1. SUA INSEPARÁVEL CONEXÃO COM A VOCAÇÃO
EXTERNA. Pode-se dizer que a vocação de Deus é uma só, e a distinção ente uma
vocação externa e uma vocação interna ou eficaz simplesmente chama a atenção
para o fato de que esta vocação única tem dois aspectos. Não significa que
estes dois aspectos estão sempre unidos e sempre andam juntos. Não asseveramos,
com os luteranos, que “a vocação interna é sempre concorrente com o ouvir a
palavra”.[1]
Significa, porém, que onde a vocação interna chega aos adultos, é medida pela
pregação da Palavra. A mesma Palavra ouvida na vocação externa torna-se
eficiente no coração, na vocação interna. Pela poderosa aplicação feita pelo
Espírito Santo, a vocação externa passa direto para a vocação interna.[2]
Mas,embora esta vocação esteja estreitamente relacionada com a vocação externa
e forme uma unidade com ela, há certos pontos de diferença: (a) É uma vocação
pela Palavra, salvadoramente aplicada pela operação do Espírito Santo, 1
Co 1.23, 24; 1 Pe 2.9; (b) É uma vocação poderosa, isto é, uma vocação
que é eficaz para a salvação, At 13.48; 1 Co 1.23, 24; e (c) É sem
arrependimento, isto é, não está sujeita a mudança e jamais será retirada,
Rm 11.29.
2. CARACTERÍSTICAS DA VOCAÇÃO INTERNA.
Devemos notar as seguintes características:
a. Ela age por meio da suasão moral,
mais a poderosa operação do Espírito Santo. Surge a questão sobre se nesta
vocação (como distinta da regeneração) a Palavra de Deus age de maneira criadora,
ou pela persuasão moral. Pois bem, não há dúvida de que às vezes se diz que a
Palavra de Deus age de maneira criadora, Gn 1.3; Sl 33.6, 9; 147.15; Rm 4.17
(embora se possa interpretar isto diferentemente). Mas estas passagens se
referem à Palavra do poder de Deus, ao Seu mando cheio de autoridade, e não à
palavra da pregação da qual nos ocupamos aqui. O Espírito Santo opera através
da pregação da Palavra somente de maneira persuasiva, dando eficiência às suas
palavras de persuasão, para que o homem ouça a voz do seu Deus. Isto decorre da
própria natureza da Palavra , que se dirige ao entendimento e à vontade.[3]
Deve-se ter em mente, porém, que esta suasão moral ainda não constitui a
totalidade da vocação interna; requer-se, em acréscimo a isso, uma poderosa
operação do Espírito Santo, aplicando a Palavra ao coração.
b. Ela opera na vida consciente do homem.
Este ponto está muito intimamente relacionado com o anterior. Se a palavra da
pregação não opera criadoramente, mas somente persuasiva, segue-se que ela só
pode agir na vida consciente do homem. Ela se dirige ao entendimento, que o
Espírito reveste de discernimento espiritual da verdade, e por meio do
entendimento, influencia efetivamente a vontade, de modo que o pecador se volta
para Deus. A vocação interna necessariamente redunda na conversão, isto é, num
consciente abandono do pecado, rumo à santidade.
c. É teológica. A vocação interna é
de caráter teológico, isto é, chama o homem para um certo fim: para a grande
meta à qual o Espírito Santo está conduzindo os eleitos, e, conseqüentemente,
também aos estágios intermediários do caminho para este destino final. É uma
vocação para a comunhão de Jesus Cristo, 1 Co 1.9; para herdarem bênçãos, 1 pe
3.9; para a liberdade, Gl 5.13; para a paz, 1 Co 7.15; para a santidade, 1 Ts
4.7; para uma esperança única, Ef 4.4; para a vida eterna, 1 Tm 6.12; e para o
reino e glória de Deus, 1 Ts 2.12.
3. RELAÇÃO DA VOCAÇÃO EFICAZ COM A
REGENERAÇÃO.
