quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Frutos da Graça Comum

Na seção anterior já indicamos que aquilo que nos ficou da luz da natureza só continua agindo em virtude da graça comum de Deus. Esse é um dos mais importantes frutos da graça comum, sem que alguns dos outros seriam inconcebíveis. Os seguintes frutos podem ser mencionados aqui:

1. É SUSTADA A EXECUÇÃO DA SENTENÇA. Deus pronunciou a sentença de morte sobre o pecador. Falando da árvore do conhecimento do bem e do mal, disse Ele: “no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. O homem comeu, e a sentença foi posta em execução até certo ponto, mas, evidentemente, não foi logo executada totalmente. É devido à graça comum que Deus não executou plenamente a sentença da morte no pecador, e não o faz agora, mas mantém e prolonga a vida natural do homem e lhe dá tempo para arrependimento. Ele não dá logo fim à vida do pecador, mas lhe dá oportunidade para arrepender-se, tirando com isso qualquer motivo para desculpa e justificando a vindoura manifestação da Sua ira sobre os que persistirem no pecado até o fim. Que Deus age com base neste princípio evidencia-se amplamente em passagens como Is 48.9; Jr 7.23-25; Lc 13.6-9; Rm 2.4; 9.22; 2 Pe 3.9.

2. RESTRIÇÃO DO PECADO. Pela operação da graça comum, o pecado sofre restrição nas vidas dos indivíduos e na sociedade. Ao elemento de corrupção que entrou na vida da raça humana não é permitido, por ora, realizar a sua obra desintegradora. Diz Calvino: “Mas devemos considerar que, não obstante a corrupção da nossa natureza, há algum espaço para a graça divina, graça que, sem purifica-la, pode coloca-la sob repressão interior. Pois, se o Senhor deixasse todas as mentes soltas para desenfrear-se em suas luxúrias, sem dúvida não há nenhum homem que não mostrasse que a sua natureza e capaz de praticar todos os crimes de que Paulo a acusa (Rm 3, comparado com Sl 14.3-6)”.[1] Esta repressão pode ser externa ou interna ou ambas, mas não muda o coração. Há passagens que falam da luta do Espírito de Deus com os homens, luta que não produz arrependimento, Gn 6.3; Is 63.10; At 7.51; de operações do Espírito Santo que acabam sendo retiradas, 1 Sm 16.14; Hb 6.4-6; e do fato de que, nalguns casos, Deus finalmente deixa os homens entregues às luxúrias dos seus próprios corações, Sl 81.12; Rm 1.24, 26, 28. Em acréscimo às passagens anteriores, há algumas que mostram claramente que Deus reprime o pecado de várias maneiras, como Gn 20.6; 31.7; Jô 1.12; 2.6; 2 Rs 19.27, 28; Rm 13.1-4.

3. PRESERVAÇÃO DE ALGUMA PERCEPÇÃO DA VERDADE, DA MORAL E DA RELIGIÃO. Deve-se à graça comum que o homem ainda conserva alguma noção do verdadeiro, do bom e do belo, e muitas vezes aprecia estas coisas num grau até surpreendente, e revela desejo da verdade, da moralidade externa e mesmo de certa forma de religião. Paulo fala dos gentios que “mostram a norma da lei gravada nos seus corações, testemunhando-lhes também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se”, na passagem recém-citada de Rm 2.15, e até diz daqueles que davam livre curso às suas vidas ímpias, que eles conheceram a verdade de Deus, embora detivessem a verdade com a injustiça e a mudassem em mentira, Rm 1.18-25. Aos atenienses, que não tinham temor de Deus, disse ele: “Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos”, At. 17:22. Os Cânones de Dort expressam-se como segue, sobre este ponto: “Permanecem, porém, no homem, desde a Queda, vislumbres da luz natural, pelos quais ele conserva algum conhecimento de Deus, das coisas naturais e da diferença entre o bem e o mal, e mostra alguma consideração pela virtude e pela boa conduta exterior. Mas, esta luz da natureza acha-se tão longe de ser suficiente para dar-lhe um conhecimento salvífico de Deus e da verdadeira conversão, que ele é incapaz de usa-la direito, mesmo nas coisas naturais e civis. Não somente isso, mas também esta luz, tal como é, o homem a torna totalmente corrompida e obstrui com a sua injustiça, fazendo aquilo que é inescusável diante de Deus” (III. IV. 4).

