quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Vocação Externa

A Bíblia não faz uso do termo “externa”, mas fala claramente de uma vocação que não é eficaz. Esta é pressuposta na grande comissão, como se acha em Mc 16.15, 16: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo: quem, porém, não crer será condenado”. A parábola das bodas, em Mt 22.2-14, ensina claramente que alguns convidados não compareceram, e conclui com as bem conhecidas palavras: “Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos”. A mesma lição é-nos ensinada na parábola da grande ceia, em Lc 14.16-24. Outras passagens falam explicitamente de uma rejeição do Evangelho, Jo 3.36; At 13.46; 2 Ts 1.8. Ainda outras falam do terrível pecado da incredulidade, em termos que mostram que havia alguns que o cometeram, Mt 10.15; 11.21-24; Jo 5.40; 16.8,9; 1 Jo 5.10. A vocação externa consiste na apresentação e oferta da salvação em Cristo aos pecadores, juntamente com uma calorosa exortação a aceitarem a Cristo pela fé, para obterem o perdão dos pecados e a vida eterna.

1. ELEMENTOS NELA CONTIDOS.

a. Uma apresentação dos fatos do Evangelho e da doutrina da redenção. O método de redenção revelado em Cristo deve ser exposto com clareza em todas as suas relações. O plano divino de redenção, a obra salvadora de Cristo e as operações renovadoras e transformadoras do Espírito Santo devem ser interpretados segundo as suas relações mútuas. Deve-se ter em mente, porém, que uma simples apresentação das verdades da redenção, não importa quão bem feita, ainda não constitui o chamamento do Evangelho. Não é somente fundamental, mas é até uma parte importante dele. Ao mesmo tempo, de maneira nenhuma constitui a totalidade desse chamamento. De acordo com a nossa concepção reformada (calvinista), também lhe pertencem os seguintes elementos.

b. Um convite ao pecador para aceitar a Cristo com arrependimento e fé. A descrição do método de salvação deve ser suplementada por um fervoroso convite ao pecador (2 Co 5.11, 20) para arrepender-se e crer, isto é, para aceitar a Cristo pela fé. Mas, a fim de que esta vinda a Cristo não seja entendida num sentido superficial, como muitas vezes os avivalistas a apresentam, a verdadeira natureza do arrependimento e da fé que se requerem deve ser exposta claramente. Deve-se deixar perfeitamente claro que o pecador não tem poderes para arrepender-se e crer verdadeiramente, mas que é Deus que efetua nele “tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”

c. Uma promessa de perdão e salvação. A vocação externa contém igualmente uma promessa de que serão aceitos todos os que cumprirem as condições, não com suas forças, mas pelo poder da graça de Deus produzida nos seus corações pelo Espírito Santo. Os que pela graça se arrependem dos seus pecados e aceitam a Cristo pela fé recebem a firme certeza do perdão dos pecados e da salvação eterna. Esta promessa, é bom que se note, nunca é absoluta, mas, antes, é sempre condicional. Ninguém pode esperar o seu cumprimento, a não ser no modo de fé e arrependimento verdadeiramente produzido por Deus.

Do fato de que estes elementos estão incluídos na vocação externa, pode-se inferir prontamente que aqueles que rejeitam o Evangelho, não apenas se recusam a acreditar em certos fatos e idéias, mas resistem à operação geral do Espírito Santo, que se relaciona com esta vocação, e pesa sobre eles a culpa do pecado de obstinada desobediência. Com sua recusa a aceitarem o Evangelho, aumentam a sua responsabilidade e entesouram ira sobre si, para o dia do juízo, Rm 2.4,5. Que os elementos supracitados estão realmente incluídos na vocação externa, evidenciam-se as seguintes passagens da Escritura: (a) De acordo com At 20.27, Paulo considera a declaração de todo o conselho de Deus como uma parte do chamamento, e, Ef 3.7-11 ele volta a relatar alguns dos pormenores que tinha declarado aos leitores. (b) Exemplos do chamamento ao arrependimento e à fé se encontram em passagens como Ez 33.11; Mc 1.15; Jo 6.29; 2 Co 5.20. (c) e a promessa está contida nas seguintes passagens, Jo 3.16-18, 36; 5.24,40.[1]

