1. O PROBLEMA DE QUE TRATA. O
surgimento da doutrina da graça comum foi ocasionado pelo fato de que há no
mundo, ao lado do curso da vida cristã com todas as suas bênçãos, um curso
natural da vida que, não implicando redenção, exibe, não obstante, muitos
sinais do verdadeiro, do bem e do belo. Foi levantada a questão múltipla: Como
podemos explicar a vida relativamente ordenada que há no mundo, se sabemos que
o mundo inteiro jaz sob a maldição do pecado? Como é que a terra dá fruto
precioso e abundante, em vez de só produzir espinhos e abrolhos? Como podemos
explicar o fato de que o homem pecador ainda “conserva algum conhecimento de
Deus, das coisas naturais e da diferença entre o bem e o mal, e demonstra
alguma consideração pela virtude e pelo bom comportamento exterior”? Que
explicação se pode dar dos dons e talentos especiais de que o homem natural é
dotado, e do desenvolvimento da ciência e da arte por gente totalmente vazia da
nova vida que há em Cristo Jesus? Como podemos explicar as aspirações
religiosas dos homens de toda parte, até de pessoas que não tiveram contato com
a religião cristã? Como é que os não regenerados ainda podem falar a verdade,
fazer o bem aos outros e levar vidas exteriormente virtuosas? Estas são algumas
indagações que a doutrina da graça comum procura responder.
2. A ATITUDE DE
AGOSTINHO FACE A ESTE PROBLEMA. Agostinho não ensinou a doutrina da graça
comum, embora não usasse a palavra “graça” exclusivamente como um designativo
da graça salvadora. Ele falava da graça que Adão desfrutava antes da Queda, e
até admitia que a existência do homem como ser vivo, racional e consciente,
podia ser denominada graça. Mas, contrariamente a Pelágio, que dava ênfase à
capacidade natural do homem e não reconhecia outra graça que aquela que
consiste dos dotes naturais do homem, da lei e do Evangelho, do exemplo de
Cristo, e da iluminação do entendimento por uma graciosa influência de Deus –
Agostinho salientava a incapacidade total do homem e a sua absoluta dependência
de da graça de Deus, sendo esta uma força renovadora interna que, não somente
ilumina a mente, mas também age na vontade do homem, quer como graça operante,
quer como cooperante. Ele emprega a palavra “graça” quase exclusivamente neste
sentido, e considera esta graça como a condição necessária para a realização de
cada boa ação. Quando os pelagianos apontavam para as virtudes dos pagãos que
“meramente pelo poder da liberdade inata” muitas vezes eram misericordiosos,
discretos, castos, moderados, ele respondia que estas virtudes, assim chamadas,
eram pecados, porque não provinham da fé. Ele admitia que os pagãos podem
praticar certos atos que são bons em si mesmos e que, numa perspectiva
inferior, são até louváveis, mas julgava que estes atos, como atos de
pessoas não regeneradas, são pecados, porque não brotam da motivação do
amor a Deus ou da fé, e não correspondem ao propósito certo – a glória de Deus.[1]
Ele negava que tais ações são fruto de qualquer bondade natural do homem.
3. O CONCEITO QUE SE DESENVOLVEU
DURANTE A IDADE MÉDIA. Durante a Idade Média, a antítese de pecado e graça deu
lugar à de natureza e graça. Esta se baseava noutra antítese que
desempenhou importante papel na teologia católica romana, a saber, a do natural
e a do sobrenatural. No estado de integridade, o homem estava revestido do dom
sobrenatural da justiça original, que servia de freio para manter sob controle
a natureza inferior. Como resultado da queda, o homem perdeu este dom
sobrenatural, mas a sua verdadeira natureza permaneceu ou foi apenas
ligeiramente afetada. Desenvolveu-se uma inclinação pecaminosa, mas isto não
impedia o homem de produzir muita coisa verdadeira, boa e bela. Contudo, sem a
infusão da graça de Deus, isso tudo não era suficiente para dar a ninguém algum
direito à vida eterna. Em conexão com a antítese do natural e o sobrenatural, a
Igreja Católica Romana desenvolveu a distinção entre as virtudes morais da
humildade, da obediência, da mansidão, da generosidade, da temperança, da
castidade e da inteligência e da diligência no que é bom, virtudes que os
homens podem conseguir por seus próprios esforços e com a oportuna ajuda da
graça divina; e as virtudes teologais da fé, da esperança e do amor (charis),
infundidas no homem pela graça santificante. O anabatismo e o socinianismo
padecem da mesma antítese, mas com a diferença de que o primeiro exalta a graça
a expensas da natureza, enquanto que a segunda exalta a natureza a expensas da
graça.
4. POSIÇÃO DOS REFORMADORES E DA
TEOLOGIA REFORMADA (CALVINISTA). Sobre este, como outros pontos doutrinários,
Lutero não se livrou inteiramente do fermento católico romano. Apesar de ter
retornado à antítese agostiniana de pecado e graça, traçou aguda distinção
entre a esfera terrenal inferior e a esfera espiritual superior, e sustentava
que o homem decaído é por natureza capaz de fazer muita coisa boa e louvável na
esfera inferior ou terrena, embora seja inteiramente incapaz de fazer qualquer
bem espiritual. Recorrendo a Agostinho, a Confissão de Augsburg “que a vontade
do homem tem alguma liberdade de pôr em ação uma justiça civil e de escolher
coisas que a razão pode alcançar; mas que não tem poder para pôr em ação a
justiça de Deus”.[2] O artigo contém
uma citação de Agostinho em que são mencionadas muitas boas obras pertencentes
à vida presente e que o homem natural pode fazer. Zwínglio entendia o pecado
como corrupção, e não como culpa, e, conseqüentemente, considerava a graça de
Deus como santificante, e não como graça perdoadora. Esta influência santificante,
que em certa medida penetrava até mesmo no mundo gentílico, explica o que há de
verdadeiro, bom e belo neste mundo. Calvino não concordava com a posição de
Lutero, nem com a de Zwínglio. Ele sustentava firmemente que o homem natural
não pode, por si mesmo, fazer nenhuma obra boa, e insistia vigorosamente
na natureza particular da graça salvadora. Ao lado da doutrina da graça
particular, ele desenvolveu a doutrina da graça comum. Esta graça é comunal,
não perdoa nem purifica a natureza humana, e não efetua a salvação dos
pecadores. Ela reprime o poder destrutivo do pecado, mantém em certa medida a
ordem moral do universo, possibilitando assim uma vida ordenada, distribui em
vários graus dons e talentos entre os homens, promove o desenvolvimento da ciência
e da arte, e derrama incontáveis bênçãos sobre os filhos dos homens. Desde os
dias de Calvino, a doutrina da graça comum é geralmente aceita na teologia
reformada (calvinista), embora encontrando ocasional oposição. Durante longo
tempo, porém, pouco foi feito para desenvolver a doutrina. Deve-se isto, com a
toda a probabilidade, ao fato de que o surgimento e predomínio do racionalismo
tornou necessário dar toda a ênfase à graça especial. Até o presente, Kuyper e
Bavinck fizeram mais que ninguém pelo desenvolvimento da doutrina da graça
comum.
(Teologia Sistemática – louis Berkhof.
Pg. 429)