Na seção anterior já
indicamos que aquilo que nos ficou da luz da natureza só continua agindo em
virtude da graça comum de Deus. Esse é um dos mais importantes frutos da graça
comum, sem que alguns dos outros seriam inconcebíveis. Os seguintes frutos
podem ser mencionados aqui:
4. A PRÁTICA DO BEM
EXTERNO E DA JUSTIÇA CIVIL. A graça comum capacita o homem para praticar o que
geralmente se denomina justitia civilis, isto é, aquilo que é certo nas
atividades civis ou naturais, em distinção daquilo que é certo nas questões
religiosas, as boas obras naturais nas relações sociais, obras que se
harmonizam externa e objetivamente com a lei de Deus, embora inteiramente
destituídas de qualquer qualidade espiritual. Isso está em harmonia com a nossa
confissão reformada (calvinista). O artigo XIV da Confissão Belga fala, em seu
título, da incapacidade humana de realizar o que é verdadeiramente bom, afirma
que o homem conservou apenas diminutos restos dos seus excelentes dons, o
bastante para deixa-lo sem desculpa, e somente rejeita o erro pelagiano segundo
o qual o homem pode, por si mesmo, praticar o bem espiritual ou salvífico. O artigo
3 dos Cânones de Dort fala num tom semelhante: “Portanto, todos os homens são
concebidos em pecado e são por natureza filhos da ira, incapazes para o bem
salvífico” etc. Talvez se objete que o Catecismo de Heidelberg fala em termos
absolutos na pergunta 8, quando afirma que somos incapazes de fazer qualquer
bem, a não ser que sejamos regenerados. Mas, pelo Comentário do próprio Ursino,* fica evidente que ele não nega que o
homem possa praticar o bem civil, mas somente que possa praticar as boas obras
definidas na pergunta 91 do referido catecismo. Os teólogos reformados
(calvinistas) geralmente afirmam que os não regenerados podem realizar o bem
natural, o bem civil, e o bem religioso exterior.[2]
Contudo, eles chamam a atenção para o fato de que, conquanto essas obras dos
não regenerados sejam boas do ponto de vista material, como obras ordenadas por
Deus, não podem ser consideradas boas do ponto de vista formal, uma vez que não
provêm do motivo certo e não visam ao propósito certo. A Bíblia fala repetidamente
de obras de não regenerados como boas e corretas, 2 Rs 10.29, 30; 12.2 (comp. 2
Cr 24.17-25); 14.3, 14-16, 20, 27 (comp. 2 Cr 25.2); Lc 6.33; Rm 2.14, 15.
1. É SUSTADA A EXECUÇÃO DA
SENTENÇA. Deus pronunciou a sentença de morte sobre o pecador. Falando da
árvore do conhecimento do bem e do mal, disse Ele: “no dia em que dela comeres,
certamente morrerás”. O homem comeu, e a sentença foi posta em execução até
certo ponto, mas, evidentemente, não foi logo executada totalmente. É devido à
graça comum que Deus não executou plenamente a sentença da morte no pecador, e
não o faz agora, mas mantém e prolonga a vida natural do homem e lhe dá tempo
para arrependimento. Ele não dá logo fim à vida do pecador, mas lhe dá
oportunidade para arrepender-se, tirando com isso qualquer motivo para desculpa
e justificando a vindoura manifestação da Sua ira sobre os que persistirem no pecado
até o fim. Que Deus age com base neste princípio evidencia-se amplamente em
passagens como Is 48.9; Jr 7.23-25; Lc 13.6-9; Rm 2.4; 9.22; 2 Pe 3.9.
2. RESTRIÇÃO DO PECADO.
Pela operação da graça comum, o pecado sofre restrição nas vidas dos indivíduos
e na sociedade. Ao elemento de corrupção que entrou na vida da raça humana não
é permitido, por ora, realizar a sua obra desintegradora. Diz Calvino: “Mas
devemos considerar que, não obstante a corrupção da nossa natureza, há algum
espaço para a graça divina, graça que, sem purifica-la, pode coloca-la sob
repressão interior. Pois, se o Senhor deixasse todas as mentes soltas para
desenfrear-se em suas luxúrias, sem dúvida não há nenhum homem que não
mostrasse que a sua natureza e capaz de praticar todos os crimes de que Paulo a
acusa (Rm 3, comparado com Sl 14.3-6)”.[1]
Esta repressão pode ser externa ou interna ou ambas, mas não muda o coração. Há
passagens que falam da luta do Espírito de Deus com os homens, luta que não
produz arrependimento, Gn 6.3; Is 63.10; At 7.51; de operações do Espírito
Santo que acabam sendo retiradas, 1 Sm 16.14; Hb 6.4-6; e do fato de que,
nalguns casos, Deus finalmente deixa os homens entregues às luxúrias dos seus
próprios corações, Sl 81.12; Rm 1.24, 26, 28. Em acréscimo às passagens
anteriores, há algumas que mostram claramente que Deus reprime o pecado de
várias maneiras, como Gn 20.6; 31.7; Jô 1.12; 2.6; 2 Rs 19.27, 28; Rm 13.1-4.
