Geralmente os luteranos
tratam antropologicamente a doutrina d união mística, e, portanto,
entendem que ela é estabelecida pela fé. Daí, naturalmente, tomam o seu estudo
num ponto mais avançado da sua soteriologia. Mas este método deixa de fazer
plena justiça à idéia da nossa união com Cristo, uma vez que perde vista a base
eterna da união e a sua realização objetiva em Cristo, e trata exclusivamente
da sua concretização em nossas vidas e, ainda assim, somente do nosso ingresso
pessoal e consciente nessa união. Por outro lado, a teologia reformada
(calvinista) trata teologicamente da união dos crentes com Cristo e,
desta maneira, faz muito mais justiça a este importante assunto. Em seu
tratamento do tema, ela emprega a expressão “união mística” num sentido amplo,
não somente como designativo da união subjetiva de Cristo e os crentes, mas
também da união que lhe é subjacente e básica, e da qual é apenas a expressão
culminante, a saber, a união federal de Cristo e os que Lhe pertencem no
conselho da redenção, a união mística estabelecida idealmente naquele conselho
eterno, e da união efetuada objetivamente na encarnação e na obra redentora de
Cristo.
1. A
UNIÃO FEDERAL DE CRISTO COM AQUELES QUE O PAI LHE DEU NO CONSELHO DA REDENÇÃO.
No conselho de paz Cristo se incumbiu voluntariamente de ser a Cabeça e o
Penhor dos eleitos, destinados a constituir a nova humanidade e, como tal, a
estabelecer a justiça desta diante de Deus, cumprindo a pena pelo seu pecado e
prestando perfeita obediência à lei e, assim, garantindo o seu direito à vida
eterna. Nessa aliança eterna, o pecado do Seu povo foi imputado a Cristo, e a
Sua justiça foi imputada a eles. Esta imputação da justiça de Cristo, a Seu
povo no conselho da redenção às vezes é descrita como a justificação oriunda da
eternidade. Certamente ela é a base da nossa justificação pela fé e o
fundamento sobre o qual recebemos todas as bênçãos espirituais e a dádiva da
vida eterna. E, sendo assim, é básica para toda a nossa soteriologia, e até
mesmo para os primeiros estágios da aplicação da obra da redenção, como a
regeneração e a vocação interna.
2. A UNIÃO DE VIDA
ESTABELECIDA IDEALMENTE NO CONSELHO DA REDENÇÃO. No caso do primeiro Adão, não
havia apenas uma união federal, mas também uma união natural e orgânica entre
ele e os seus descendentes. Havia o laço de uma vida comum entre ele e toda a
sua progênie, e isto gerou a possibilidade de que as bênçãos da aliança das
obras, se se efetivassem, poderiam passar a todo organismo da humanidade de
maneira orgânica. Chegou-se a uma situação um tanto similar no caso do último
Adão, como a Cabeça representativa da aliança da redenção. Como o primeiro
Adão, Ele não representou uma aglomeração de indivíduos disjuntos, mas um corpo
de homens e mulheres que deveriam derivar sua vida dele, estar unidos por laços
espirituais, formando, assim, um organismo espiritual. Idealmente, este corpo,
que é a igreja, já estava formado na aliança da redenção, e isto em união com
Cristo, e esta união possibilitou que todas as bênçãos merecidas por Cristo
pudessem de maneira orgânica para aqueles que Ele representou. Estes eram
vistos como corpo glorioso, uma nova humanidade, que compartilha a vida de
Jesus Cristo. Foi em virtude dessa união, concretizada no transcurso da
história, que Cristo pôde dizer: “Eis aqui estou eu, e os filhos que Deus me
deu”, Hb 2.13.
