quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A Graça Comum e a Obra Expiatória de Cristo



Surge naturalmente a questão sobre se a manifestação da graça comum de algum modo se relaciona com a obra expiatória de Cristo. Quanto sabemos, o dr. Kuyper não defende tal relação. Segundo ele, Cristo, como o Mediador da criação, a luz que ilumina todo homem vindo ao mundo, é a fonte da graça comum. Quer dizer que as bênçãos da graça comum dimanam dd obra da criação. Mas isto não basta para responder à questão sobre como se explica que um Deus santo e justo estende a sua graça a pecadores que perderam todo e qualquer direito, e lhe concede favores, mesmo quando não compartilham a justiça de Cristo e se revelam final e definitivamente impenitentes. A questão exata é: Como pode Deus continuar concedendo as bênçãos da criação a homens que estão sob sentença de morte e de condenação? No que se refere aos eleitos, esta questão é respondida pela cruz de Cristo, mas, e quanto aos réprobos? Talvez possa dizer que não é necessário supor uma base judicial específica para a concessão da graça comum ao homem, tendo-se em conta que (a) ela não remove a culpa do pecado e, portanto, não traz perdão; e (b) não suspende a sentença de condenação, mas unicamente adia a sua execução. Talvez o fato de que o beneplácito divino susteve a manifestação da Sua ira e “suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição” (Rm 9.22), ofereça suficiente explicação das bênçãos da graça comum.

Geralmente os teólogos reformados (calvinistas) hesitam em dizer que, com o Seu sangue expiatório, Cristo mereceu estas bênçãos para os impenitentes e réprobos. Ao mesmo tempo, eles crêem que importantes benefícios naturais se acumulam para toda a raça humana, provenientes da morte de Cristo, e que os incrédulos, os impenitentes e os réprobos também participam desses benefícios. Em toda transação pactual registrada na Escritura se vê que a aliança da graça traz, não somente bênçãos espirituais, mas também bênçãos materiais, e essas bênçãos materiais são de tal natureza que delas participam também os descrentes. Diz Cunningham: “Muitas bênçãos fluem para a humanidade em geral, provindas da morte de Cristo, colateral e acidentalmente, em conseqüência da relação em que os homens, coletivamente considerados, vivem uns com os outros”.[1] E não é nada mais que natural que seja assim. Se Cristo devia salvar uma raça eleita, paulatinamente chamada do mundo da humanidade no transcurso dos séculos, era necessário que Deus exercesse paciência, detivesse o curso do mal, promovesse o desenvolvimento das faculdades naturais do homem, mantivesse vivo nos corações dos homens o desejo de manter a justiça civil, a moralidade exterior e a boa ordem na sociedade, e derramasse incontáveis bênçãos sobre a humanidade em geral. O dr. Hodge o expressa desta maneira: “È evidente que qualquer plano destinado a garantir a salvação a uma parte eleita de uma raça que se propaga por geração e vice em associação, como é o caso da humanidade, não pode garantir o seu objetivo sem afetar grandemente, para melhor ou para pior, o caráter e o destino de todos os demais membros não eleitos da raça”. Cita ele o dr. Candlish para indicar que “toda a história da raça humana, desde a apostasia até ao juízo final, é uma dispensação de paciência com relação aos réprobos, em que muitas bênçãos, físicas e morais, que afetam os seus caracteres e os seus destinos para sempre, acumulam-se até mesmo para os pagãos, e muito mais aos cidadãos de boa e refinada educação pertencentes às comunidades cristãs. Estas lhes advêm através da mediação de Cristo, e vindo a eles agora, só podem ter-lhes sido destinadas desde o princípio”.[2] Estas bênçãos gerais da humanidade, que resultam indiretamente da obra expiatória de Cristo, foram, não somente previstas por Deus, mas também designadas por Ele como bênçãos para todos os envolvidos. Naturalmente, é mais que certo que o propósito de Deus na obra de Cristo visava primária e diretamente, não ao bem-estar temporal dos homens em geral, mas, sim, à redenção dos eleitos; mas, secundária e indiretamente incluía também as bênçãos naturais concedidas indiscriminadamente à humanidade. Tudo que o homem natural recebe, fora a maldição e a morte, é resultado indireto da obra redentora de Cristo.[3]

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 433)



[1] Hist. Theol. II, p. 333.
[2] The Atonement, p. 358, 359.
[3] Cf. Turretino, Opera, Lócus XIV, perg. XIV, parte XI; Witsius, De Verbonden, B. II, cap. 9, seção 4; Cunningham, Hist. Theol. II, p. 332; Symington, Atonement and Intercession, p. 255; Bavinck, Geref. Dogm. III, p. 535; Vos, Ger. Dogm. III, p. 150.