a. Identificação de ambas na teologia
dezessete. É um fato bem conhecido que na teologia do século dezessete a
vocação e a regeneração muitas vezes são identificadas, ou, se não inteiramente
identificadas, ao menos na medida em que a regeneração é considerada como
inclusa na vocação. Diversos teólogos, dos mais antigos, têm um capítulo
separado sobre a vocação, mas nenhum sobre a regeneração. Segundo a Confissão
de Westminster, X.2, a vocação eficaz inclui a regeneração. Este conceito
encontra alguma justificação no fato de que Paulo, que emprega a palavra
“regeneração” somente uma vez, evidentemente a concebe como incluída na vocação
em Rm 8.30. além disso, há um sentido em que a vocação e a regeneração se
relacionam como causa e efeito. Contudo, devemos ter em mente que, ao dizermos
que a vocação inclui a regeneração, ou que se relaciona casualmente com ela,
não estamos pensando apenas naquilo que é tecnicamente denominado vocação
interna ou eficaz, mas na vocação em geral, incluindo até mesmo uma vocação
criadora. O extenso uso, nos tempos da Pós-Reforma, do termo “vocação”, em vez
de “regeneração”, para designar o início da obra da graça na vida dos
pecadores, deve-se ao desejo de salientar a estreita conexão entre a Palavra de
Deus e a operação da Sua graça. E o predomínio do termo “vocação” na era
apostólica encontra a sua explicação e a sua justificação no fato de que, no
caso dos que, naquele período missionário, foram agregados à igreja, a
regeneração e a vocação eficaz geralmente eram simultâneas, quando a mudança se
refletia em sua vida consciente como um poderoso chamamento de Deus. Todavia,
numa apresentação sistemática da verdade, devemos discriminar cuidadosamente
entre a vocação e a regeneração.
b. Pontos de diferença entre a
regeneração e a vocação eficaz. A regeneração, no sentido mais estrito da
palavra, isto é, como nova geração, tem lugar na vida subconsciente do homem, e
independe por completo de qualquer atitude que ele possa assumir com referência
a ela. A vocação, por outro lado, dirige-se à consciência e implica certa
disposição da vida consciente. Isto decorre do fato de que a regeneração age de
dentro , enquanto que a vocação age de fora. No caso das crianças, falamos em
regeneração, e não em vocação. Ademais, regeneração é uma operação criadora,
hiperfísica do Espírito Santo, pela qual o homem é levado de uma condição para
outra, de uma condição de morte espiritual para uma condição de vida
espiritual. A vocação eficaz, por outro lado, é teológica, induz a nova vida e
aponta numa direção que ruma para Deus. Ela assegura os exercícios da nova
disposição e leva a nova vida à ação.
c. A ordem relativa da vocação e da
regeneração. Talvez se compreenda melhor isto, se observarmos os seguintes
estágios: (1) Logicamente, a vocação externa, que ocorre na pregação da Palavra
(exceto no caso das crianças), geralmente precede à operação regeneradora do
Espírito Santo, ou coincide com ela, operação pela qual a nova vida é produzida
na alma do homem. (2) Depois, por uma palavra criadora, Deus gera a nova vida,
mudando a disposição interna da alma, iluminando a mente, incitando os
sentimentos e renovando a vontade. Neste ato de Deus, são implantados os
ouvidos que capacitam o homem a ouvir o chamamento de Deus para a salvação das
suas almas. Isto é regeneração no sentido mais restrito da palavra. Nela
o homem é inteiramente passivo. (3) Tendo recebido os ouvidos espirituais, o
chamamento de Deus pelo Evangelho é agora ouvido pelo pecador e é levado
efetivamente ao coração, capacitando-o para compreendê-lo. O desejo de resistir
é transformado num desejo de obedecer, e o pecador se rende à influência
persuasiva da Palavra pela operação do Espírito Santo. Esta é a vocação
eficaz, pela instrumentalidade da palavra da pregação, efetivamente aplicada
pelo Espírito de Deus. (4) Finalmente, esta vocação eficaz assegura, pela
verdade como meio, os primeiros exercícios santos da nova disposição que nasceu
na alma. A nova vida começa a manifestar-se; a vida implantada resulta no novo
nascimento. Esta é a consumação da obra de regeneração, no mais amplo
sentido da palavra, e o ponto em que ela passa a ser conversão.
Agora, não devemos cometer o engano de
considerar esta ordem lógica como uma ordem cronológica aplicável a todos os
casos. Muitas vezes a nova vida é implantada nos corações das crianças muito
tempo antes de poderem ouvir o chamamento do Evangelho; todavia, elas só são
revestidas desta vida onde se prega o Evangelho. Sempre há, por certo, um
chamamento criado por Deus, pelo qual a nova vida é produzida. No caso das que
vivem sob a administração do Evangelho, existe a possibilidade de receberem
elas a semente da regeneração muito antes de chegarem à idade da discrição e,
portanto, muito antes também da penetração da vocação eficaz em sua
consciência. Contudo, é muito improvável que, sendo regeneradas, vivam em
pecado durante anos, e ainda depois de terem atingido a maturidade, sem darem
quais quer evidências da nova vida nelas existente. Por outro lado, no caso das
que não vivem sob a administração da aliança, não há razão para supor um
intervalo entre o tempo da sua regeneração e o da sua vocação eficaz. Na
vocação eficaz, ela se tornam imediatamente cônscias da sua renovação, e
imediatamente vêem a semente da regeneração germinando para a nova vida. Isto
significa que a regeneração, a vocação eficaz e a conversão coincidem.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 469)