é resistível, e de fato sempre sofre maior ou menor resistência. Paulo mostra em Rm 1 e 2 que, num os gentios, nem os judeus, viviam à altura da luz que possuíam. Diz Shedd: “Na graça comum, o chamamento para crer e arrepender-se é invariavelmente ineficaz, porque o homem é avesso à fé e ao arrependimento e está na escravidão do pecado”.[4] Ela é ineficaz para a salvação porque não transforma o coração.

d. A graça especial age de maneira espiritual e recriadora, renovando completamente a natureza do homem e, assim, tornando o homem capaz e desejoso de aceitar a oferta da salvação em Jesus Cristo e de produzir frutos especiais. A graça comum, ao contrário, opera somente de modo racional e moral, tornando o homem, de maneira geral, receptivo ante a verdade, apresentando motivos à vontade e apelando para os desejos naturais do homem. Isto equivale a dizer que a graça especial (salvadora) é imediata e sobrenatural, visto que é produzida na alma pela energia imediata do Espírito Santo, enquanto que a graça comum é mediata, uma vez que é produto da operação mediata do Espírito Santo mediante a verdade da revelação geral ou especial e mediante a persuasão moral.

Deve-se distinguir cuidadosamente entre esta concepção da graça comum e a dos arminianos, que consideram a graça comum com um dos elas da ordo salutis e lhe atribuem significação salvadora. Eles afirmam que, em virtude da graça comum de Deus, o homem não regenerado é perfeitamente capaz de praticar o bem espiritual, em certa medida, de converter-se a Deus com arrependimento e fé, e, assim, de aceitar a Jesus para a salvação. Vão mais longe até, e sustentam que, pela iluminação da mente e pela influência persuasiva da verdade, a graça comum incita o pecador a aceitar a Jesus Cristo e a converter-se a Deus com arrependimento e fé, e certamente atingirá este objetivo, a menos que o pecador resista obstinadamente à operação do Espírito Santo. Os Cânones de Dort se ocupam disto quando rejeitam o erro dos que ensinam “que o homem natural e corrupto pode usar tão bem a graça comum (pela qual eles entendem a luz da natureza), ou os dons que ainda lhe ficaram depois da Queda, que ele pode, pelo seu bom uso, obter gradativamente uma graça maior, isto é, a graça evangélica ou a salvadora, e a própria salvação”.[5]

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 432)



[1] Cf. p. 178
[2] Cf. Mastricht, God Geleerdheit I, p. 441; Brakel, Redelijke Godsdienst I, p. 729, 730; Hodge, Syst. Theol. II, p. 654; A.A. Hodge, Outlines of Theol., p. 449; Shedd, Calvinism Pure and Mixed, p. 98, 99; Vos, Geref. Dogm. IV, p. 13, 14.
* Ambos, juntamente com o Breve Catecismo de Westminster, símbolos de fé da Igreja Presbiteriana do Brasil. Nota do tradutor.
[3] Systm of Bib. Theol. II, p. 352.
[4] Calvinsm Purê and Mixed, p. 99..
[5] III.IV. Rejeição de erros 5.