Surge naturalmente a questão sobre se
a manifestação da graça comum de algum modo se relaciona com a obra expiatória
de Cristo. Quanto sabemos, o dr. Kuyper não defende tal relação. Segundo ele,
Cristo, como o Mediador da criação, a luz que ilumina todo homem vindo ao
mundo, é a fonte da graça comum. Quer dizer que as bênçãos da graça comum
dimanam dd obra da criação. Mas isto não basta para responder à questão sobre
como se explica que um Deus santo e justo estende a sua graça a pecadores que
perderam todo e qualquer direito, e lhe concede favores, mesmo quando não
compartilham a justiça de Cristo e se revelam final e definitivamente
impenitentes. A questão exata é: Como pode Deus continuar concedendo as bênçãos
da criação a homens que estão sob sentença de morte e de condenação? No que se
refere aos eleitos, esta questão é respondida pela cruz de Cristo, mas, e
quanto aos réprobos? Talvez possa dizer que não é necessário supor uma base
judicial específica para a concessão da graça comum ao homem, tendo-se em conta
que (a) ela não remove a culpa do pecado e, portanto, não traz perdão; e (b)
não suspende a sentença de condenação, mas unicamente adia a sua execução.
Talvez o fato de que o beneplácito divino susteve a manifestação da Sua ira e
“suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição”
(Rm 9.22), ofereça suficiente explicação das bênçãos da graça comum.
Geralmente os teólogos reformados
(calvinistas) hesitam em dizer que, com o Seu sangue expiatório, Cristo mereceu
estas bênçãos para os impenitentes e réprobos. Ao mesmo tempo, eles crêem que
importantes benefícios naturais se acumulam para toda a raça humana,
provenientes da morte de Cristo, e que os incrédulos, os impenitentes e os
réprobos também participam desses benefícios. Em toda transação pactual
registrada na Escritura se vê que a aliança da graça traz, não somente bênçãos
espirituais, mas também bênçãos materiais, e essas bênçãos materiais são de tal
natureza que delas participam também os descrentes. Diz Cunningham: “Muitas
bênçãos fluem para a humanidade em geral, provindas da morte de Cristo,
colateral e acidentalmente, em conseqüência da relação em que os homens,
coletivamente considerados, vivem uns com os outros”.[1]
E não é nada mais que natural que seja assim. Se Cristo devia salvar uma raça
eleita, paulatinamente chamada do mundo da humanidade no transcurso dos séculos,
era necessário que Deus exercesse paciência, detivesse o curso do mal,
promovesse o desenvolvimento das faculdades naturais do homem, mantivesse vivo
nos corações dos homens o desejo de manter a justiça civil, a moralidade
exterior e a boa ordem na sociedade, e derramasse incontáveis bênçãos sobre a
humanidade em geral. O dr. Hodge o expressa desta maneira: “È evidente que
qualquer plano destinado a garantir a salvação a uma parte eleita de uma raça
que se propaga por geração e vice em associação, como é o caso da humanidade,
não pode garantir o seu objetivo sem afetar grandemente, para melhor ou para
pior, o caráter e o destino de todos os demais membros não eleitos da raça”.
Cita ele o dr. Candlish para indicar que “toda a história da raça humana, desde
a apostasia até ao juízo final, é uma dispensação de paciência com relação aos
réprobos, em que muitas bênçãos, físicas e morais, que afetam os seus
caracteres e os seus destinos para sempre, acumulam-se até mesmo para os
pagãos, e muito mais aos cidadãos de boa e refinada educação pertencentes às
comunidades cristãs. Estas lhes advêm através da mediação de Cristo, e vindo a
eles agora, só podem ter-lhes sido destinadas desde o princípio”.[2]
Estas bênçãos gerais da humanidade, que resultam indiretamente da obra
expiatória de Cristo, foram, não somente previstas por Deus, mas também
designadas por Ele como bênçãos para todos os envolvidos. Naturalmente, é mais
que certo que o propósito de Deus na obra de Cristo visava primária e
diretamente, não ao bem-estar temporal dos homens em geral, mas, sim, à
redenção dos eleitos; mas, secundária e indiretamente incluía também as bênçãos
naturais concedidas indiscriminadamente à humanidade. Tudo que o homem natural
recebe, fora a maldição e a morte, é resultado indireto da obra redentora de
Cristo.[3]
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof.
Pg. 433)
[1] Hist. Theol. II, p. 333.
[2] The Atonement, p. 358, 359.
[3] Cf.
Turretino, Opera, Lócus XIV, perg. XIV, parte XI; Witsius, De
Verbonden, B. II, cap. 9, seção 4; Cunningham, Hist. Theol. II, p. 332; Symington, Atonement and
Intercession, p. 255; Bavinck, Geref. Dogm. III, p.
535; Vos, Ger. Dogm. III, p. 150.