2. CARACTERÍSTICAS DA VOCAÇÃO EXTERNA.

a. É geral ou universal. Não se deve entender insto no sentido em que foi entendido por alguns dos antigos teólogos luteranos, qual seja, que o chamamento chegou de fato todos os viventes mais de uma vez no passado, como por exemplo, no tempo de Adão, no de Noé e nos dias dos apóstolos. Diz acertadamente McPherson: “Um chamamento dessa espécie não é um fato, mas uma simples teoria inventada com alguns propósitos”.[2] Nessa apresentação, os termos “geral” e “universal” não são empregados no sentido visado quando se diz que o chamamento do Evangelho é geral ou universal. Além disso, a referida apresentação é ao menos contrária aos fatos. A vocação externa é geral somente no sentido de que ela vem a todos os homens a quem o Evangelho é pregado, indiscriminadamente. Não está confinada a alguma idade ou classe de homens. Vem aos justos e aos injustos, aos eleitos e aos réprobos. As seguintes passagens testificam a natureza geral desta vocação: Is 55.1, “Ah! Todos vós os que tendes sede, vinde às águas; e vós os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei: sim, vinde comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite” cf. também os versículos 6 e 7. Em conexão com esta passagem, é concebível que se possa dizer que somente os pecadores espiritualmente qualificados são chamados: mas não se pode dizer isso de Is 45.22, “’Olhai para mim, sede salvos, todos os termos da terra; porque eu sou Deus, e não há outro”. Alguns também interpretam o conhecido convite de Jesus em Mt 11.28, “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”, como limitado aos que se encontram verdadeiramente preocupados com os seus pecados e realmente contritos; mas não há base para tal limitação. O último livro da Bíblia conclui com um belo convite geral: “O Espírito e a noiva dizem: Vem. Aquele que tem sede, venha, e quem quiser receba de graça a água da vida” Ap 22.17. Que o convite do Evangelho não se limita aos eleitos, como alguns afirmam, é completamente evidenciado por passagens como estas: Sl 81.11-13; Pv 1.24-26; Ez 3.19; Mt 2.2-8, 14; Lc 14.16-24.

O caráter geral desta vocação também é ensinado nos Cânones de Dort.[3] Todavia, repetidamente esta doutrina encontrou oposição de indivíduos e grupos nas igrejas reformadas (calvinistas). Na Igreja Escocesa do século dezessete alguns negavam completamente o convite e oferta da salvação indiscriminado, enquanto outros queriam limita-los às fronteiras da igreja invisível.contra estes erros os homens de Marrow,* como Boston e os Erskine, o defendiam. Os que sustentavam a oferta universal eram chamados pregadores da nova luz, ao passo que os que defendiam a oferta particular, a oferta aos que já evidenciavam alguma porção da graça especial e, portanto, podiam ser contados entre os eleitos, eram conhecidos como pregadores da velha luz. Mesmo nos dias atuais, ocasionalmente nos defrontamos com alguma oposição sobre este ponto. Dizem que esse convite e oferta geral é incoerente com a doutrina da predestinação e com a da expiação particular, doutrinas nas quais, segundo se pensa, o pregador deve tomar seu ponto de parida. Mas a Bíblia não ensina que o pregador deve tomar seu ponto de partida nestas doutrinas, por importantes que sejam. Seu ponto de partida e sua autoridade estão na comissão do seu Rei: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado”, Mc 16.15, 16. Além disso, é uma impossibilidade total alguém, ao pregar o Evangelho, limitar-se aos eleitos, como alguns gostariam que fizéssemos, uma vez que ele não sabe quais são as pessoas eleitas. Jesus sabia, mas não limitou desse modo o oferecimento da salvação, Mt 22.3-8, 14; Lc 14.16-21; Jo 5.38-40. Haveria uma real contradição entre as doutrinas reformadas (calvinistas) da predestinação e da expiação particular, de um lado, e a oferta universal da salvação, de outro Aldo, se esta oferta incluísse a declaração de que Deus tem o propósito de salvar todo ouvinte individual do Evangelho, e de que Cristo realmente expiou os pecados de cada um deles. Mas o convite do Evangelho não envolve tal declaração. Este é um gracioso chamamento para que o pecador aceite a Cristo pela fé, e uma promessa condicional de salvação. A condição só se cumpre nos eleitos, e, portanto, somente eles podem obter a vida eterna.

