quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Vocação em Geral

Desde que a vocação externa é apenas um aspecto da vocação em geral, teremos que considerar esta resumidamente, antes de adentrar a discussão da vocação externa.

1. O AUTOR DA NOSSA VOCAÇÃO. A nossa vocação é obra do Deus triúno. É primeiramente uma obra realizada pelo Pai, 1 Co 1.9; 1 Ts 2.12; 1 Pe 5.10. Mas o Pai faz todas as coisas por meio do Filho; e, assim, esta vocação é também atribuída ao Filho, Mt 11.28; Lc 5.32; Jo 7.37; Rm 1.6(?). E Cristo, por Sua vez, chama por meio da Sua Palavra e do Seu Espírito, Mt 10.20; Jo 15.26; At 5.31, 32.

2. VOCATIO REALIS ET VERBALIS (Vocação Real e Verbal). Os teólogos reformados geralmente falam de uma vocatio realis, como distinta da vocatio verbalis. Com isto, referem-se ao chamamento externo dirigido aos homens por meio da revelação geral de Deus, uma revelação da lei e não do Evangelho, para reconhecerem, temerem e honrarem a Deus como o seu Criador. Este chamamento lhes vem por meio de coisas (res), antes que por palavras: pela natureza e pela história, pelo meio ambiente em que vivem e pelas experiências e vicissitudes das suas vidas, Sl 19.1-4; At 16.16, 17; 17.27; Rm 1.19-21; 2.14, 15. Este chamamento ignora a Cristo e, portanto, não pode levar à salvação. Ao mesmo tempo, é da maior importância em sua relação com a restrição do pecado, com o desenvolvimento da vida natural e com a manutenção da boa ordem na sociedade. Não é esta a vocação na qual estamos interessados agora. Na soteriologia, unicamente a vocatio verbalis entra em consideração e esta se pode definir como o ato gracioso de Deus pelo qual Ele convida os pecadores a aceitarem a salvação oferecida em Cristo Jesus.

3. DIFERENTES CONCEPÇÕES DA VOCATIO VERBALIS. A vocatio verbalis é, como a própria expressão o sugere, o chamamento divino que chega ao homem por intermédio da pregação da Palavra de Deus. De acordo com os católicos romanos, este chamamento pode chegar-lhe também por meio da ministração do batismo. De fato, eles consideram o sacramento como o mais importante meio de levar o homem a Cristo, e atribuem à pregação do Evangelho uma significação decididamente subordinada. O central para Roma é o altar, não o púlpito. No transcurso do tempo evidenciou-se considerável diferença de opinião sobre a questão, por que o Evangelho se mostra eficaz nalguns casos e noutros não. Pelágio buscou a solução disso na vontade arbitrária do homem. Por natureza o homem tem uma vontade perfeitamente livre, de modo que ele pode aceitar ou rejeitar o Evangelho, como queira, e assim pode obter ou deixar de obter as bênçãos da salvação. Agostinho, por outro lado, atribuía a diferença à operação da graça de Deus. Ele dizia: “O ouvir o chamamento divino é produzido pela própria graça divina naquele que antes lhe resistia; e então se acende nele o amor pela virtude, quando ele pára de resistir”. O semipelagianismo procurou um termo médio entre ambos, evitando tanto a negação agostiniana da vontade livre (do livre arbítrio) como a depreciação pelagiana da graça divina. Admitia a presença das sementes da virtude no homem, as quais tendem por si mesmas, a dar bom fruto, mas sustentavam que estas precisam, para o seu desenvolvimento, da influência frutificativa da graça divina. A graça necessária para isso é dada gratuitamente a todos os homens, de modo que, com o seu auxílio, eles são capazes de aceitar o Evangelho para a salvação. Portanto, o chamamento será eficiente, desde que o homem, ajudado pela graça divina, o aceite. Esta doutrina veio a prevalecer na Igreja Católica Romana. Alguns católicos romanos mais recentes, dos quais Belarmino é um dos mais importantes, criaram a doutrina do congruísmo, segundo a qual a aceitação do chamamento do Evangelho depende das circunstâncias em que ele chega ao homem. Se estas são côngruas, isto é, adequadas ou favoráveis, ele o aceitará, se não, o rejeitará. Naturalmente, o caráter das circunstâncias dependerá grandemente da operação da graça proveniente. Lutero desenvolveu a idéia de que, enquanto que a lei opera o arrependimento, o chamamento do Evangelho traz consigo o dom do Espírito Santo. O Espírito está na Palavra, e portanto, o chamamento, em si mesmo, é sempre suficiente e, em sua intenção, é sempre eficaz. A razão pela qual este chamamento nem sempre leva a efeito o resultado desejado e tencionado jaz no fato de que, em muitos casos, os homens colocam no caminho uma pedra de tropeço, de sorte que, afinal de contas, o resultado é determinado pela atitude negativa do homem. Embora alguns luteranos ainda falem de vocação externa e interna, insistem em que a primeira nunca vem desacompanhada da segunda. Essencialmente, o chamamento é sempre eficaz, de maneira que não há realmente lugar para a distinção. A vigorosa insistência de Lutero no caráter eficaz do chamamento do Evangelho deve-se à depreciação anabatista dele. Os anabatistas virtualmente puseram de lado a Palavra de Deus como meio de graça e davam ênfase àquilo que denominavam palavra interna, “luz interior” e iluminação do Espírito Santo. Para eles, a palavra externa não passa de letra que mata, ao passo que a palavra interna é espírito e vida. A vocação externa significa pouco ou nada em seu esquema. A distinção entre vocação externa e interna já se acha em Agostinho, foi tomada por empréstimo por Calvino e, assim, ganhou proeminência na teologia reformada (calvinista). Segundo Calvino, o chamamento do Evangelho não é eficiente em si mesmo, mas lhe é dada eficácia pela operação do Espírito Santo, quando Este aplica salvadoramente a Palavra ao coração do homem; e esta aplicação é feita somente aos corações e vidas dos eleitos. Deste modo, a salvação do homem é obra de Deus, do começo ao fim. Por Sua graça salvadora, Deus não somente capacita o homem, mas também o leva a dar ouvidos ao chamamento do Evangelho para a salvação. Os arminianos não ficaram satisfeitos com esta posição, mas virtualmente retornaram ao semipelagianismo da Igreja Católica Romana. Segundo eles, a proclamação universal do Evangelho é acompanhada pela graça universal suficiente – “uma assistência graciosa real e universalmente outorgada, suficiente para habilitar todos os homens para, se o quiserem, alcançar a plena posse das bênçãos espirituais e, finalmente, a salvação”.[1]Mais uma vez se faz que a obra de salvação dependa do homem. Isto marcou o início de um retorno racionalista à posição pelagiana, que nega inteiramente a necessidade de uma operação interna do Espírito Santo para a salvação.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 455)



[1] Cunningham, Hist. Theol. II, p. 396.