quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Relação Entre a Graça Especial e a Comum

Várias questões podem ser levantadas a respeito desta relação, das quais as seguintes são algumas das mais importantes:

1. A GRAÇA ESPECIAL E A COMUM DIFEREM ESSENCIALMENTE, OU SOMENTE NO DECRETO? Os arminianos reconhecem ao lado da graça suficiente (comum) a graça da obediência evangélica, mas afirmam que as duas diferem somente em grau, não em essência. Ambas são soteriológicas, no sentido de que fazem parte da obra salvadora de Deus. A primeira possibilita ao homem arrepender-se e crer, ao passo segunda, em cooperação com a vontade, faz com que o homem se arrependa e creia. Ambas podem sofrer resistência, de maneira que, mesmo a segunda não é necessariamente eficaz para a salvação. Todavia, a teologia reformada (calvinista) insiste na diferença essencial entre a graça comum e a especial. A graça especial é sobrenatural e espiritual; remove a culpa e a corrupção do pecado, e suspende a sentença de condenação. A graça comum, por outro lado, é natural; e, embora algumas das suas formas possam estar estreitamente relacionadas com a graça salvadora, ela não remove o pecado nem liberta o homem, mas simplesmente restringe as manifestações externas do pecado e promove a moralidade e a decência exteriores, boa ordem na sociedade, justiça cívica, desenvolvimento da ciência e da arte etc. Ela age somente na esfera natural, e não na espiritual. Deve-se sustentar, que, embora ambas estejam estreitamente relacionadas na presente vida, são essencialmente diferentes, não diferindo apenas em grau. Haja quanta graça comum houver, não introduzirá o pecador na vida que há em Cristo Jesus.Contudo, a graça comum às vezes se revela em formas que dificilmente o homem pode distinguir das manifestações da graça especial como, por exemplo, no caso da fé temporal. Ao que parece, o dr. Shedd não tem especialmente em mente a diferença essencial entre ambas, quando diz: “O não eleito recebe a graça comum, e a graça comum dobraria a vontade humana, se não fosse derrotada por ela. Se o pecador não fizesse oposição hostil, a graça comum seria equivalente à graça especial”. Numa nota ele acrescenta: “Dizer que a graça comum, se não sofresse resistência do pecador, seria equivalente à graça regeneradora, não é o mesmo que dizer que a graça comum, se ajudada pelo pecador, seria equivalente à graça regeneradora. No primeiro caso, Deus seria o único autor da regeneração; no segundo, não seria”.[1] Isto faz lembrar a teologia luterana, mas não está inteiramente claro o que o autor quer dizer, pois noutro lugar ele atribui também a não resistência do pecador à operação do Espírito Santo.[2]

2. QUAL DAS DUAS É A PRIMEIRA, A GRAÇA COMUM OU A GRAÇA ESPECIAL? A esta questão deve-se responder que, num sentido temporal, não se pode dizer que qualquer delas tenha prioridade sobre a outra. O capítulo três de Gênesis revela claramente que ambas entraram em ação imediatamente após a Queda. Contudo, deve-se atribuir à graça especial a prioridade lógica, porquanto a graça comum é-lhe subserviente em sua operação no mundo.

3. A GRAÇA COMUM ATENDE A UM PROPÓSITO INDEPENDENTE, OU NÃO? Não se pode duvidar de que, em parte, a graça comum tem o seu propósito na obra redentora de Jesus Cristo; ela é subserviente à execução do plano de Deus na vida dos eleitos e no desenvolvimento da igreja. Mas, em acréscimo, atende também um propósito independente, qual seja, trazer à luz e pôr em ação, para o serviço do homem, as forças ocultas da natureza e desenvolver os poderes e talentos latentes na raça humana, para que o homem possa progressivamente exercer domínio sobre a criação inferior, para a glória de Deus, o Criador.[3]

4. A GRAÇA ESPECIAL E A GRAÇA COMUM TÊM, CADA UMA, A SUA PRÓPRIA ESFERA PECULIAR E DISTINTIVA? Pode-se dizer que, em certo sentido, a graça especial tem a sua própria esfera peculiar na igreja organizada, se bem que não está limitada necessariamente a esta, e que a graça comum também opera na igreja, pois ela é dada a todos os homens. Ambas operam no mundo, mas, enquanto o graça comum, no sentido mais habitual da expressão, diz respeito às coisas do mundo natural e da vida presente, a graça especial tem que ver com as coisas da nova criação. Só podem influenciar-se mutuamente. A graça comum enriquece a igreja com as suas bênçãos; e a igreja eleva os frutos da graça comum a um nível superior, colocando-os sob a influência da vida regenerada.

(Teologia Sistemática – Louis Bekhof. Pg. 435)



[1] Dogm. Theol. II, p. 483.
[2] Calvinism Pure and Mixed, p. 101.
[3] Cf. Kuyper, Gemeene Gratie II, p. 622, 628, 633; Bavinck, De Algemeene Genade, p. 45.