b. É um chamamento bona fide (de boa fé). A vocação externa é um chamamento feito com boa fé, um chamamento feito com seriedade de intenção. Não é um convite que vai de parceria com a esperança de que não será aceito. Quando Deus Chama o pecador para que aceite a Cristo pela fé, Ele o deseja ardentemente; e quando promete aos que se arrependem e crêem a vida eterna, Sua promessa é fidedigna. Isto decorre da própria natureza de Deus, de Sua veracidade. É blasfemo pensar que Deus pode ser acusado de equívoco e engano, que Ele diz uma coisa e quer dizer outra, que Ele argumenta fervorosamente com o pecador para que se arrependa e creia para a salvação e, ao mesmo tempo, não deseja isso em nenhum sentido da palavra. O caráter bona fide da vocação externa é comprovado pelas seguintes passagens da Escritura: Nm 23.19; Sl 81.13-16; Pv 1.24; Is 1.18-20; Ez 18.23, 32; 33.11; Mt 21.37; 2 Tm 2.13. Os Cânones de Dort o afirma explicitamente em III e IV, 8. Várias objeções têm sido apresentadas à idéia dessa oferta bona fide de salvação. (1) Uma objeção é derivada da veracidade de Deus. Diz-se que, segundo esta doutrina, Ele oferece o perdão dos pecados e a vida eterna àqueles a quem Ele não tem nenhuma intenção de fazer essas dádivas. Não há necessidade de negar que há uma real dificuldade neste ponto, mas esta é a dificuldade com que nos confrontamos toda vez que procuramos harmonizar a vontade decretatória com a vontade preceptiva de Deus, uma dificuldade que nem os oponentes podem resolver e que muitas vezes simplesmente ignoram. Todavia, não devemos supor que ambas são realmente contraditórias. A vontade decretatória determina o que cm toda a certeza virá a acontecer (sem implicar necessariamente que Deus tem prazer em tudo que acontece, como, por exemplo, em todo e qualquer tipo de pecado), ao passo que a vontade preceptiva é a norma da vida do homem, informando-o a respeito daquilo que é deveras agradável aos olhos de Deus. Ademais, deve-se ter em mente que Deus não oferece aos pecadores o perdão dos pecados e a vida eterna incondicionalmente, mas somente por meio da fé e da conversão; e que a justiça de Cristo, embora não destinada a todos, é, contudo, suficiente para todos. (2) Uma segunda objeção é derivada da incapacidade espiritual do homem. O homem, como ele é por natureza, não pode crer e arrepender-se, e, daí, parece zombaria pedir-lhe que faça isso. Mas, em conexão com esta objeção, devemos lembrar-nos de que, em última análise, a incapacidade do homem nas coisas espirituais, tem suas raízes em sua indisposição para servir a Deus. A real condição das coisas não é tal que muitos gostariam de arrepender-se e crer em Cristo, se tão somente pudessem faze-lo. Todos os que não crêem não estão querendo crer, Jo 5.40. Além disso, exigir dos homens arrependimento e fé em Cristo não é mais despropositado que exigir que guardem a lei. De maneira muito incoerente, alguns dos que se opõem à oferta geral da salvação com base na incapacidade espiritual do homem, não hesitam em colocar o pecador diante das exigências da lei, e até insistem em faze-lo.

3. A SIGNIFICAÇÃO DA VOCAÇÃO EXTERNA. Pose-se inquirir porque Deus vem a todos os homens indiscriminadamente, incluindo até os réprobos, com a oferta da salvação. Esta vocação externa responde a mais de um propósito.

a. Nela Deus afirma os Seus direitos sobre o pecador. Como soberano Governador do Universo, Ele tem autoridade para exigir o serviço do homem – e isso é matéria de direito absoluto. E embora o homem tenha rompido com Deus pelo pecado, e agora seja incapaz de prestar obediência espiritual ao seu justíssimo Soberano, sua transgressão voluntária não abrogou o direito de Deus ao serviço das Suas criaturas racionais. O direito que Deus tem de exigir obediência absoluta persiste, e Ele assevera este direito, tanto na lei como no Evangelho. Sua prerrogativa sobre o homem também acha expressão no chamamento para a fé e o arrependimento. E se o homem não dá atenção a este chamamento para a fé e o a este chamamento, desconsidera e menospreza a justa prerrogativa de Deus e, com isso, aumenta a sua culpa.

