1. NA IGREJA PRIMITIVA E NA TEOLOGIA
CATÓLICA ROMANA. No modo de entender a Igreja Primitiva o termo “regeneração”
não representava um conceito agudamente definido. Era utilizado para indicar
uma mudança estreitamente ligada à purificação dos pecados, e não se fazia
clara distinção entre a regeneração e a justificação. Identificada com a graça
batismal, aquela era entendida especialmente como um designativo da remissão
dos pecados, embora não estivesse excluída a idéia de certa renovação moral.
Mesmo Agostinho não traçou uma linha incisiva aí, mas distinguia entre a
regeneração e a conversão. Para ele, a regeneração inclui, em acréscimo à remissão
do pecado, somente uma mudança inicial do coração, seguida por uma conversão
posterior. Ele a concebia como uma obra estritamente monergista de Deus, na
qual o sujeito humano não pode cooperar e à qual o homem não pode resistir.
Para Pelágio, naturalmente, “regeneração” não significava o nascimento de uma
nova natureza, mas o perdão dos pecados no batismo, a iluminação da mente pela
verdade e a estimulação da vontade pelas promessas divinas. A confusão de
regeneração e justificação, já visível em Agostinho, tornou-se mais pronunciada
ainda no escolasticismo. De fato, a justificação tornou-se o conceito mais
proeminente dos dois, era entendida como incluindo a regeneração, e era
concebida como um ato no qual Deus e o homem cooperam. A justificação, de acordo
com a descrição comum, inclui a infusão da graça, isto é, o nascimento de uma
nova criatura ou a regeneração, e o perdão do pecado e a remoção da culpa
ligando-se a ela. Contudo, havia uma diferença de opinião quanto a qual destes
dois elementos é o primeiro fator lógico. Segundo Tomaz de Aquino, a infusão da
graça vem primeiro, e o perdão de pecados, pelo menos em certo sentido,
baseia-se nesta; mas segundo Duns Scotus, o perdão de pecados é o primeiro e
serve de base para a infusão da graça. Ambos os elementos são efetuados pelo
batismo, ex opere operato (pela ação do próprio objeto). A opinião de
Tomaz de Aquino foi vitoriosa na igreja. Até nos dias atuais há uma certa
confusão de regeneração e justificação na Igreja Católica Romana, confusão sem
dúvida devida em grande parte ao fato de que a justificação não é concebida
como um ato forense, mas como um ato ou processo de renovação. Nela o homem não
é declarado, mas feito justo. Diz Wilmers, em seu Manual da Religião Cristã
(Handbook of the Christian Religion): “Como a justificação é uma renovação ou
regeneração, segue-se que o pecado é realmente destruído por ela, e não, como
sustentavam os Reformadores, apenas coberto, ou não mais imputado”.
2. PELOS REFORMADORES E NAS IGREJAS
PROTESTANTES. Lutero não escapou inteiramente da confusão da regeneração com a
justificação. Além disso, ele falava da regeneração ou do novo nascimento num
sentido muito amplo. Calvino também usava o termo num sentido muito compre,
como um designativo de todo o processo pelo qual o homem é renovado, incluindo,
além do ato divino que origina a nova vida, também a conversão (arrependimento
e fé) e a santificação.[1]
Vários escritores do século dezessete não distinguiam entre a regeneração e a
conversão, e empregavam os dois termos um pelo outro, tratando daquilo que
agora denominamos regeneração sob o nome de vocação ou chamamento eficaz.* Os Cânones de Dort também utilizam as
duas palavras sinonimamente,[2]
e a Confissão Belga parece falar da regeneração num sentido mais amplo ainda,[3]
Este uso abrangente do termo “regeneração” muitas vezes levou à confusão e à
desatenção a distinções muito necessárias. Por exemplo, enquanto que a
regeneração e a conversão eram identificadas, ainda se declarava que a
regeneração era monergista, a despeito do fato de que na conversão é certo que
o homem coopera. A distinção entre a regeneração e a justificação já tinha
ficado mais clara, mas gradativamente se tornou também necessário e costumeiro
empregar o termo “regeneração” num sentido mais restrito. Turretino define dois
tipos de conversão: primeiro, uma conversão “habitual” ou passiva, a produção
de uma disposição ou um hábito da alma que, observa ele, poderia ser melhor
denominada “regeneração”; e, segundo, uma conversão “real” ou “ativa”, na qual esta
disposição ou este hábito implantado se torna ativo na fé e no arrependimento.
Na teologia reformada (calvinista) do presente, a palavra “regeneração” é
geralmente usada num sentido mais restrito, como um designativo do ato divino
pelo qual o pecador é dotado de nova vida espiritual, e pelo qual o princípio
dessa nova vida é posto em ação pela primeira vez. Assim concebida, ela inclui
tanto a nova geração como o novo nascimento, em que a nova vida se torna
manifesta. Contudo, em estrita harmonia com o sentido literal da palavra
“regeneração”, o termo é às vezes empregado num sentido ainda mais limitado,
para denotar simplesmente a implantação da nova vida na alma, sem as primeiras
manifestações desta vida.
Na teologia “liberal” moderna, o termo
“regeneração” adquiriu um sentido diferente. Schleiermacher distinguia dois
aspectos da regeneração, a saber, a conversão e a justificação, e afirmava que
na regeneração “uma nova consciência religiosa é produzida no crente pelo
espírito cristão comum da comunidade, e a nova vida, ou a ‘santificação’,
constitui o seu aparelhamento” (Pfleiderer). Esse “espírito cristão da
comunidade”, é resultado de um influxo da vida divina, mediante Cristo, na
igreja, e é chamado “Espírito Santo” por Schleiermacher. O conceito modernista
foi bem exposto com estas palavras de Youtz: “A interpretação moderna
inclina-se a regressar ao emprego simbólico do conceito de regeneração. As
nossas realidades éticas lidam com caracteres transformados. Assim, a
regeneração expressa uma mudança ética, radical, vital, e não um início
metafísico absolutamente novo. A regeneração é um passo vital no
desenvolvimento natural da vida espiritual, um radical reajustamento aos
processos morais da vida”.[4]
Os estudiosos da psicologia da religião geralmente deixam de distinguir entre
regeneração e conversão. Consideram-na como um processo no qual a atitude do
homem para com a vida muda do autocêntrico para o heterocêntrico. Ela acha sua
explicação primariamente na vida subconsciente, e não envolve necessariamente
nada de sobrenatural. Diz William James: “Converter-se, ser regenerado, receber
a graça, ter experiência religiosa, obter segurança, são muitas das frases que
denotam o processo, gradual ou súbito, pelo qual um ego até então dividido e
conscientemente errado, inferior e infeliz, torna-se unificado e
conscientemente certo, superior e feliz, em conseqüência do seu apego mais
firme às realidades religiosas”.[5]
Segundo Clark, “Os estudiosos concordaram em discernir três passos distintos da
conversão: (1) Um período de ‘turbulência e tensão’, ou de senso do pecado, ou
de sentimento de desarmonia interior, conhecida na teologia como ‘convicção de
pecado’ e designada por James como ‘ doença da alma’. (2) Uma crise emocional
que marca um ponto decisivo. (3) Uma subseqüente descontração aliada a uma
sensação de paz, repouso e harmonia interior, aceitação da parte de Deus, e,
não infreqüentemente, a reflexos motores e sensoriais de várias espécies”.[6]
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 465)