3. A UNIÃO DE VIDA
REALIZADA OBJETIVAMENTE EM CRISTO. Em virtude da união legal ou representativa
estabelecida na aliança da redenção, Cristo se encarnou como substituto de Seu
povo, para merecer todas as bênçãos da salvação para eles. Desde que os Seus
filhos forma participantes de carne e sangue, “destes também ele, igualmente,
participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da
morte, a saber, o diabo, e livrasse a todos que, pelo pavor da morte, estavam
sujeitos à escravidão por toda a vida”, Hb 2.14, 15. Ele pôde merecer a
salvação para eles justamente porque já estava em relação com eles como seu
Penhor e seu Mediador, sua Cabeça e seu Substituto. A igreja toda estava
incluída nele como Cabeça. Num sentido objetivo, ela foi crucificada com
Cristo, morreu com Ele, nele ressurgiu dos mortos e foi levada a sentar-se com
Ele nos lugares celestiais. Todas as bênçãos da graça salvadora estão prontas
para a igreja em Cristo; o homem não lhes pode acrescentar nada; e agora só
esperam a sua aplicação subjetiva pela operação do Espírito Santo, a qual é
também merecida por Cristo e tem a garantia de progressiva realização no curso
da história.
4. A UNIÃO DE VIDA
REALIZADA SUBJETIVAMENTE PELA OPERAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO. A obra de Cristo não
estava terminada quando Ele mereceu a salvação para o seu povo e obteve posse
real das bênçãos da salvação. No conselho da redenção, Ele se encarregou de dar
ao Seu povo posse de todas estas bênçãos, e Ele o faz através da operação do
Espírito Santo, que recebe de Cristo todas as coisas e no-las dá. Não devemos
conceber atomisticamente* a
realização subjetiva da união mística na igreja,como se fosse efetuada levando
ora este, ora aquele pecador individual a Cristo. Ela deve ser vista do ponto
de vista de Cristo. Objetivamente, a igreja toda está nele, e nasceu dele como
a Cabeça. Não é um mecanismo no qual as partes precedem o todo, mas um
organismo no qual o todo é anterior às partes. As partes provém de Cristo por
intermédio da obra regeneradora do Espírito Santo, e então continuam em vívida
relação com Ele. Jesus chama a atenção para esta relação orgânica quando diz:
“Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá
muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer”. Jo 15.5. Em vista do que foi
dito, é mais que evidente que não é correto dizer que a união mística é fruto
da confiante aceitação de Cristo, como se a fé não fosse uma das bênçãos da
aliança que fluem para nós, provindas da plenitude de Cristo, mas uma condição
que cabe ao homem satisfazer, em parte ou totalmente, com suas próprias forças,
a fim de entrar numa viva relação com Jesus Cristo. A fé é, acima de tudo, um
dom de Deus e, como tal, é uma parte dos tesouros ocultos em Cristo. Ela nos
habilita a apropriar-nos da nossa parte daquilo que nos é dado em Cristo, e a
entrar, de maneira crescente, no gozo consciente da bendita união com Cristo,
que é a fonte de todas as nossas riquezas espirituais.
Pode-se definir a união
mística como a união íntima, vital e espiritual entre Cristo e o Seu povo,
em virtude da qual Ele é a fonte da sua vida e poder, da sua bendita ventura e
salvação.
Que se trata de uma união
muito íntima, vê-se fartamente nas figuras empregadas na Escritura para
descreve-la. É uma união que lembra a da videira e seus ramos, Jo 15.5, a do
alicerce e o edifício construído sobre ele, I Pe 2.4, 5, a de esposo e esposa, Ef
5.23-32, e a de cabeça e os membros do corpo, Ef 4.15, 16. E mesmo essas figuras
não conseguem dar plena expressão à realidade. É uma união que excede ao
entendimento. Diz o dr. Hodge: “O designativo técnico desta união na
terminologia teológica é ‘mística’, porque transcende, e muito, todas as
analogias das relações terrenais, na intimidade da sua conexão, no poder
transformador da sua influência, e na excelência das suas conseqüências”.[1]
Se o exame deste aspecto
da união mística for feito em primeiro lugar na ordo salutis, deve-se
ter em mente (a) que, ao que parece, é desejável considera-la no contexto
daquilo que a precede, idealmente no conselho da redenção, e objetivamente na
obra de Cristo; e (b) que a ordem é lógica, e não cronológica. Visto que o
crente é uma “nova criatura” (2 Co 5.17), ou “justificado” (At 13.39) somente
em Cristo, a união com Ele precede logicamente a regeneração e a justificação
pela fé, ao passo que, não obstante, cronologicamente, o momento em que somos
unidos a Cristo é também o momento da nossa regeneração e justificação.
(Teologia Sistemática –
Louis Berkhof. Pg. 445)