b. É o meio designado por Deus de levar os pecadores à conversão. Noutras palavras, é o meio pelo qual Deus reúne os eleitos, recolhendo-os das nações da terra. Como tal, tem que ser necessariamente geral ou universal, desde que nenhum homem pode indicar os eleitos. Naturalmente, o resultado final, é que os eleitos, e somente os eleitos, aceitam a Cristo pela fé. Não significa que os missionários podem partir e dar aos seus ouvintes a segura certeza de que Cristo morreu em favor de cada um deles e de que a intenção de Deus é salvar cada um deles; mas significa, sim, que eles podem levar as jubilosas e alvissareiras novas de que Cristo morreu pelos pecadores, de que Ele os convida a virem a Ele, e de que Ele oferece a salvação a todos aqueles que verdadeiramente se arrependem dos seus pecados e O aceitam com uma fé viva.

c. É também uma revelação da santidade, bondade e compaixão de Deus. Em virtude da Sua santidade, Deus em toda parte dissuade do pecado os pecadores, e em virtude da Sua bondade e misericórdia, adverte-os contra a autodestruição, posterga a execução da sentença de morte e os abençoa com o oferecimento da salvação. Não há dúvida de que este oferecimento gracioso em si mesmo é uma bênção para os pecadores, e não, como alguns o entendem, uma maldição. Sim, pois, a oferta da salvação revela claramente a compaixão divina por eles, e assim é descrito na Palavra de Deus, Sl 81.13; Pv 1.24; Ez 18.23, 32; 33.11; Am 8.11; Mt 11.20-24; 23.37. Ao mesmo tempo, é certo que muitos, por sua oposição, podem transformar esta bênção em maldição. Ela naturalmente aumenta o peso da responsabilidade do pecador, e, se não for aceita e desenvolvida, intensificará o seu julgamento.

d. Finalmente, acentua claramente a justiça de Deus. Se mesmo a revelação de Deus na natureza atende ao propósito de impedir qualquer escusa que os pecadores pudessem estar inclinados a apresentar, Rm 1.20, isto é muitíssimo verdadeiro quanto à revelação especial do método de salvação. Quando os pecadores desprezam a clemência de Deus e rejeitam a Sua graciosa oferta de salvação, a enormidade da sua corrupção e culpa e a justiça de Deus ao condena-los ficam expostas com a máxima clareza.

QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. Em quais casos os reformados (calvinistas) presumem que a regeneração precede até mesmo à vocação externa? Como relacionam eles a vocação externa com a doutrina da aliança? 3. Com que fundamento os arminianos, por ocasião do Sínodo de Dort, afirmaram que as igrejas reformadas (calvinistas) não podem ensinar coerentemente que Deus com seriedade chama indiscriminadamente os pecadores para a salvação? 4. Como os católicos romanos concebem o chamamento pela Palavra? 5. Qual a concepção luterana da vocação? 6. É correto dizer (com Alexander, Syst. of Bibl. Theol. II, p. 357 e segtes.), que a palavra, por si mesma, é adequada para efetuar uma mudança espiritual, e que o Espírito Santo Apenas remove a obstrução que impede o seu recebimento?

BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck. Geref. Dogm. IV, p. 1-15; ibid., Roeping en Wedergeboorte; Kuyper, Dict. Dogm., De Salute, p. 84-92; Mastricht, Godgeleerdeheit III, p. 192-214; à Marck, Godgeleerdheid, p. 649-651; Witsius, De Verbonden III, c. 5; Hodge, Syst. Theol. II, p. 639-653; Dabney, Theology, p. 553-559; Schmid, Doct. Theol., p. 448-456; Valentine, Chr. Theol. II p. 194-204; Pope, Chr. Theol. II, p. 335-347; W. L. Alexander, Syst. of Bibl. Thel. II, p. 357-361.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. 460)



[1] Cf. também os Cânones de Dort II, 5, 6; III e IV, 8.
[2] Chr, Dogm., p. 377.
[3] II, 5; III e IV, 8.
* “The Marrow men” (homens da Medula), grupo que se formou inspirado na obra publicada originariamente em 1646, de autor desconhecido, e reeditada em 1718 por alguns teólogos escoceses, dentre os quais Thomas Boston de Ettrick. O livro, intitulado The Marrow of Modern Divinity (A Medula da Teologia Moderna), expunha um calvinismo extremo e foi condenado em 1720 como antinomiano. Na controvérsia levantada houve pequena cisão, resultando na criação de um “Presbitério Associado”, em 1733, pela iniciativa de Ebenezer Erskine e outros três. Nota do tradutor.