3. PRESERVAÇÃO DE ALGUMA
PERCEPÇÃO DA VERDADE, DA MORAL E DA RELIGIÃO. Deve-se à graça comum que o homem
ainda conserva alguma noção do verdadeiro, do bom e do belo, e muitas vezes
aprecia estas coisas num grau até surpreendente, e revela desejo da verdade, da
moralidade externa e mesmo de certa forma de religião. Paulo fala dos gentios
que “mostram a norma da lei gravada nos seus corações, testemunhando-lhes
também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou
defendendo-se”, na passagem recém-citada de Rm 2.15, e até diz daqueles que
davam livre curso às suas vidas ímpias, que eles conheceram a verdade de Deus,
embora detivessem a verdade com a injustiça e a mudassem em mentira, Rm
1.18-25. Aos atenienses, que não tinham temor de Deus, disse ele: “Em tudo vos
vejo acentuadamente religiosos”, At. 17:22. Os Cânones de Dort expressam-se como
segue, sobre este ponto: “Permanecem, porém, no homem, desde a Queda,
vislumbres da luz natural, pelos quais ele conserva algum conhecimento de Deus,
das coisas naturais e da diferença entre o bem e o mal, e mostra alguma
consideração pela virtude e pela boa conduta exterior. Mas, esta luz da
natureza acha-se tão longe de ser suficiente para dar-lhe um conhecimento
salvífico de Deus e da verdadeira conversão, que ele é incapaz de usa-la
direito, mesmo nas coisas naturais e civis. Não somente isso, mas também esta
luz, tal como é, o homem a torna totalmente corrompida e obstrui com a sua
injustiça, fazendo aquilo que é inescusável diante de Deus” (III. IV. 4).
5. MUITAS BÊNÇÃOS
NATURAIS. À graça comum o homem deve, ademais, todas as bênçãos naturais que ele
recebe na presente vida. Embora tendo perdido o direito a toda e qualquer
bênção de Deus, ele recebe abundantes provas da bondade de Deus, dia após dia.
Há várias passagens da Escritura nas quais transparece fartamente que Deus
despeja muitas das Suas boas dádivas sobre todos os homens indiscriminadamente,
isto é, sobre bons e maus, sobre eleitos e réprobos, passagens como, Gn 17.20
(comp. Versículo 18); 39.5; Sl 145.9, 15, 16; Mt 5.44, 45; Lc 6.35, 36; At
14.16, 17; 1 Tm 4.10. E estas dádivas são destinadas a serem bênçãos,não
somente para os bons, mas também para os maus. À luz da Escritura, é
insustentável a posição segundo a qual Deus nunca abençoa os réprobos, quando
lhes concede muitas dádivas que são boas em si mesmas. Em Gn 39.5 lemos que “o
Senhor abençoou a casa do egípcio por amor de José; a bênção do Senhor estava
sobretudo o que tinha, assim em casa como no campo”. E em Mt 5.44, 45 Jesus
exorta os Seus discípulos com estas palavras: “...orai pelos que vos perseguem;
para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste” (a versão utilizada pelo
Autor diz: “... abençoai os que vos amaldiçoam...”). Isto só pode significar
uma coisa, a saber, que Deus também abençoa os que O amaldiçoam. Cf. também Lc
6.35, 36; Rm 2.4.
(Teologia Sistemática –
Louis Berkhof. Pg. 439)
[1] Inst.
II: 3, 3.
* Zacarias Ursino, nascido em 1534, em Breslau, Alemanha, um
dos teólogos de Heidelberg encarregados de preparar o Catecismo de Heidelber. Nota do tradutor.
[2] Cf. Calvino, Inst. III.14.2;
Van Mastricht, Godgeleerdheid, Livro IV.4.11, 12; Voetius, Catechisatie
I, p. 168-172; Ursino, Comm. on the Catechism, Lord’s Day II, p. 77;
Charnock, On the Atributes II, p.303, 304; Brakel, Redelijke
Godsdienst I, p.338.