4. A PRÁTICA DO BEM EXTERNO E DA JUSTIÇA CIVIL. A graça comum capacita o homem para praticar o que geralmente se denomina justitia civilis, isto é, aquilo que é certo nas atividades civis ou naturais, em distinção daquilo que é certo nas questões religiosas, as boas obras naturais nas relações sociais, obras que se harmonizam externa e objetivamente com a lei de Deus, embora inteiramente destituídas de qualquer qualidade espiritual. Isso está em harmonia com a nossa confissão reformada (calvinista). O artigo XIV da Confissão Belga fala, em seu título, da incapacidade humana de realizar o que é verdadeiramente bom, afirma que o homem conservou apenas diminutos restos dos seus excelentes dons, o bastante para deixa-lo sem desculpa, e somente rejeita o erro pelagiano segundo o qual o homem pode, por si mesmo, praticar o bem espiritual ou salvífico. O artigo 3 dos Cânones de Dort fala num tom semelhante: “Portanto, todos os homens são concebidos em pecado e são por natureza filhos da ira, incapazes para o bem salvífico” etc. Talvez se objete que o Catecismo de Heidelberg fala em termos absolutos na pergunta 8, quando afirma que somos incapazes de fazer qualquer bem, a não ser que sejamos regenerados. Mas, pelo Comentário do próprio Ursino,* fica evidente que ele não nega que o homem possa praticar o bem civil, mas somente que possa praticar as boas obras definidas na pergunta 91 do referido catecismo. Os teólogos reformados (calvinistas) geralmente afirmam que os não regenerados podem realizar o bem natural, o bem civil, e o bem religioso exterior.[2] Contudo, eles chamam a atenção para o fato de que, conquanto essas obras dos não regenerados sejam boas do ponto de vista material, como obras ordenadas por Deus, não podem ser consideradas boas do ponto de vista formal, uma vez que não provêm do motivo certo e não visam ao propósito certo. A Bíblia fala repetidamente de obras de não regenerados como boas e corretas, 2 Rs 10.29, 30; 12.2 (comp. 2 Cr 24.17-25); 14.3, 14-16, 20, 27 (comp. 2 Cr 25.2); Lc 6.33; Rm 2.14, 15.

5. MUITAS BÊNÇÃOS NATURAIS. À graça comum o homem deve, ademais, todas as bênçãos naturais que ele recebe na presente vida. Embora tendo perdido o direito a toda e qualquer bênção de Deus, ele recebe abundantes provas da bondade de Deus, dia após dia. Há várias passagens da Escritura nas quais transparece fartamente que Deus despeja muitas das Suas boas dádivas sobre todos os homens indiscriminadamente, isto é, sobre bons e maus, sobre eleitos e réprobos, passagens como, Gn 17.20 (comp. Versículo 18); 39.5; Sl 145.9, 15, 16; Mt 5.44, 45; Lc 6.35, 36; At 14.16, 17; 1 Tm 4.10. E estas dádivas são destinadas a serem bênçãos,não somente para os bons, mas também para os maus. À luz da Escritura, é insustentável a posição segundo a qual Deus nunca abençoa os réprobos, quando lhes concede muitas dádivas que são boas em si mesmas. Em Gn 39.5 lemos que “o Senhor abençoou a casa do egípcio por amor de José; a bênção do Senhor estava sobretudo o que tinha, assim em casa como no campo”. E em Mt 5.44, 45 Jesus exorta os Seus discípulos com estas palavras: “...orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste” (a versão utilizada pelo Autor diz: “... abençoai os que vos amaldiçoam...”). Isto só pode significar uma coisa, a saber, que Deus também abençoa os que O amaldiçoam. Cf. também Lc 6.35, 36; Rm 2.4.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 439)



[1] Inst. II: 3, 3.
* Zacarias Ursino, nascido em 1534, em Breslau, Alemanha, um dos teólogos de Heidelberg encarregados de preparar o Catecismo de Heidelber. Nota do tradutor.
[2] Cf. Calvino, Inst. III.14.2; Van Mastricht, Godgeleerdheid, Livro IV.4.11, 12; Voetius, Catechisatie I, p. 168-172; Ursino, Comm. on the Catechism, Lord’s Day II, p. 77; Charnock, On the Atributes II, p.303, 304; Brakel, Redelijke Godsdienst I, p.338.